Versão Inglês

Ano:  2002  Vol. 68   Ed. 2  - Março - Abril - (18º)

Seção: Artigo de Revisão

Páginas: 268 a 275

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As deficiências auditivas relacionadas às alterações do DNA mitocondrial

Hearing loss related to mitochondrial DNA changes.

Autor(es): Maria F. P. de Carvalho 1,
Fernando A. Quintanilha Ribeiro 2.

Palavras-chave: doença genética, deficiência auditiva, DNA mitocondrial

Keywords: genetic disease, hearing loss, mitochondrial DNA

Resumo:
A deficiência auditiva é sintoma comum que pode apresentar várias etiologias, entre elas as causadas por alterações genéticas. As mutações genéticas podem ocorrer em genes nucleares e mitocondriais. A mitocôndria, uma organela intracelular, tem o seu próprio genoma (DNA), que é uma molécula circular e é transmitido exclusivamente pela mãe. As mutações do DNA mitocondrial são transmitidas pela linhagem materna, mas podem ocorrer mutações espontâneas. O fenótipo, ou expressão clínica, da mutação mitocondrial vai depender da quantidade de DNA mitocondrial mutante existente na célula, situação conhecida como heteroplasmia. A mitocôndria tem a função de disponibilizar energia para as células sob a forma de ATP (trifosfato de adenosina). Os órgãos que requerem grande quantidade de energia são mais comumente acometidos em casos de mutações do DNA mitocondrial, como células nervosas, musculares, endócrinas, ópticas e auditivas. Como a cóclea é grande consumidora de energia, uma mutação no DNA mitocondrial de células ciliadas causa deficiência auditiva do tipo neurossensorial, bilateral, simétrica e progressiva. As deficiências auditivas causadas por mutações no DNA mitocondrial correspondem a 0,5% a 1% de todas as deficiências auditivas de origem genética. Foi realizada uma extensa revisão bibliográfica, a fim de estudar as deficiências auditivas causadas por alterações no DNA mitocondrial. A deficiência auditiva pode se apresentar na forma isolada (forma não sindrômica), como nos casos de hiper-sensibilidade aos antibióticos aminoglicosídeos e presbiacusia, ou associada a outras doenças (forma sindrômica), como na síndrome de Kearns-Sayre e diabete e surdez de herança materna.

Abstract:
Hearing loss is a common symptom that may be manifested by many etiologies and it is frequently associated to genetic problems. Genetic mutations may occur in nuclear or mitochondrial genes. Mitochondria are intracellular organelles that have their own genome (DNA); mitochondrial DNA is from exclusive maternal inheritance. Although mitochondrial DNA mutations derive from maternal inheritance, spontaneous mutations may also occur. The phenotype is the clinical expression of a mitochondrial mutation and depends on the amount of mutant mitochondrial DNA contained in the cell. This phenomenon is known as heteroplasmy. The mitochondria provide energy to the cells by releasing ATP; thus, the greater the amount of energy required by the cell, the more likely it is to be affected by mitochondrial DNA mutations. Examples of high metabolism cells are nervous system cells, muscle cells, endocrine cells, optical and auditory cells. The cochlea has great energy turnover and mitochondrial DNA mutations of the hair cells will cause sensorineural hearing loss, which is normally bilateral, symmetrical and progressive. Hearing loss secondary to mitochondrial DNA mutations comprises 0.5 to 1% of all genetic hearing losses. Based on the literature review, it may be observed that hearing loss secondary to mitochondrial DNA mutations manifest in two distinct forms: isolated hearing loss (nonsyndromic), as in aminoglycoside hypersensitivity and presbyacusis, or associated to other diseases in a syndrome, such as Kearns-Sayre syndrome and maternally inherited diabetes and deafness.

Introdução

A deficiência auditiva é sintoma comum que pode ter várias etiologias - entre elas, a origem genética, responsável por deficiências auditivas congênitas e adquiridas. Estudos recentes identificaram uma série de alterações no DNA mitocon­drial associadas à deficiência auditiva.

Nosso objetivo é estudar a literatura sobre as deficiên­cias auditivas que se apresentam em quadros sindrômicos e não sindrômicos, relacionadas com algum tipo de alteração no DNA mitocondrial.

a. Mitocôndria

A mitocôndria, uma organela citoplasmática encontrada em todas as células dos mamíferos, tem a função de transformar a energia química dos metabólitos encontrados no cito­plas­ma em energia facilmente acessível à célula. Esta energia é acumulada principalmente em componentes como o trifosfato de adenosina (ATP), que será utilizado quando a célula necessitar de energia para trabalho osmótico, mecânico, elétrico ou químico.

