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Ano:  2003  Vol. 69   Ed. 1  - Janeiro - Fevereiro - ()

Seção: Artigo Original

Páginas: 40 a 45

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Cuidados nos pacientes com hemofilia e doença de von Willebrand na cirurgia eletiva otorrinolaringológica

Otolaryngology surgery: management of elective surgery in patients with haemophilia and von Willebrand disease

Autor(es): Marise P. C. Marques,
Érica S. T. Leite

Palavras-chave: hemofilia, von Willebrand, cirurgia otorrinolaringológica.

Keywords: haemophilia, von Willebrand, otolaryngology surgery.

Resumo:
Foi realizado um estudo prospectivo de 10 anos de 20 pacientes com hemofilias ou doença de von Willebrand (DvW) com indicação de cirurgia otorrinolaringológica. Os pacientes foram submetidos a um total de 25 cirurgias otorrinolaringológicas eletivas. A idade média foi de 23,75 anos (2 a 62 anos). O grupo de estudo consistiu em 14 hemofílicos, 11 com hemofilia A grave (1 do sexo feminino), uma portadora com 30% de atividade de fator VIII (FVIII), um hemofílico B leve e uma com deficiência grave de fator X; 6 com DvW, 4 tinham o tipo 1 (3 mulheres), um o tipo 2A e um o tipo 3. Treze hemofílicos tinham síndrome de imunodeficiência adquirida. A duração média do procedimento foi de 1 hora e 37 minutos (15 minutos a 12 horas). O defeito da coagulação foi corrigido com desmopressina (DDAVP), com concentrado de FVIII de pureza intermediária 8Y, com criopreciptado ou com complexo protrombínico não ativado (PPSB), de acordo com os níveis plasmáticos do fator e da severidade da cirurgia. O ácido épsilon aminocapróico também foi usado em associação. Em 1 hemofílico A grave houve sangramento pós-operatório que se resolveu com a elevação do nível mínimo de FVIII para 80% e em 1 paciente com DvW do Tipo 3 houve sangramento pós-operatório pela dificuldade de identificação do melhor concentrado a ser reposto. Após o uso do concentrado de pureza intermediária 8Y, houve controle do sangramento. Todos os outros pacientes apresentaram a hemostasia considerada normal ou excelente. Concluiu-se que pacientes com hemofilias ou DvW não apresentam um risco cirúrgico aumentado se for realizada uma terapia adequada.

Abstract:
A 10-year prospective research was realized in 20 patients with haemophilia or von Willebrand disease (vWD). They were submitted to a total of 25 elective otolaryngological surgical events. The average age of the patients was 23,75 years (2-62 years). The study group consisted of 14 haemophiliacs, 11 with severe haemophilia A (1 female), 1 female with 30% of VIII factor (VIIIF) level, 1 male with haemophilia B and 1 female with severe factor X deficiency; and 6 with vWD, 4 type 1 (3 females), 1 male type 2 A and 1 male type 3. Acquired immunodeficiency syndrome was present in 13 haemophilic patients. The mean duration of the surgical events was 1 hour and 37 minutes (15 min-12 hours). The coagulation defect was corrected with desmopressin (DDAVP), intermediate purity VIIIF concentrate 8Y, cryoprecipitated or not activated protrombinic complex (PPSB), according to factors levels and the severity of the surgery. Epsilon aminocaproic acid was used associated. In 1 severe haemophiliac A patient an excessive bleeding was observed in the second day of the postoperative period which ceased with elevation of the minimal level of VIIIF to 80%. In another patient, with type 3 vWD, severe postoperative bleeding occurred, because of a difficult to identify the best reposition blood coagulation factor for him. After the use of intermediate purity VIIIF concentrate 8Y the bleeding was controlled. The haemostatic effect in the other patients was rated as normal or excellent. It is concluded that patients with vWD or haemophilia do not carry an increased operative risk if appropriate therapy is given.

