Ano: 2002 Vol. 68 Ed. 2 - Março - Abril - (20º)
Seção: Relato de Caso
Páginas: 280 a 283
Paralisiado nervo abducente como complicação de otite média aguda
Abducens paralysis as a complication of acute otitis media
Autor(es):
Beatrice M. J. Neves 1,
Luc L. M. Weckx 2
Palavras-chave: paralisia do nervo abducente, otite média
Keywords: abducens paralysis, otitis media
Resumo:
A paralisia do nervo abducente (ou 6º nervo) é uma complicação rara de otite média. No presente estudo os autores fazem uma revisão da literatura que trata de complicações de otite média e relatam um caso de paralisia do nervo abducente.
Abstract:
The abducens paralysis is a rare complication of otitis media. In this paper, the authors reviewed the literature concerning otitis media complication and report one case of abducens paralysis and acute otitis media.
INTRODUÇÃO
A otite média aguda é uma doença relativamente grave devido à possibilidade de haver complicações. Atualmente com o uso rotineiro de antibióticos para otite média aguda e melhora das técnicas cirúrgicas em relação ao osso temporal, houve significante redução na incidência de complicações associadas a otite média aguda, na morbidade e mortalidade relacionadas a essas complicações.
Num estudo realizado antes do advento do antibiótico, Kafka1 analisou 3225 casos de mastoidite (2100 casos de mastoidite aguda e 1125 casos de mastoidite crônica). Nos casos de mastoidite aguda, 16,66% desenvolveram complicações intracranianas sendo que a mortalidade chegou a 71,45% neste grupo. Dos casos crônicos, 13,55% evoluíram para complicação intracraniana sendo a mortalidade 75%. Também antes do uso dos antibióticos, Profant2 documentou três casos de petrosite que evoluíram para morte e uma revisão da literatura da época, onde foram apresentados dezenove casos de petrosite sendo que cinco casos evoluíram para morte.
Apesar da incidência de complicações de otite média ter diminuído após o uso dos antibióticos de amplo espectro, a mortalidade e morbidade ainda são altas, principalmente em países subdesenvolvidos como mostra o estudo realizado por Kangsanarak et al3 na Tailândia. Foram analisados retrospectivamente 102 casos de complicações de otite média aguda, dividida em intracranianas e extracranianas. A prevalência de complicações intracranianas foi de 0,24 % e de extracranianas foi de 0,45%. No grupo extracraniano a morbidade foi de 14,13% e a mortalidade foi 0%; no grupo intracraniano a morbidade foi de 27,9% e a mortalidade foi de 18,6%.
Goycoolea e Jung4 classificaram as complicações de otite média em intratemporal e extratemporal (Tabela 1).
Tabela 1. Complicações de Otite Média.
Albers5, em seu estudo, analisou retrospectivamente 23 pacientes com complicações intracranianas ou intratemporais de otite média. Encontrou 28 complicações, sendo que a intracraniana mais comum foi a meningite (12 pacientes) e a intratemporal mais comum foi a paralisia facial (3 pacientes). A meningite também era a mais comum antes do uso dos antibióticos, como mostra Kafka1 em seu estudo onde ela esteve presente em 36 pacientes dos 83 com complicações intracranianas. Farrior6 analisou retrospectivamente 135 casos de complicações de otite média crônica em pacientes pediátricos. A mais comum foi a perfuração de membrana timpânica (57 casos) seguida de colesteatoma (54 casos).
A paralisia do nervo abducente é uma complicação rara de otite média aguda sendo conseqüência de petrosite. Na Síndrome de Gradenigo, que é uma das expressões clínicas de petrosite, além da paralisia do nervo abducente observa-se comprometimento do nervo trigêmeo e otite média.
