Ano: 2001 Vol. 67 Ed. 2 - Março - Abril - (21º)
Seção: Relato de Casos
Páginas: 274 a 278
Abordagem Endoscópica das Meningoencefaloceles Nasais e Fístulas Liquóricas Rinogênicas.
Endoscopic Repair of Encephaloceles and Cerebrospinal Fluid Fistulae.
Autor(es):
Daniel C. Pinheiro*,
Ricardo C. Demarco**,
Wilma T. Anselmo Lima***.
Palavras-chave: fístula liquórica rinogênica, fluoresceína sádica, cirurgia endoscópica
Keywords: CSF leak, sodic fluorescein, endonasal endoscopic surgery
Resumo:
As fístulas liquóricas rinogênicas são potencialmente letais e o tratamento cirúrgico é indicado. Pacientes acometidos podem evoluir com quadros de meningites de repetição e abscessos cerebrais. O diagnóstico precoce e a escolha da melhor abordagem cirúrgica, com menor morbidade, devem ser instituídos. São apresentados três casos atendidos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, sendo dois pacientes portadores de meningocele, tratados por cirurgia endoscópica nasal, com uso de solução hipodensa de fluoresceína sódica. A abordagem cirúrgica mostrou-se eficaz em todos os casos e a injeção intratecal de solução hipodensa de fluoresceína sádica facilitou tanto o diagnóstico, quanto a abordagem dos sítios fistulosos, não sendo necessário o posicionamento dos pacientes em Trendelenburg, nem tampouco o aguardo de horas para o início do procedimento cirúrgico.
Abstract:
Rhinogenic cerebrospinal fluid fistulae are potentially lethal and surgical treatment is indicated. Affected patients may evolve to repetition meningitis and brain abscess. Early diagnosis as well as the choice of the best surgical approach with minor morbidity must be instituted. Three cases cases are presented from the Hospital das Clinicas de Ribeirao Preto, two of them of patients with meningocele, treated by nasal endoscopic surgery, with the use of a hypodence solution of sodium fluorescein. The surgical approach showed to be effective for all cases and the intrathecal injection of the sodium fluorescein hypodense solution made easier as much the diagnosis as the approach of die fistulous sites, what avoided the Tredenlenburg positioning of patients, as well as the delay of hours before the start of surgical procedure.
INTRODUÇÃO
As fistulas liquóricas rinogênicas (FLR) persistentes são potencialmente letais e o tratamento cirúrgico é indicado. Pacientes acometidos podem evoluir com quadros de meningites de repetição e abscessos cerebrais, se não são conduzidos de forma correta. O diagnóstico precoce e a escolha da abordagem cirúrgica, com menor morbidade, devem ser instituídos1.
Há muito se vem discutindo a melhor forma de avaliar e corrigir as FLR e meningoceles nasais, havendo consenso quanto ao potencial de complicações nas correções por abordagem intracraniana. Com o advento da moderna técnica endoscópica nasal desenvolvida por Messerklinger, associada ao uso de fluoresoeína sódica intratecal, foram facilitadas a identificação e a abordagem cirúrgica dos pacientes portadores destas entidades. O incômodo referido por muitos cirurgiões em ter que aguardar algumas horas após a injeção da solução de fluoresceína diluída em líquor pode ainda ser evitado com a diluição da mesma em água bidestilada (solução hipodensa), tornando seu efeito mais rápido, além de não ser necessário colocar o paciente em posição de Trendelenburg, mesmo nos casos com fístula de baixo débito5.
Apresentamos três pacientes com FLR atendidos no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, tratados por cirurgia endoscópica nasal, durante o ano de 2000.
APRESENTAÇÃO DOS CASOS CLÍNICOS
Caso 1
Paciente do sexo feminino, com 46 anos de idade, lavadeira, natural e procedente de Passos/MG, encaminhada ao ambulatório de Otorrinolaringologia por rinorréia hialina unilateral intermitente à esquerda, de início súbito, há oito anos. Referia ainda cefaléia fronto-occipital. Negava história de traumas cranianos ou meningites de repetição. A análise da secreção nasal apresentou proteínas 40 mg por 100 ml e glicose 58 mg por 100 ml. O exame nasofibroscópico com óptica rígida de 0° evidenciou abaulamento em recesso esfenoetmoidal esquerdo, com drenagem de líquor à manobra de Valsalva, bem como exposição de dura-máter, sugestiva de meningocele. A cisternografia confirmou a hipótese diagnóstica, mostrando fistula liquórica através de descontinuidade da lâmina cribiforme à esquerda, junto à crista galli (Figura 1). Com o diagnóstico de meningocele de fossa craniana anterior, foi indicada cirurgia endoscópica nasal para resolução do quadro.