As mitocôndrias são partículas esféricas e alongadas, medindo de 0,5 a 1 mícron de largura e até 10 micra de comprimento. À microscopia eletrônica apresenta duas membranas - uma externa, lisa, e outra interna, que apresenta invagina­ções formando as cristas mitocondriais. Cada célula contém de 2 a 100 mitocôndrias, que tendem a se acumular em locais do citoplasma onde existe intensa atividade metabólica, como o pólo apical das células ciliadas.

b. DNA mitocondrial

A mitocôndria tem seu próprio DNA - o DNA mito­condrial, que foi descoberto por Van Bruggen, Sinclair e Stevens & Nass, todos em 1966, mas só foi totalmente seqüenciado em 1981, por Anderson et al1.

O DNA mitocondrial possui uma estrutura circular fechada, com 16.569 bases pareadas e 37 genes. Para a fosfo­ri­la­ção oxidativa, processo que ocorre dentro da mito­côn­dria para a produção de ATP, são necessários 74 polipep­tí­­deos, e 13 são codificados pelo DNA mitocondrial - os outros 61 são codificados pelo DNA nuclear.

Quanto à origem do DNA mitocondrial, existem duas hipóteses: origem autógena, segundo a qual a mitocôndria, assim como o núcleo, se originaria de um processo de comparti­mentalização e especialização funcional dentro da própria célula e o seu genoma seria originário de um genoma já existente na célula procarionte; e origem exógena, também conhecida como teoria da endossimbiose, que entende a mitocôndria como sendo originária de remanes­cen­tes bacterianos, fagocitados pela célula procarionte. Estes remanescentes teriam material genético, e capacidade de metabolizar o oxigênio molecular presente no citoplasma. No início, a bactéria era um parasita, mas com o passar do tempo e evolução, as relações tornaram-se simbióticas formando assim a mitocôndria. Esta é a teoria mais aceita; porém, ainda não foi comprovada.

O DNA mitocondrial tem suas próprias características (Wallace, 19922): semi-autônomo, possui um sistema independente de replicação, transcrição e translação do seu genoma; herança materna, o DNA mitocondrial é herdado da mãe, porque as mitocôndrias presentes no espermato­zóide estão localizadas na cauda deste, que não penetra no óvulo durante a fecundação. Assim, as mitocôndrias presentes no embrião são de herança exclusivamente materna. Essa característica do DNA mitocondrial vem sendo utilizada em estudos antropológicos, e reforça a teoria de que a origem do homem foi na África. A herança materna do DNA mitocondrial nos leva a um ancestral feminino encontrado na África, conhecido como Eva africana subsaariana ou Eva mitocondrial, que seria o ancestral feminino de todos nós, apesar de geneticistas acreditarem que se trate de um grupo de ancestrais femininos, conhecidas como filhas de Eva, e não apenas de um indivíduo. A partir do DNA mitocondrial da Eva africana, foi possível estudar as linhas migratórias de todas as populações da Terra:

 Segregação replica­tiva: quando ocorre uma situação de mutação no DNA mitocondrial, esta mutação pode estar presente nas mitocôndrias de todas as células do organismo - evento conhecido como homoplasmia, e na divisão celular as células filhas terão mitocôndrias todas com DNA mitocondrial mutante. Em outra situação conhecida como heteroplasmia, a mutação pode estar presente em apenas algumas mitocôndrias de uma célula de um determinado órgão ou tecido; e, na divisão celular, esta célula pode segregar o DNA mitocondrial mutante e transmitir para as células filhas pouca ou nenhuma quantidade de DNA mitocondrial mutante. Neste caso, uma mãe pode trans­mitir ou não uma mutação mitocon­drial aos seus filhos.

 Limiar de expressão: o fenótipo de uma doença mitocondrial vai depender da severidade da mutação e da necessidade de produção de energia do órgão envolvido.

 Alto índice de mutação: como o DNA mitocondrial é pequeno e compacto, pode se desenvolver de 10 a 20 vezes mais rápidamente que o DNA nuclear, aumentan­do, assim, a probabilidade de surgir uma mutação patogênica.

Existem quatro tipos de mutações que podem ocorrer no DNA mitocondrial:

 Substituição de aminoácidos: condição rara, que se apresenta em doenças oftalmológicas ou neurológicas.