O objetivo do presente estudo é mostrar que apesar de raras, as complicações de otite média aguda ainda existem, através do relato de um caso de Síndrome de Gradenigo.
apresentação do CASO
Uma criança do sexo feminino, 8 anos, compareceu ao Pronto-Socorro de Otorrinolaringologia da UNIFESP-EPM em 26/06/97. Queixava-se de, há sete dias, cefaléia frontal à esquerda e dor em olho no mesmo lado, intermitente, que melhorava com analgésicos comuns. Após quatro dias do início da cefaléia, apresentou supuração em orelha esquerda, sem otalgia ou febre. Passados cinco dias do início dos sintomas apresentou alteração na motricidade de olho esquerdo. Em uso de amoxicilina (3º dia) sem melhora até então. Ao exame físico apresentava paresia de músculo reto lateral esquerdo, diplopia em posição primária do olhar e em todas as posições à esquerda, presença de secreção purulenta exteriorizando-se pelo meato acústico externo, membrana timpânica com perfuração em quadrante ântero-inferior. Exames complementares: laboratoriais - VHS:105; ressonância magnética: sinais de mastoidite à esquerda e de inflamação em ápice de lobo temporal à esquerda, provável trombose de seio cavernoso à esquerda, sinusite esfenoidal. Feito diagnóstico de Síndrome de Gradenigo a paciente foi internada e medicada com ceftriaxone, metronidazol, dexametasona. Após uma semana a otoscopia era normal e foi, na ocasião, realizada audiometria que mostrou perda neurosensorial leve em 6kHz e moderada em 8 kHz na orelha acometida e timpanometria que evidenciou curva C na mesma orelha. A total recuperação da mobilidade ocular ocorreu em dois meses. A ressonância magnética realizada após quatro meses não mostrou anormalidades.
Figura 1. (A) Paciente no dia da primeira consulta e (B) após dois meses, mostrando regressão total do quadro.
Figura 2. Ressonância magnética realizada em 30/06/97 mostrando o comprometimento de seio esfenoidal, sinais de mastoidite à esquerda, inflamação em ápice de lobo temporal à esquerda e provável trombose de seio cavernoso no mesmo lado.
COMENTÁRIOS
O caso clínico apresentado anteriormente ocorreu devido à petrosite, que é uma complicação rara da otite média. Pode ser aguda ou crônica. Na forma aguda existe extensão do processo infeccioso da orelha média e mastóide para as células aeradas da porção petrosa do osso temporal. A condição, como a otite média aguda, em geral, é auto-limitada. Quando existe obstrução da drenagem da secreção purulenta contida nas células aeradas, o processo infeccioso dissemina-se para o osso, ocorrendo então a osteomielite petrosa. A forma crônica ocorre como complicação de otite média crônica e é mais comum que a forma anterior. Não existe necessidade de pneumatização da porção petrosa já que a infecção ocorre por tromboflebite levando a uma osteomielite local.
A bacteriologia da petrosite aguda é a mesma da otite aguda: S. pneumoniae, H. influenzae. Similarmente, a da forma crônica é a mesma da otite média crônica: P. aeruginosa, Proteus.
O quadro clínico da petrosite é caracterizado por dor retrocular, otalgia, otorréia purulenta, diplopia.
A dor ocular ocorre por comprometimento do nervo petroso superficial maior ou do ramo oftálmico do nervo trigêmeo. Menos comumente, o ramo maxilar e/ou mandibular podem estar acometidos levando à dor nos dentes e na mandíbula. Glasscock7 salienta que a dor retrocular no paciente com otite média é um sinal de perigo, ao contrário da otalgia, que pode ocorrer em pacientes com otite média sem complicação ou pós-mastoidectomia radical.
A otorréia copiosa, como no caso relatado, é mais comum na petrosite aguda, podendo até estar ausente na forma crônica. A persistência da otorréia, mesmo após a realização de mastoidectomia (simples ou radical) por mãos experientes, é um forte indício de comprometimento da porção petrosa do osso temporal, como pudemos observar nos estudos realizados por Chole e Donald8 e por Glasscock7.
A diplopia ocorre devido à paralisia do nervo abducente por compressão do mesmo ao passar através do canal de Dorelo, pelo edema em região de ápice petroso.
A petrosite pode apresentar-se sob um leque variado de sintomas. Em seu estudo, Chole e Donald8 analisaram 8 casos de petrosite. O sintoma mais comum foi a disacusia (5 casos), seguido de dor profunda (facial ou auricular - 4 casos). A paralisia do nervo abducente esteve presente em dois casos e meningite em dois casos. Sete pacientes apresentaram comprometimento de outros pares cranianos (VII, VIII, IX, X). Nos três casos analisados por Glasscock7 em seu estudo, a constante foi a dor profunda (auricular, facial ou ocular). No caso apresentado, a tríade otorréia, dor retrocular e paralisia do nervo abducente corresponde à Síndrome de Gradenigo. É importante salientar que petrosite não é sinônimo de Gradenigo, já que a síndrome clássica é incomum.