Figura 1. Tomografia computadorizada contrastada mostrando descontinuidade da lâmina cribiforme à esquerda, junto a crista galli, com extravasamento de contraste (caso 1).
Figura 2. Tomografia computadorizada evidenciando descontinuidade óssea em placa cribiforme anteriormente à direita e velamento fronto-etmoidal à direita (caso 2).
Caso 2
Paciente do sexo masculino, com 29 anos de idade, lavrador, natural e procedente de Morro Agudo /SP. Foi encaminhado ao ambulatório de Otorrinolaringologia para elucidação diagnóstica de meningite de repetição. Referia ter apresentado quatro episódios de meningite bacteriana nos últimos nove anos, apresentando rinorréia unilateral intermitente à direita, associada a cefaléia frontal e parietal de longa data. Negava traumas cranianos. O exame tomográfico dos seios da face revelou descontinuidade óssea em placa cribiforme anteriormente à direita, velamento fronto-etmoidal à direita e imagem sugestiva de cistos de retenção em seio maxilar direito (Figura 2). A análise da secreção nasal mostrou 84 mg de glicose por 100 ml, sugerindo líquor. A nasofibroscopia com óptica de 0° evidenciou abaulamento em projeção de lâmina cribiforme à direita, com drenagem de secreção hialina, além de desvio septal alto para a direita. Com o diagnóstico de meningocele nasal, foi indicada correção cirúrgica por via endoscópica nasal.
Figura 3. Tomografia computadorizada mostrando fratura do teto da órbita e da parede posterior do seio frontal à esquerda (caso 3).
Caso 3
Paciente do sexo masculino, com 24 anos de idade, natural e procedente de Barrinha/SP, encaminhado à Otorrinolaringologia pelo Serviço de Neurocirurgia, com história de trauma craniano por acidente automobilístico há nove anos, tendo sido submetido a craniotomia e drenagem de coágulo em região frontal. Referia ainda três episódios de meningite bacteriana após este período. Queixava-se também de cefaléia fronto-parietal à esquerda 'è rinorréia aquosa na fossa nasal homolateral. A nasofibroscopia com ópticas rígidas de 0° e 30° mostrou desvio septal alto para a direita, sem evidências de abaulamentos ou drenagem liquórica. A tomografia computadorizada de seios da face revelou evidência de craniotomia frontal à esquerda, fratura do teto da órbita e da parede posterior do seio frontal à esquerda (Figura 3). Após injeção de contraste, observou-se drenagem liquórica através do traço de fratura na parede posterior do seio frontal. Com o diagnóstico de FLR em seio frontal pós TCE, foi indicada cirurgia endoscópica nasal para correção do quadro.
Descrição da técnica cirúrgica
Foi inicialmente realizada punção lombar, durante a indução anestésica, seguida de injeção de solução de fluoresceína sódica a 5%, na dose de 0,1 ml para cada 10 kg de peso, respeitando-se a dosagem máxima de 1ml da solução. Optou-se pela diluição da mesma em 10 ml de água bidestilada, tornando-a solução hipodensa, não sendo portanto necessária a espera de 1 ou mais horas para o início cirúrgico, nem tampouco o posicionamento do paciente em Tredelemburg, segundo Guimarães5. Com isso, tornou-se fácil a identificação do sítio fistuloso pela coloração amarelo-esverdeada característica do líquor corado pela solução. Iniciou-se então a exploração das FLR com auxílio de endoscópios rígidos de 0° e 30°, ambos de 4mm, bem como cauterização e ressecção das meningoceles (casos 1 e 2). O local fistuloso foi isolado e selado com mucoperiósteo de corneto médio removido do próprio paciente, seguido de fixação do mesmo com cola de fibrina (Tissucol®) e cobertura com Surgicel®. A cavidade nasal foi tamponada por 14 dias. Antibioticoterapia profilática foi realizada em todos os pacientes com Ceftriaxona 1g endovenoso, em dose única diária, por três dias, mantendo-se amoxicilina oral, em dose terapêutica, até remoção do tampão nasal. Durante a punção lombar foi ainda colhido 3ml de líquor, previamente à cirurgia, para exame bacterioscópico e cultura. No caso 3, a abordagem endoscópica teve que ser complementada com acesso externo ao seio frontal (incisão de Linch), devido ao difícil acesso ao sítio fistuloso.