INTRODUÇÃO

As hemofilias A e B são desordens hereditárias da coagulação que resultam em defeitos da síntese dos fatores VIII (FVIII) e IX (FIX) respectivamente. Ambas são transmitidas como desordens recessivas ligadas ao X, sendo praticamente exclusiva dos homens. A redução dos níveis funcionais dos FVIII e FIX resulta em prolongamento do tempo de sangramento. As hemofilias têm a mesma apresentação clínica, sendo a dosagem específica dos fatores a única forma de distinção entre as mesmas. A diferenciação é importante, pois o tratamento é específico com relação ao tipo do fator a ser reposto.1

Dependendo dos níveis de fatores mensurados no plasma, a hemofilia pode ser classificada em leve (6 - 25% de atividade de fator), moderada (1 - 5% de atividade) e grave (< 1%). Todos os membros com hemofilia de uma mesma família têm o mesmo grau de deficiência de fator.1

A doença de von Willebrand (DvW) é a mais freqüente desordem da coagulação, sendo transmitida de forma autossômica dominante. É causada por uma anormalidade quantitativa ou qualitativa do fator de von Willebrand (FvW), que é uma glicoproteína multimérica de alto peso molecular, sintetizada pelas células endoteliais e megacariócitos2-5.

As principais funções do FvW são: (a) mediar a interação entre as plaquetas e o colágeno subendotelial; (b) mediar a interação plaqueta-plaqueta, (c) atuar como carreador molecular do FVIII e estabilizador de sua atividade coagulante. A deficiência do FvW resulta em alterações das fases primárias e secundárias da coagulação.2,4,5

A nova classificação pela Sociedade Internacional para Trombose e Hemostasia - ISTH identificou 3 tipos principais de DvW: (a) tipo 1 (cerca de 80% dos casos) - deficiência parcial quantitativa de FvW; (b) tipo 2 - anormalidade qualitativa do FvW com 2 subtipos principais: subtipo 2A - com ausência de multímeros de alto peso molecular (HMW), e o subtipo 2B - com aumento da afinidade do FvW à glicoproteína plaquetária 1 b e secundária perda de multímeros HMW, usualmente acompanhado de trombocitopenia; (c) tipo 3 - deficiência severa de FvW com deficiência secundária de FVIII em vários graus. O padrão familiar não é repetitivo como na hemofilia, variando entre os membros de uma mesma família.4,6,7

No acompanhamento dos pacientes com coagulopatias é importante o tratamento das hemorragias agudas, cuidados perioperatórios e profilaxia das hemorragias. A educação direcionada destes pacientes é fundamental para a redução da morbidade e da mortalidade, com ênfase à higiene oral, assim como a vacinação contra hepatite A e B. O uso de injeções intramusculares, assim como de drogas como os antinflamatórios não esteróides e outras que inibem a atividade plaquetária devem ser evitados.1,2
Os pacientes com coagulopatias podem ser submetidos as cirurgias eletivas, sendo necessária uma equipe multidisciplinar, com ótima interação entre o cirurgião, hematologista, hemoterapeuta e laboratório de coagulação. É importante a correção da coagulação durante o ato cirúrgico e no período pós-operatório até a cicatrização da ferida operatória.1

As recomendações gerais incluem: (a) excluir a presença de anticorpo inibidor de fator antes da cirurgia; (b) prevenir o paciente quanto ao uso de medicações anti-plaquetárias antes e após a cirurgia; (c) fazer a cirurgia no início do dia e no início da semana para prevenir problemas administrativos e (d) ter a certeza de que haverá suficiente quantidade de produtos de reposição para o per e pós-operatório, assim como reserva de sangue fenotipado e submetido a triagem para doenças transmissíveis por hemoderivados.1

O objetivo deste trabalho prospectivo foi o de avaliar, em um período de 10 anos, a resposta a um tratamento padronizado para a correção da crase sangüínea em pacientes que tinham hemofilia ou doença de von Willebrand, e que fossem submetidos a cirurgia otorrinolaringológica de pequeno, médio e grande porte.

PACIENTES E MÉTODO

Foi realizado um estudo prospectivo, no período de março de 1992 a fevereiro de 2002, de 20 pacientes de ambos os sexos, com idade variando entre 2 e 62 anos, com o diagnóstico de hemofilia ou DvW, com indicação de cirurgia eletiva otorrinolaringológica.