 Substituição de nucleotídeos: neste caso o nucleotídeo de um determinado locus é substituído por outro, por exemplo, o nucleotídeo adenina ser substituído pelo guanina, ou o nu­cleo­tídeo citosina pelo timina.

 Alterações numéricas de deleção ou duplicação: a deleção é a exclusão de um nucleotídeo de um determinado locus, neste caso o locus fica vazio. Na duplicação, um mesmo locus está ocupado por dois nucleotídeos. Estas mutações geralmente são esporádicas e não de origem materna.

 Depleção: consiste na redução global dos genes do DNA mitocondrial; é uma situação rara e fatal.


Figura 1. Estrutura da molécula circular do DNAmt. OH (origin heavy) e OL (origin light) mostram as origens de replicação das cadeias pesada e leve, respectivamente. HSP e LSP correspondem aos promotores transcricionais das cadeias pesada e leve; ND 1 a 6 são os genes que codificam as subunidades do complexo I da cadeia respiratória; CO I a III são os genes que codificam as subunidades do complexo IV; ATPase 6 e 8 são os genes que codificam as subunidades 6 e 8 do complexo V; Cyt b é o gene que codifica o citocromo b do complexo III; os genes tRNA estão indicados por uma única letra que corresponde ao aminoácido que cada um codifica; 12S e 16S são os genes que codificam os rRNAs (Zeviani e colaboradores, 199829).


Revisão de literatura

A. Deficiência auditiva de origem mitocondrial

Na deficiência auditiva (DA) de origem genética, as mutações no DNA nuclear podem ocorrer em genes mende­lianos e nos genes ligados ao sexo. Segundo a literatura, existem aproximadamente 100 genes nucleares envolvidos no sintoma da deficiência auditiva; e, destes, somente 30 foram mapeados.

A doença de origem mitocondrial foi primeiramente descrita por Luft et al3, em 1962, quando descreveram o caso de uma paciente com quadro de hipermeta­bo­lismo de origem não tireóidea, cuja biópsia muscular mostrou, à microscopia óptica, células com inclusões paracristalinas nas mitocôndrias.

A relação entre doença mitocondrial e deficiência auditiva foi estabelecida por Petty et al4, em 1986, quando descreveram um paciente com miopatia mitocondrial e deficiência auditiva. A incidência de deficiência auditiva de origem mitocondrial parece ser de 0,5% a 1% de todas as deficiências auditivas de origem genética.

A deficiência auditiva de origem mitocondrial pode ser de dois tipos: sindrômica, quando a perda auditiva está relacionada a um quadro clínico múltiplo, muitas vezes grave; e o tipo não sindrômica, que ocorre quando o quadro de surdez é o único sintoma.

B - Deficiência auditiva associada a

quadros sindrômicos

Muitas doenças mitocondriais apresentam quadros clínicos exuberantes e variados, que se repetem em vários pacientes, constituindo, assim, uma síndrome. O Quadro 1 resume todas as síndromes que apresentam deficiência auditiva neurossensorial (DASN) como sintoma, suas características clínicas, gene mutante, tipo de mutação e características da DASN.

Vamos nos ater a comentar apenas dois quadros sindrô­micos que consideramos de maior interesse para o otorrinolaringologista.

1. Diabetes e surdez de herança materna

Em 1989, Lemkes et al5 descreveram uma família alemã na qual os parentes maternos apresentavam diabetes mellitus e DASN que se iniciava por volta dos 30 anos.

Em 1992, Van Den Ouweland6, estudando outras famílias com diabetes e surdez de herança materna, descobriram uma mutação no DNA mitocondrial comum a todos os pacientes, que consiste na substituição do nucleotí­deo adenina pelo guanina no locus 3243 do gene tRNA codificador de uma leucina (gene tRNAleu ).

O diabetes e a surdez de herança materna correspondem a 1,5% de todos os casos de diabete no Japão e na Holanda.

As características clínicas do diabetes e surdez estão bem estabelecidas:

 tipo de diabetes é insulino-dependente: na instalação do quadro, o diabetes pode ser não insulinodependente, mas, ge­ral­mente, evolui para insulinodependente, porque a alteração mitocondrial altera a secreção de insulina pelo pâncreas;

 a herança é exclusivamente materna;

 os pacientes são magros;

 a idade de instalação fica abaixo dos 40 anos;

 o tipo de deficiência auditiva é neurossensorial, inicialmente nas freqüências agudas, progressiva e recrutante, suge­rindo um acometimento puramente coclear.