Não se observou complicação intra ou pós-operatória, quer advinda do procedimento cirúrgico ou devido à punção lombar. No caso 2, o exame anátomo-patológico mostrou astrócitos e células neuronais, ratificando tratar-se de meningoencefalocele. Em todos os casos obteve-se sucesso no fechamento das fístulas, bem como na resolução da meningocele e meningoencefalocele.
DISCUSSÃO
As FLR podem ser traumáticas ou espontâneas, sendo as traumáticas representando a maioria, podendo ainda serem de causas acidentais ou iatrogênicas14. Em nossa casuística, duas foram classificadas como espontâneas e somente uma pós-trauma.
Entre as FLR pós-trauma, não são incomuns as iatrogênicas, consideradas como a complicação grave mais comum pós-cirurgia endoscópica nasossinusal. Neste grupo, os locais de maior freqüência são, por ordem: placa cribiforme, fóvea etmoidal, seio esfenoidal e seio frontal14.
O diagnóstico é dependente da história clínica, em que o paciente refere classicamente rinorréia hialina unilateral intermitente. Passado de trauma craniano (TCE) sempre deve ser questionado. Outras queixas importantes são a cefaléia e o gotejamento pós-nasal. Meningites de repetição também são comuns e podem ser a primeira manifestação clínica dos portadores de FLR em até 25% dos casos3. Em nossa cauística, todos apresentavam rinorréia, gotejamento pós-nasal e cefaléia. Os casos 2 e 3 apresentavam ainda meningites de repetição, o que facilitou o diagnóstico.
Como métodos complementares ao diagnóstico podem ser úteis a'tomografia computadorizada de alta resolução, cisternografia e a ressonância nuclear magnética. A análise do líquido suspeito é de grande importância. A eletroforese de proteínas das secreções nasais e a dosagem da glicose acima de 30 mg por 100 ml, nestas secreções, podem ratificar o diagnóstico. Mais recentemente, vem sendo realizada ainda a dosagem de -2-transferrina, por eletroforese de imunofixação, proteína produzida por neuraminidase ativa no cérebro, a qual está presente somente no fluido cérebroespinhal e na perilinfa; e sua presença na secreção nasal confirma o diagnóstico de FLR11.
No passado, as FLR eram tratadas por craniotomia com reparo intradural. Com o advento da cirurgia endoscópica nasal, o reparo transnasal tem se tornado mais comum8, 9. A baixa morbidade e o alto sucesso da técnica endoscópica têm feito deste o tratamento de escolha para as FLR. Todavia, esta técnica não é isenta de complicações. A injeção de fluoresceína intratecal é muitas vezes associada a complicações severas, como: paresias de extremidades, paralisias, convulsões, opistótono e alterações nos pares cranianos1, 10. Mucoceles intracranianas e encefalite química são ainda outras raras complicações, mas potencialmente fatais, e estão descritas na literatura15.
A necessidade de drenagem lombar pós-operatória é outra razão de controvérsia nesta técnica cirúrgica. Cassiano e colaboradores (1999) reportaram 33 pacientes tratados por cirurgia endoscópica nasal sem drenagem lombar, incluindo casos de fístulas de até 3cm, concluindo não ser necessária a drenagem lombar de rotina, além de não estar o sucesso cirúrgico relacionado ao débito da fístula2. Entre os casos por nós reportados, não foi necessária a drenagem lombar pós-operatória em nenhum dos pacientes.
O material que pode ser utilizado para o fechamento das falhas ósseas na base do crânio é variável, apresentando geralmente bons resultados. O uso de mucosa de corneto médio, por nós utilizado, pode ser substituído por cartilagem sèptal, mucoperiósteo de corneto inferior, músculos, fragmentos ósseos, flap de omento, associados ou não à cola de fibrina, Gelfoam® ou Surgicel®4, 5, 6, 7, 12, 13.
CONCLUSÕES
O tratamento endoscópico das fistulas liquóricas rinogênicas, bem como das meningoencefaloceles nasais, tem se tornado atrativo devido à sua alta taxa de sucesso e baixa morbidade. Em nossa experiência, mostrou-se eficaz em todos os casos e é hoje considerado opção cirúrgica de primeira escolha para o tratamento dessas entidades. Apesar de nossa casuística ser muito pequena, e o tempo de evolução não ultrapassar seis meses, é importante ressaltar o fato de a injeção intra-tecal da solução hipodensa de fluoresceína sódica ter se mostrado segura e facilitado o diagnóstico, bem como a abordagem das FLR.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. BAILEM, B. J. - Head and Neck Surgery-Otolaryngology, Lippincott-Raven, 2ª edição, 1998.