Os pacientes cumpriram um protocolo de cuidados perioperatórios, com estudo da hemostasia (agregação plaquetária, dosagem de fatores e pesquisa de inibidor); diagnóstico e classificação do distúrbio da coagulação (tipo de hemofilia e gravidade: leve, moderada e grave, e tipo da DvW: tipo1, tipo 2 e subtipos e tipo 3); sorologia para hepatites e HIV; e correção do distúrbio da coagulação no per-operatório e pós-operatório, até a cicatrização da ferida cirúrgica, com agentes farmacológicos: antifibrinolíticos, análogo sintético da vasopressina; e/ou com hemoderivados: terapia de reposição de acordo com o tipo e gravidade da coagulopatia, assim como com o porte cirúrgico do procedimento.

O nível mínimo de fator foi elevado para 100% no per-operatório, uma vez que as cirurgias otorrinolaringológicas têm alto potencial hemorrágico. Foi feita realizada a dosagem diária do nível mínimo, sendo mantido em 50% até o 12º dia de pós-operatório.

Foram excluídos do estudo pacientes com anticorpo plasmático inibidor de fator de coagulação.
Foram avaliados: as características clínicas do grupo de pacientes, o porte do procedimento, a terapêutica instituída, a eficiência do tratamento no controle do sangramento per e pós-operatório.

RESULTADOS

Dos 20 pacientes, 14 eram do sexo masculino, destes 11 eram hemofílicos (10 com hemofilia A grave e 1 com hemofilia B leve) e 3 com DvW. Dos pacientes do sexo feminino, 1 paciente era portadora do gene para hemofilia A, com 30% de atividade de FVIII, 1 hemofílica A grave, 1 com deficiência grave de fator X e 3 com DvW.

A idade variou de 2 a 62 anos, com idade média de 23,75 anos. Dos hemofílicos, todos tinham síndrome de imunodeficiência adquirida (SIDA).

Foram efetuados um total de 25 procedimentos cirúrgicos nos 20 pacientes. A paciente nº 4 foi submetida a 2 timpanotomias em dias diferentes, assim como os paciente nº 5, 6 e 7 que fizeram mais de 1 punção de maxilares por via fossa canina, em tempos diferentes e com nova reposição a cada procedimento.

Os procedimentos tiveram uma duração média de 1 hora e 37 minutos, variando de 15 minutos a 12 horas.

O paciente nº 15, com DvW tipo 3, tinha sinusite recorrente, com roncos e volumosas epistaxes no pré-operatório, já tendo sido submetido a diversos tamponamentos. Foi submetido ao tratamento cirúrgico como tentativa de melhor controle das sinusites e das epistaxes. Foram testados vários tipos de concentrados de FVIII /FvW, com boa resposta apenas ao 8-Y e ao criopreciptado. No momento com 6 anos de seguimento houve controle das epistaxes e das sinusites recorrentes.

A paciente identificada pelo nº 20, com DvW do tipo 1, foi operada em conjunto com as equipes de Cirurgia de Cabeça e Pescoço e Neurocirurgia. O tempo cirúrgico teve uma duração total de 12 horas, com reposição de concentrado de FVIII/FvW no per e pós-operatório. Não houve qualquer complicação hemorrágica.

Os resultados foram tabulados em duas tabelas com ênfase na idade, sexo, coagulopatia, doenças associadas de interesse otorrinolaringológico, procedimento cirúrgico realizado, como foi realizada a correção do distúrbio da crase e nas complicações pós-operatórias.

DISCUSSÃO

A DvW foi originalmente descrita em 1926 pelo médico Erik von Willebrand. A desordem é associada a sangramentos mucosos, incluindo epistaxe, hipermenorréia e excessivo sangramento em cirurgias e manipulações dentárias. Na DvW os pacientes apresentam uma anormalidade quantitativa ou qualitativa do FvW. Mais de 20 tipos e subtipos foram descritos. Cerca de 70% têm o tipo 1, 10-20% o tipo 2A e 2B e aproximadamente 10% o tipo 3. Dos pacientes do estudo com DvW, houve uma maior prevalência de pacientes com o tipo 1 (4 pacientes), seguida pelos tipo 2A e 3 (1 paciente cada), concordando com outros autores. A história clínica de sangramento é importante para o diagnóstico. Se a DvW é suspeitada, devem ser realizadas dosagens de tempo parcial de tromboplastina ativada (PTTa), dosagem do tempo de sangramento, do fator VIII:C, do cofator ristocetina e do antígeno de von Willebrand. Testes adicionais de adesão plaquetária com ristocetina e da estrutura multimérica e dos testes de banda de colágeno são importantes para a diferenciação dos tipos de DvW. A DvW afeta cerca de 1-3% da população, não sendo diagnosticada na maioria das pessoas, sendo 2 vezes mais freqüentes do que as hemofilias. Embora a casuística geral da DvW seja maior do que a das hemofilias, neste estudo, os pacientes cirúrgicos mais freqüentes foram os de hemofilia (14 hemofilias: 6 DvW), provavelmente por influência da associação com a SIDA, o que tornou necessárias as intervenções para diagnóstico e tratamento das intercorrências da doença viral.2,3,4,6,8

