Ano: 2001 Vol. 67 Ed. 2 - Março - Abril - (14º)
Seção: Artigo de Revisão
Páginas: 234 a 241
Audição e Iatrogenia.
Hearing and Iatrogenesis.
Autor(es):
César L. Terra Brito*,
Walmi B. Braga**,
Darcy R. Lima***.
Palavras-chave: audição, iatrogenia, ototoxicidade, surdez, aminoglicosídeos
Keywords: hearing, iatrogenesis, ototoxicity, deafness, aminoglycosides
Resumo:
Introdução: Os medicamentos são instrumentos terapêuticos prescritos rotineiramente pelos médicos. No entanto, entre as ações desejadas, podemos observar outros inúmeros eventos que não são desejados com determinada terapêutica. Quando nos deparamos com um efeito não objetivado, mas que tenha surgido em decorrência do uso de determinada droga, estamos diante de um efeito ou doença iatrogênica. As drogas, em geral, podem produzir os mais diversos efeitos iatrogênicos, entre eles, distúrbios do aparelho auditivo e vestibular importantes, como surdez e vertigem. Desse modo, o conhecimento das principais drogas ototóxicas é de responsabilidade do médico, especialista ou não, para que tais efeitos possam ser previstos e monitorizados, evitando, assim, condições de invalidez permanente. Objetivo: Este trabalho tem por objetivo realizar uma revisão sobre os principais agentes ototóxicos, apresentando aspectos relativos às suas manifestações clínicas e condições que freqüentemente predispõem o paciente a elas.
Abstract:
Introduction: Medicines are therapeutic resources routinely prescribed by doctors. However, among expected actions, there are other events that aren't desired and may present during certain treatment. Everytime we find a non desired effect due to the use of certain drug, we call it iatrogenic effect or iatrogenic disease. Drugs, in general, may produce several undesired effects, among them, auditory and vestibular disturbances; as deafness and vertigo. Then, doctors, specialistic or not, must know about the main ototoxic drugs in order to reduce iatrogenic effects and avoid permanent defficiencies. Aim: This work aims to review the main ototoxic agents, present the clinical manifestations of ototoxicity and some situations that frequently predispose the patient to that.
INTRODUÇÃO
É comum o médico prescrever medicamentos a respeito dos quais sabe pouco, para tratar doenças sobre as quais sabe menos ainda, em um ser humano do qual nada sabe? O grande, variado e sempre crescente número de medicamentos disponíveis para uso clínico levou ao surgimento da doença iatrogênica medicamentosa. Infelizmente, esse negativo aspecto da prática médica é às vezes super dimensionado, principalmente por leigos, como se a iatrogenia fosse algo corriqueiro e de alta periculosidade. Assim como a luz elétrica, o automóvel, a aviação, a energia nuclear e a imprensa, os medicamentos são parte integrante, embora nem sempre necessária, do progresso humano.
Todos oferecem seus riscos, sobretudo se usados de maneira inadequada e sem conhecimento.
Apesar de ocorrerem acidentes com automóveis e aviões, não parece existir uma condenação ou diminuição do seu uso, para o benefício do ser humano. Isto porque existe um conhecimento por parte das pessoas que fazem uso desses modernos recursos tecnológicos. Por imprudência ou desconhecimento, podem acontecer graves acidentes. O mesmo se aplica aos medicamentos: o médico deve manter-se permanentemente atualizado e informado sobre os medicamentos novos e os já existentes e seus efeitos, benéficos e maléficos, para o organismo humano.
Reações devidas ao uso de fármacos constituem problema potencialmente mais comum e importante na prática médica pelo grande número de medicamentos existentes e a deficiência na atualização periódica do médico. Os principais estudos mundiais permitem a detecção e prevalência do problema da seguinte forma10:
o pacientes hospitalizados: cerca de 10% a 20% dos pacientes hospitalizados apresentam efeitos indesejáveis a medicamentos, sendo que entre 0,3% e 3,0% das mortes são devidas a problemas iatrogênicos;
o internações hospitalares: cerca de 3% a 5% das internações hospitalares em geral são devidas á efeitos indesejáveis de medicamentos.
Classificação dos efeitos indesejáveis dos medicamentos
Nenhuma nomenclatura ou classificação dos efeitos indesejáveis ou colaterais e das doenças iatrogênicas é completamente satisfatória. Para fins práticos, os efeitos indesejáveis podem ser classificados em dois tipos principais:
A. Dose-dependentes ou tipo A
Os efeitos indesejáveis dose-dependentes (efeito indesejável quantitativo ou tipo A) são devidos usualmente a um efeito farmacodinâmico ou farmacocinético anormal, produzindo de forma excessiva o efeito farmacológico conhecido do medicamento. Esses problemas são mais comuns com produtos de baixo índice terapêutico, como os anticoagulantes (heparina, warfarin), antianítmicos (lidocaína, disopiramida), antihipertensivos (betabloqueadores, hidralazina), broncodilatadores (teofilina, adrenalina) e os glicosídeos cardíacos, quando um pequeno aumento na dosagem pode resultar em efeitos indesejáveis como a toxicidade. Tais efeitos indesejáveis podem decorrer de variações na formulação farmacêutica (doses diversas em diferentes comprimidos), variações farmacocinéticas (menor metabolização em hepatopatas ou menor excreção em nefropatas) ou de variações nas propriedades farmacodinâmicas do medicamento (intoxicação digitálica na vigência de hipopotassemia).