2. Síndrome de Kearns-Sayre

Esta síndrome foi descrita por Kearns & Sayre, em 1958, com quadro clínico de oftalmoplegia externa, DASN e graus variados de doença degenerativa e miopatia tais como: bloqueio de ramo cardíaco, ataxia cerebelar, paralisia de sétimo e oitavo pares cranianos, fraqueza dos músculos da face, pescoço e extremidades e aumento dos níveis protéicos no líquor.

Zeviani et al7, em 1989, estudando pacientes com esta síndrome, encontraram deleções em vários genes do DNA mitocondrial; e Poultron et al8, no mesmo ano, encontraram duplicações em vários genes do DNA mito­condrial.

O tipo de herança envolvido nessa síndrome é esporádica, e não de origem materna; os pacientes descritos são filhos de pais saudáveis.

C. Deficiência auditiva
associada a quadros não sindrômicos

Nos chamados quadros não sindrômicos, a DASN de origem mitocondrial é o único sintoma presente, geralmente bilateral e de caráter progressivo.

Neste caso, também vamos comentar apenas dois quadros de maior interesse para o otorrinolaringologista.

1. Hiper-sensibilidade aos aminoglicosídeos

Os antibióticos aminoglicosídeos foram amplamente utilizados na década de 60, para tratamento de infecções do trato respiratório; e alguns pacientes, após terem feito uso de uma pequena quantidade deste antibiótico, já apresentavam deficiência auditiva. Por este motivo, o efeito ototóxico dos aminoglicosídeos ficou mais conhecido e seu uso foi restrito na década de 70.

Em 1989, Higashi9, que estudou famílias com deficiência auditiva após uso de aminoglicosídeos, observou um padrão de herança materna e sugeriu que alguma mutação no DNA mitocondrial poderia estar relacionada com a hiper-sensibilidade a este antibiótico.

Hutchin et al10, em 1993, descobriram a mutação no DNA mitocondrial relacionada com esta hipersensibilidade, que é a troca do nucleotídeo adenina pelo guanina no locus 1555 (A1555G) do gene 12S RNA ribossômico (12S rRNA). Este tipo de mutação é homoplásmica.

O tipo de deficiência auditiva é neurossensorial, bilateral e profunda.

É claro que nem todo caso de hiper-sensibilidade a amino­glicosídeo está relacionado com uma mutação no DNA mitocondrial; segundo Einsink et al11 (1998), a mutação A1555G do gene 12S rRNA foi encontrada em apenas 17% da população norte-americana com quadro não familiar de DASN, após receber doses normais de amino­glicosídeos, demonstrando tratar-se de uma mutação rara.

2. Presbiacusia

Seidman et al12 (1996) estudaram o DNA mitocondrial extraído de cóclea de seis ossos temporais humanos, oriundos do laboratório de ossos temporais da Universidade de Chicago. Sabiam que três cócleas eram de pacientes com presbiacusia; e as outras três, de pacientes com audição normal. O DNA mitocondrial foi extraído e amplificado pela técnica de PCR. Como resultado, encontraram deleção no DNA mitocondrial, no locus 4977 do gene citocromo b, em duas das três cócleas dos pacientes com presbiacusia; as cócleas dos pacientes com audição normal não apresentaram a deleção.

Segundo os autores, a audição de sons de alta freqüência é um processo que demanda mais energia do que sons de baixa freqüência; por isso, a estria vascular é rica em mitocôndrias, principalmente na espira basal da cóclea, o que reflete um maior envolvimento de DASN em altas freqüências em alterações mitocondriais.

A fisiopatologia para este tipo de alteração, segundo esses autores, consiste em as deleções no DNA mitocondrial estarem ligadas a lesões oxidativas. Radicais livres de oxigênio (RLO) são produzidos in vivo durante a respiração celular e funcionam como via de auto-oxidação de moléculas químicas e biológicas. RLO são contaminantes biológicos que podem ser induzidos por ionização e radiação ultra-violeta. RLO inibem a replicação e a transcrição do DNA, reagindo com lipídios, proteínas e ácidos nucléicos; são formados naturalmente como resultado das reações da fosforilação oxidativa e poderiam contribuir de forma importante para a lesão do DNA no processo de envelhecimento.

Ver Quadro
Quadro 1. Síndromes causadas por alterações no DNAmt que apresentam DA como característica clínica (resumo da literatura).


Quadro 2. Alterações no DNAmt causando DASN do tipo não sindrômica (resumo da literatura).