Um dos grandes desafios no tratamento dos hemofílicos é o desenvolvimento de anticorpos inibidores de FVIII e FIX. A prevalência do inibidor de FVIII oscila em torno de 4 a 20% nos pacientes com hemofilia A. Somente 1-4% dos pacientes com hemofilia B desenvolvem inibidores. Os pacientes que apresentam maior risco de desenvolver inibidores são os: com hemofilia grave, com menos de 30 anos, com predisposição genética, com antigenicidade para a terapia de reposição de fator e em paciente negros, quando comparados com brancos. Os pacientes com DvW do tipo 3, politransfundidos, também podem desenvolver inibidores, embora mais raramente.9-12

O tratamento dos pacientes com inibidores de fator de coagulação é importante para a parada das hemorragias agudas, para a melhora da hemostasia antes e após cirurgias e para induzir a imunotolerância ao fator. As cirurgias eletivas são geralmente contra-indicadas nos pacientes com inibidor. Por este motivo excluímos estes pacientes do protocolo de tratamento cirúrgico eletivo otorrinolaringológico.1,9-11

No tratamento das coagulopatias, tem-se a terapêutica transfusional de reposição e a não transfusional. Na não transfusional, destaca-se o uso de desmopressina e dos agentes antifibrinolíticos.12

A desmopressina (1-deamino-8-D-arginina vasopressina, DDAVP) é um análogo sintético da vasopressina que foi originalmente desenvolvido para o tratamento do diabete insípido e vem sendo usado no tratamento da DvW e da hemofilia desde 1977. O DDAVP aumenta as concentrações plasmáticas do FVIII e do FvW, sem efeitos colaterais importantes tanto em voluntários saudáveis, quanto em hemofílicos com DvW. O modo de ação do DDAVP ainda não é completamente conhecido. A adição de DDAVP à cultura de células endoteliais não teve efeito na síntese ou secreção do FvW, haveria provavelmente uma outra via ainda não identificada.3,12-14

As vantagens do DDAVP são: baixo custo e ausência de risco de transmissão de doenças. Pode ser indicado para cirurgias de menor porte, assim como para sangramentos de pequeno e médio porte. Nos sangramentos mais graves e nas cirurgias de maior porte é mais apropriado o uso de concentrados de FVIII/FvW.1,4,12-14

O DDAVP é administrado na dosagem de 0,3 µg/Kg, diluído em 50 mililitros (ml) de solução salina e administrado via endovenosa em cerca de 30 minutos. Aumenta em 3 a 5 vezes os níveis de FVIII e de FvW no plasma, em aproximadamente 30 minutos, mantendo-os elevados por 6-8 horas. As infusões podem ser repetidas a cada 12-24 horas, a depender do tipo e severidade do sangramento. A via subcutânea também pode ser usada, na dosagem de 0,4µg/Kg. O DDAVP intranasal foi desenvolvido para o diabete insípido e para a enurese noturna e não para hemofilia ou DvW. O Stimate® Nasal Spray é a vasopressina de uso intranasal indicada para as coagulopatias (150 µg/atomização) - 150 µg/dia em pacientes até 50 Kg e 300 µg com mais de 50 Kg. Os pacientes tratados repetidamente com DDAVP podem tornar-se menos responsivos à droga.1,4,12-14