2. CASIANO, R. R.; JASSIR, D. - Endoscopic cerebrospinal fluid rhinorrhea repair: is a lumbar drain necessary? Otolaryngol. Head Neck Surg., 121 (6): 745-50, 1999.
3. CUMMINGS, C. W.; FREDRICKSON, J. M.; HARKER, L. A.; KRAUSE, C. J.; RICHARDSON, M. A.; SCHULLER, D. E. Otolaryngology F. Head Neck Surgery ReNew. Mosby, 1998.
4. GJURIC, M.; GOEDE, U.; KEIMER, H.; WIGAND, M. E. Endonasal endoscopic closure of cerebrospinal fluid fistulas at the anterior cranial base. Ann. Otol. Rhinol. Laryngol., 105 (8): 620-3, 1996.
5. GUIMARÃES, R. E. S. - Reparação Microendoscópica da Rinoliquorréia. In: Stamm, A. Rinologia 2000, Revinter, 2000, 401-402.
6. HUGHES, R. G.; JONES, N. S.; ROBERTSON, I. J. - The endoscopic treatment of cerebrospinal fluid rhinorrhoea: the Nottingham experience. J. Laryngol. Otol. Fev., 111(2): 125-8, 1997.
7. KELLEY, T. F.; STANKIEWICZ, J. A.; CHOW, J. M.; ORIGITANO, T. C.; SHEA, J. - Endoscopic closure of postsurgical anterior cranial fossa cerebrospinal fluid leaks. Neurosurgery, 39 (4): 743-6, 1996.
8. LANZA, D. C.; O'BRIEN, D. A.; KENNEDY, D. W. Endoscopic repair of cerebrospinal fluid fistulae and encephaloceles. Laryngoscope, 106 (9): 1119-25, 1996.
9. MARKS, S. C. - Middle turbinate graft for repair of cerebral spinal fluid leaks. Am. J. Rhinol., 12 (6): 417-9, 1998.
10. MAM, M.; LEVINE, H. L.; MESTER, S. J.; SCHAITKIN Complications of endoscopic sinus surgery: analysis of 2108 patients-incidence and prevention. Laryngoscope, 104 (9): 1080-3, 1994.
11. NORMINGTON, E. Y.; PAPAM, F. A.; YETMAN, R. J. Treatment of recurrent cerebrospinal fluid rhinorrhea with a free vascularized omental flap: a case report. Plast. Reconstr. Surg., 98 (3): 514-9, 1996.
12. SCHIEVINK, W. L; MORREALE, V. M.; ATKINSON, J. L.; MEYER, F. B.; PIEPGRAS, D. G.; EBERSOLD, M. J.- Surgical treatment of spontaneous spinal cerebrospinal fluid leaks. J. Neurosurg. Feb.; 88 (2): 243-6, 1998.
13. VOEGLES, R. L.; SANTORO, P. P.; MEDEIROS, I. R. T.; BUTUGAN, O. - O uso da Fluoresceína Sódica no Tratamento Endoscópico das Fístulas Liquóricas Rinogênicas. Rev. Bras. Otorrinolaringol. G5 (4): 326-330, 1999.
14. WANG, L.; KIM, J.; HEILMAN - Intracranial mucocele as a complication of endoscopic repair of cerebrospinal fluid rhinorrhea: case report. Neurosurgery, 45 (5): 1243-5, 1999.
15. WETMORE, R. F.; DUHAIME, A. C.; KLAUSNER Endoscopic repair of traumatic CSF rhinorrhea in a pediatric . patient. Int. J. Pediatr. Otorbinolaryngol., 36 (2): 109-15, 1996.
* Médico Residente de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.
** Médico Assistente do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.
*** Professora, Doutora, do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.
Trabalho realizado no Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Professora Wilma T. Anselmo-Lima - Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto.
Avenida Bandeirantes, 3900 - 14049-900 Ribeirão Preto/SP - Telefone: (0xx16) 602-3000 - Fax: (0xx16) 633-1586.
Artigo recebido em 4 de agosto de 2000. Artigo aceito em 28 de setembro de 2000.