Discussão

Fisiopatogenia

Por ser a mitocôndria uma organela responsável pela respiração celular, mutações no seu DNA não causam malformações, mas sim alterações funcionais nas células afetadas.

O acometimento da orelha interna não é uma incógnita total; em todos os casos em que a deficiência auditiva foi investigada, o tipo da deficiência auditiva foi neurossensorial e muitos autores sugerem um comprometimento coclear13,14,15,16,17,18. Outros autores vão ainda além, sugerindo um comprometimento de células ciliadas externas8,19; outros apontam alteração retrococlear, mais especificamente no núcleo coclear do tronco cerebral20.

Na verdade, a fisiopatogenia é desconhecida, e foram sugeridas várias teorias. Yamasoba et al18 (1996), que estudaram o quadro de diabetes e surdez de herança materna, apresentaram a seguinte teoria:

Alteração no DNA mitocondrial ® alteração na síntese protéica mitocondrial ® alteração na fosforilação oxidativa ® redução na formação de ATP ® alteração das bombas iônicas ® alteração no balanço de potássio, sódio e cálcio ® morte celular.

Vale salientar que estes autores apontaram para a possibilidade de a redução da fosforilação oxidativa ser progressiva, não ocasionando alteração clínica enquanto há produção suficiente de ATP para o bom funcionamento celular; mas, a partir do momento em que a redução da produção de ATP passa a ser significativa, os sintomas clínicos se manifestam, o que, no nosso ver, explicaria a idade de instalação e a progressão tanto do diabetes quanto da deficiência auditiva neurossensorial.

Histopatogenia

O único substrato anatomopatológico bem conheci­do de uma doença mitocondrial é o da miopatia mitocon­drial, que apresenta fibras musculares conhecidas como fibras raggedred, que têm este nome devido à aparência de fibras com degeneração granular após serem coradas com a coloração tricrômico de Gomori modificada. A coloração avermelhada representa proliferação de elementos mitocondriais e a presença destas fibras sugere alteração no sistema transportador de elétrons da cadeia respiratória que se encontra na mitocôndria4,21,22. É freqüente a associação de miopatia mitocondrial com deficiência auditiva, porque tecidos que finalizam a mitose durante a embriogênese, conhecidos como pós-mitóticos, como tecido nervoso, muscular e auditivo, tendem a apresentar altos níveis de heteroplasmia, devido à segregação replicativa, ultrapassando o limiar de expressão e apresentando quadro clínico de miopatia, encefalopatia e deficiência auditiva19,23.

Infelizmente, até hoje só encontramos dois trabalhos publicados sobre a histopatogenia da deficiência auditiva de origem mitocondrial. O primeiro trabalho é de Lindsay & Hinojosa24, publicado em 1976, e descreve as características das orelhas externa, média e interna de uma paciente com a síndrome de Kearns-Sayre, na qual foi possível estudar o osso temporal, após sua morte, aos 19 anos de idade. No estudo dos ossos temporais, observaram que as duas cócleas apresentavam grau avançado de degeneração do órgão de Corti, membrana tectória e estria vascular, membrana de Reissner colapsada, lâmina espiral óssea sem fibras nervosas, redução do suprimento vascular para estruturas membranosas e redução de 60% a 70% das células do gânglio espiral em todas as espiras. Após 23 anos, Yamasoba et al18 publicaram um trabalho semelhante, só que neste caso a pacien­te apresentava diabetes e surdez de herança materna - e era portadora da mutação A3243G, a mais comum entre os pacientes com diabetes e surdez. Os achados foram bem semelhantes, com degeneração da estria vascular e células ciliadas externas.

Pesquisa da mutação

Na suspeita de uma doença mitocondrial, a pesquisa da mutação pode ser feita a partir de amostras de leucócitos ou células musculares sendo submetidas a duas técnicas: o PCR ou reação em cadeia da polimerase que é muito utilizado para pesquisar substituições de nucleotídeos; ou a técnica de Southern blot, usado principalmente na pesquisa de deleções.

Em geral, as deleções são esporádicas e as substituições de nucleotídeos são de herança materna.

Na suspeita de uma mutação no DNA mitocondrial do tipo substituição de nucleotídeos, deve se pesquisar os genes tRNA codificador de lisina (tRNAlys), tRNA codificador de leucina (tRNAleu), tRNA codificador de serina (tRNAser(ucn)) e o gene 12S RNA ribossômico (12S rRNA). Estes genes são importantes porque, em alguns casos, as mesmas mutações podem causar fenótipos totalmente diferentes. Por exemplo, no caso do gene tRNAleu, a substituição do nucleotídeo adenina pelo gua­nina no locus 3243 pode causar três fenótipos diferentes: o quadro da oftalmoplegia externa crônica progressiva, o diabetes e surdez de herança materna e a síndrome conhecida como MELAS, uma miopatia mitocondrial associada à encefalopatia, acidose láctica e episódios de acidente vascular cerebral.