O DDAVP é mais efetivo no tipo 1 da DvW, especialmente naqueles com plaquetas normais. Os com hemofilia leve e moderada geralmente também respondem bem. É contra-indicado no tipo 2B da DvW, por causa do aparecimento transitório de trombocitopenia. Os pacientes com o tipo 3 da DvW ou com hemofilia grave não respondem ao DDAVP. O agente foi utilizado na paciente portadora com 30% de FVIII, no paciente com hemofilia leve e nos pacientes com DvW do tipo 1 em cirurgias de pequeno e médio porte, sendo em quatro pacientes associado ao agente antifibrinolítico, ácido épsilon aminocapróico (EACA), Nos pacientes do estudo, controle do sangramento foi considerado excelente, concordando com o descrito por outros autores.1,11,12,14-16

A ativação e inibição da hemostasia depende da interação entre 4 sistemas biológicos: parede vascular, plaquetas, sistema da coagulação e fibrinolítico. O mecanismo hemostático inicia-se no sítio de lesão vascular até a formação do tampão de fibrina. O processo de coagulação é regulado pelos anti-coagulantes fisiológicos, isto é, o sistema fibrinolítico.17

Os agentes antifibrinolíticos são drogas sintéticas que inibem a fibrinólise, interferindo na ligação do plasminogênio à fibrina, o que previne a lise do coágulo recém formado. O EACA (50 mg/kg - 4 vezes ao dia) e o ácido tranexâmico (25 mg/Kg - 3 vezes ao dia) são os aminoácidos antifibrinolíticos mais usados. Podem ser administrados por via oral, endovenosa ou topicamente, sendo úteis para epistaxe, sangramentos de cavidade oral, gastrointestinal e metrorragias. São úteis em condições de aumento localizado ou generalizado de fibrinólise. O efeito hemostático ocorre pela atividade fibrinolítica ou por interação adicional com plaquetas e outros mecanismos desconhecidos. São contra-indicados nos sangramentos do trato geniturinário e nos pacientes com potenciais riscos de trombose.1,4,5,14,18,19
A terapia hormonal com os estrogênios também pode ser utilizada com o objetivo de elevar os níveis plasmáticos de FvW, mas a resposta é variável e imprevisível, não podendo ser amplamente utilizados. Na experiência clínica continuada, são muito úteis para reduzir a gravidade da metrorragia em mulheres com DvW, mesmo nas tipo 3, ainda que não modifiquem os níveis de FVIII-FvW. A terapia hormonal não foi usada em nenhum dos pacientes do estudo.7

Na terapia de reposição com hemoderivados, os concentrados comerciais de FVIII e FIX são melhores do que o criopreciptado ou plasma fresco congelado, por conterem quantidades padrão de fator e pelo menor risco de transmissão de doenças virais. Os concentrados são preparados a partir de um pool de plasma derivado de um grande número de doadores. Uma boa seleção de doadores e o tratamento dos concentrados com técnicas de inativação viral reduziram muito o risco de transmissão dos vírus da hepatite e da SIDA. Os pacientes com hemofilia A do estudo foram repostos com criopreciptado ou 8Y (fator de pureza intermediária FVIII/FvW). A escolha do produto foi de acordo com a disponibilidade por ocasião do procedimento. Todos os de hemofilia que usaram hemoderivados tinham a forma grave, ou seja, não responsivos ao DDAVP.1

A quantidade de FVIII a ser infundida é dependente da indicação terapêutica e do nível de fator do paciente. O acompanhamento no pós-operatório destes pacientes deve ser realizado através da dosagem de nível mínimo de FVIII a cada 24 horas, como foi realizado nos pacientes do estudo. Nos pacientes cirúrgicos com alto potencial hemorrágico (como as cirurgias otorrinolaringológicas) deve-se elevar o nível mínimo para 100% para o per-operatório e manter o nível mínimo no pós-operatório com 50% até o 12º dia. Um paciente hemofílico A grave apresentou sangramento pós-operatório com o nível mínimo de 50%, e após a elevação do mesmo para 80%, houve a supressão do sangramento. Cada unidade internacional (UI) infundida por quilograma de peso (Kg), aumenta em 2% (0,02 UI/ml), com a meia-vida aproximada de 10-12 horas, está representado na seguinte fórmula: FVIII dose (UI/Kg) = aumento do % de FVIII desejável X 0,5 1