O método de imagem mais utilizado é a tomografia computadorizada, mas o raio-X simples também pode trazer muitas informações.
O tratamento da petrosite é antibioticoterapia e/ou cirurgia. A forma aguda pode ser tratada clinicamente, com ou sem mastoidectomia simples, se a infecção é restrita a células aeradas. Se existir comprometimento maior do osso temporal, uma abordagem cirúrgica mais agressiva é necessária para permitir boa drenagem da secreção. Várias técnicas têm sido descritas para completa exenteração das células do ápice petroso: por via translabiríntica, ou por via fossa média, a fim de preservar a função do labirinto, audição, nervo facial e artéria carótida.
Frente a um quadro de petrosite, além da otite média, devemos considerar os seguintes diagnósticos: sinusite esfenoidal, mastoidite, labirintite infecciosa, colesteatoma congênito de porção petrosa, neoplasia, trombose de seios cavernosos, fraturas, hematomas, aneurismas.
O exame radiológico da paciente em questão mostrou sinusite esfenoidal e sinais de trombose do seio cavernoso. Podemos então pensar em duas possibilidades para o desenvolvimento da paralisia do n. abducente:
1. Extensão do processo infeccioso a partir da orelha média para o ápice petroso.
2. Sinusite esfenoidal levando à Síndrome da Fissura Orbitária Superior ou à trombose do seio cavernoso. Ambas podem evoluir para paralisia do n. abducente.
Apesar da existência de sinais de trombose do seio cavernoso, a paciente apresentava bom estado geral e boa resposta ao tratamento clínico, sendo assim optamos por tratamento conservador.
Devemos sempre encarar a otite média como uma doença potencialmente grave devido às suas sérias complicações. Frente a um paciente com otite média e dor ocular ou temporoparietal ou a um paciente já submetido à cirurgia, mantendo otorréia, devemos sempre pensar em otite média complicada.
É importante que os pediatras, clínicos e otorrinolaringologistas estejam atentos para diagnosticar as complicações de um quadro de otite média, porque apesar da queda na incidência, a morbidade e mortalidade ainda são altas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Kafka MM - Mortality of mastoiditis and cerebral complications with review of 3225 cases of mastoidites with complications. Laryngoscope, 1935;45:790-822.
2. Profant HJ. - Gradenigo's Syndrome. With a consideration of petrositis. Arch. Otolaryngol., 1931;13:347-76.
3. Kangsanarak J, Fooanant S, Ruckphaopunt K, Navacharoen N, Teotrakul S. Extracranial and intracranial complications of suppurative otitis media. Report of 102 cases. J. Laryngol. Otol., 1993;107:999-1004.
4. Goycoolea MV, Jung TTK. In Paparela MM, Shumrick DA, Gluckman JL, Meyerhoff WL. 3ª edição, Filadélfia. W.B. Saunders, 1991;1381-92.
5. Albers FWJ. Complications of otitis media. The importance of early recognition. Am. J. Otol., 1999;20:9-12.
6. Farrior J. Complication of otitis media in children. South. Med. J., 1990;83:645-8.
7. Glasscock ME. Chronic petrositis. Diagnosis and treatment. Ann. Otol. Rhinol. Laryngol., 1972;81:677-84.
8. Chole R, Donald PJ. Petrous apicitis. Clinical considerations. Ann. Otol. Rhinol. Laryngol., 1983;92:544-51.
1 Pós-graduanda a nível de mestrado da Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica da Universidade Federal de São Paulo da UNIFESP-EPM.
2 Professor Livre-Docente, Chefe da Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica da UNIFESP-EPM.
Disciplina de Otorrinolaringologia Pediátrica do Departamento de Otorrinolaringologia e Distúrbios de Comunicação Humana da UNIFESP-EPM.
Endereço para correspondência: Rua dos Otonis, nº 684, V. Clementino - 04025-001 - São Paulo - SP
Telefone/fax: (0xx11) 5576-4395 - E-mail: beaneves@terra.com.br
Trabalho apresentado na 12a Reunião da Sociedade Brasileira de Otologia realizado em novembro de 1997 no Rio de Janeiro.
Artigo recebido em 23 de agosto de 2001. Artigo aceito em 29 de outubro de 2001.