Não se sabe o porquê de uma mesma mutação poder causar fenótipos tão diferentes. Uma causa pode ser o grau de hetero­plasmia; quanto maior a quantidade de DNA mitocondrial presente nas células, mais exuberante e mais grave seria o quadro; e, quanto menor a quantidade de DNA mutante, mais leve seria o quadro clínico; ou então o DNA mitocondrial mutante estaria restrito nas células auditivas e pancreáticas, no caso do diabete e surdez, e restrito às células oftalmológicas, na oftalmo­plegia crônica externa progressi­va6. Segundo Hammans et al25 (1995), o DNA nuclear poderia influenciar na expressão fenotípica da mutação, modulando os efeitos desta.

Assim, podemos observar que existem genes do DNA mitocondrial, cujas mutações geram quadros clínicos nos quais a deficiência auditiva neurossensorial é um sintoma freqüente. Nos pacientes com deficiência auditiva neurossensorial a causa genética é pouco investigada em nosso meio; portanto, para fins diagnósticos, sugerimos que, frente a um quadro de deficiência auditiva neurossensorial com características de transmissão exclusivamente materna, deve se procurar características clínicas e laboratoriais para tentar encaixá-la em algum quadro sindrômico; se a deficiência auditiva for o único sintoma, pode ser do tipo não sindrômica. Mesmo se não houver história de transmissão materna, a etiologia mitocondrial não deve ser descartada, porque pode ser causada por deleções no DNA mitocondrial.

Tratamento e perspectivas

O tratamento de uma doença mitocondrial ainda está em fase de pesquisa: alguns autores citam a terapia gênica ou a produção laboratorial de cofatores11,26 como tratamentos para o futuro.

A terapia gênica consiste na transferência de genes selecionados para um hospedeiro, e esta transferência usa um vetor, que pode ser um vírus, com tropismo pelo órgão que se deseja tratar.

Os cofatores são polipeptídeos necessários para a fosforilação oxidativa e, através de testes bioquímicos, pode-se descobrir qual cofator está deficiente pela mutação no DNA mitocondrial - e então substituí-lo por um cofator sintético, com o objetivo de restabelecer a fosforilação oxida­tiva e a produção de ATP.

O aconselhamento genético é essencial nos casos de hiper-sensibilidade aos aminoglicosídeos13.

O implante coclear é uma medida de suporte válida para os casos de deficiência auditiva neurossensorial de origem mitocondrial27,28,29.

Conclusões

Após extensa revisão bibliográfica, podemos concluir:

1. As deficiências auditivas relacionadas com alterações do DNA mitocondrial podem ser sindrômicas e não sindrômicas.

2. A prevalência da deficiência auditiva neurossensorial de origem mitocondrial é baixa, correspondendo a aproximadamente 0,5% a 1% de todas as deficiências auditivas de origem genética.

3. O DNA mitocondrial pode ser influenciado pelo DNA nuclear.

4. O fenótipo das mutações mitocondriais pode variar de acordo com o grau de heteroplasmia.

5. As mutações do DNA mitocondrial são de herança materna; porém, podem ocorrer espontaneamente.

6. A fisiopatogenia da deficiência auditiva decorrente de uma mutação do DNA mitocondrial está relacionada à falta de ATP em órgão de grande requerimento, como a cóclea.

7. A deficiência auditiva de origem mitocondrial é do tipo neurossensorial, bilateral, progressiva e simétrica. O grau da deficiência e a idade de instalação são variáveis.

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1 Doutora do Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.
2 Professor Adjunto do Departamento de Otorrinolaringologia da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

Realizado no Departamento de Otorrinolaringologia da Santa Casa de São Paulo. Dissertação apresentada ao curso de Pós-Graduação da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo para obtenção do Título de Mestre em Medicina.

Endereço para correspondência: Dra. Maria de Fátima Carvalho - Rua Hilário Furlan 107 - Brooklin Novo - CEP 04571-180 São Paulo / SP. - Telefone/Fax: (0XX11) 5505-1915 - E-mail fatimaorl@uol.com.br

Artigo recebido 7 de março de 2001. Artigo aceito em 3 de abril de 2001.

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