A terapia transfusional com derivados sangüíneos que contenham FVIII/FvW são o tratamento de escolha para os pacientes com DvW que não respondem ao DDAVP, tipo 2 e 3. Podem ser usados plasma fresco congelado (necessitam grandes volumes), criopreciptado (5-10 X mais FvW do que o plasma fresco congelado), ou concentrados de pureza intermediária inativados para vírus, como o 8Y. Nos pacientes do estudo foi usado o 8Y em uma paciente com o tipo 1 da doença, ao invés do DDAVP, devido ao longo tempo cirúrgico, intensidade da perda sangüínea trans-operatória e extensão da doença tumoral, tendo sido inclusive necessária a ressecção parcial de dura-máter e reconstrução da mesma e da base anterior do crânio e na criança de 2 anos com o tipo 3 da doença.6,13,16,20,21

Em uma paciente com deficiência grave de fator X foi usado o complexo protrombínico (PPSB). O PPSB é um derivado plasmático que contém os fatores II, VII, IX e X, e proteínas C e S. É usado no tratamento de reposição da hemofilia B e nas demais deficiências. É também necessário o conhecimento do sítio e a severidade do sangramento, assim como dos níveis plasmáticos dos fatores para a reposição do PPSB. A meia-vida do PPSB é de 18 - 24 horas. Calcula-se na seguinte fórmula:
Dose de FIX (UI/Kg) = aumento do % de FIX desejável X 1,2 1

Há um risco de produzir complicações trombótica, como coagulação intravascular disseminada, pela ativação de fatores da coagulação. Deve ser evitada a associação com agentes antifibrinolíticos pela potencialização de tais efeitos.1

Nos pacientes submetidos a tonsilectomia, as lojas tonsilares foram totalmente fechadas, evitando a presença de espaço morto, para diminuir a área cruenta exposta. Os pacientes de turbinectomia e de adenoidectomia foram mantidos tamponados por 48 horas. O LASER no tratamento dos hemofílicos é um método auxiliar muito importante para diminuir o risco de sangramento, como a miringotomia com OtoScan LASER e na tonsilectomia com o Nd YAG LASER, para a dissecção da loja tonsilar. O LASER de CO2 de alta energia tem excelente efeito hemostático, especialmente em pacientes ou lesões com potencial aumentado de sangramento, principalmente quando comparados resultados de procedimentos efetuados de forma tradicional. Não houve a oportunidade do uso do LASER nestes pacientes pela falta de disponibilidade do referido material.3,14,19,22-24

Alguns autores descrevem em seus tratados que a alteração da coagulação é contra-indicação absoluta para a realização de cirurgias. Neste estudo de 20 pacientes, com cirurgias de diversos portes, todos tiveram evolução satisfatória, sem maiores complicações e com os benefícios da cirurgia executada. Esta observação também foi feita por outros autores, confirmando que quando os pacientes estão adequadamente tratados, não há aumento do risco operatório de pacientes com hemofilia ou DvW.3,15,25-27

CONCLUSÕES

Os pacientes com hemofilias nos diversos graus, assim como os de doença de von Willebrand, quando adequadamente corrigidos do distúrbio da crase, podem ser submetidos com segurança à cirurgia eletiva otorrinolaringológica, sendo muito importante uma boa integração entre as equipes de otorrinolaringologia e hemoterapia.

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Mestre em ORL pela UFRJ e médica do serviço de ORL do HUCFF/UFRJ.
Médica do serviço de hemoterapia do HEMORIO /RJ.

Endereço para correspondência: Dra. Marise Marques Rua Santa Clara, 70/1101 - Copacabana Rio de Janeiro RJ 22041-010 - Telefax: (0xx21) 2255.6365/2255.6014 - E-mail: marise@rionet.com.br

Trabalho desenvolvido nos: serviço de otorrinolaringologia (ORL) do Hospital Universitário Clementino Fraga Filho (HUCFF)- Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e serviço de hemoterapia do Instituto Estadual de Hematologia Arthur de Siqueira Cavalcanti do Rio de Janeiro (HEMORIO).

Chefe do serviço de ORL do HUCFF/UFRJ: Prof. Dr. Shiro Tomita
Chefe do serviço de hemoterapia do HEMORIO: Dr. Luiz Amorim Filho

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