Variações na formulação farmacêutica podem determinar maior biodisponibilidade do produto, levando a uma intoxicação mesmo no uso de doses terapêuticas, o que já foi observado em numerosos países com a fenitoína e a digoxina, onde diferentes formulações determinaram maiores níveis de intoxicações. No Brasil isto já foi observado com a ineficácia terapêutica de cápsulas de tetraciclina que não continham a quantidade preconizada do produto, por fraude10. Logo, toda vez que o médico orientar o paciente a mudar o medicamento de um fabricante para outro, um controle deve existir nos primeiros dias de uso do novo produto, para detectar possíveis mudanças na biodisponibilidade e efeitos indesejáveis no seu uso. Um mesmo fármaco de diversos fabricantes pode proporcionar uma diferente biodisponibilidade, sendo portanto bioinequivalentes, às vezes por simples diferenças na técnica de fabricação, com um produto se dissolvendo mais que ó outro e proporcionando maiores níveis plasmáticos. São medicamentos com o mesmo fármaco e na mesma dosagem, mas sem a mesma bioequivalência.
Alterações farmacocinéticas podem ocorrerem pacientes que apresentam doenças hepáticas ou mesmo insuficiência cardíaca congestiva, onde a perfusão hepática está diminuída, assim como a metabolização de fármacos, um processo que pode melhorar com a correção do distúrbio hemodinâmico. Por isto, é importante o clínico conhecer os fármacos que possuem efeito de primeira passagem, bem como aqueles que são metabolizados pelo fígado, corno o propanolol, a lidocaína e a morfina. Nefropatias também podem interferir na farmacocinética, causando uma menor eliminação e acúmulo do medicamento e seus metabólitos, sendo necessário o cálculo da dose em função do grau de disfunção renal. Distúrbios da tireóide, como hipo ou hipertireoidismo, também podem alterar a cinética dos medicamentos, mudando até mesmo a resposta terapêutica, como com os beta-bloqueadores.
Modificações na farmacodinâmica também ocorrem em doenças hepáticas, quando o uso de diuréticos pode desencadear a encefalopatia portossistêmica, e a retenção de sódio e água pode ser agravada pelo uso de antiácidos e penicilina com sódio, além do uso de fármacos que retêm água, como carbenicilina, indometacina e corticosteróides. A toxicidade dos glícosídeos cardíacos é potencializada pela hipopotassemia e hipercalcemia, enquanto que a eficácia de antiarrítmicos, como a lidocaína, procainamida e disopiramida, é reduzida pela hipopotassemia. A desidratação potencializa o efeito hipotensor de medicamentos anti-hipertensivos.
B. Dose-independentes ou tipo B
Os efeitos indesejáveis não dose-dependentes (efeito indesejável qualitativo ou tipo B) ocorrem em conseqüência de mecanismos imunológicos ou farmacogenéticos. As principais características deste tipo de problema são a ausência de relação com os efeitos usuais do medicamento, a existência de um lápso de tempo entre o uso e o surgimento do problema, o aparecimento da reação mesmo com pequenas quantidades do fármaco e um desaparecimento do problema com a retirada do fármaco. Os efeitos mais conhecidos desse tipo são devidos a reações imunológicas, do tipo febre, erupção cutânea, doença do soro, asma, urticária, angioedema e choque anafilático. Alguns pacientes apresentam maior capacidade de desenvolver reações alérgicas que outros. São pacientes chamados de "atópicos", os quais apresentam distúrbios causados por reações de hiper-sensibilidade do tipo I, induzida por antígenos específicos e que resultam na liberação de substâncias vasoativas pelos mastócitos e basófilos previamente sensibilizados por anticorpos específicos da classe das imunoglobulinas IgE (reagirias). Os pacientes geralmente têm uma história de doença atópica, como asma, rinite alérgica, eczema ou reação alérgica prévia a medicamentos. Nas reações do tipo I (anafilaxia ou hiper-sensibilidade imediata), o fármaco ou um metabólito interagem com anticorpos do tipo IgE fixos nas células, particularmente nos mastócitos teciduais e basófilos sangüíneos. Isto desencadeia uma reação que leva à liberação de mediadores farmacológicos, como a histamina, cininas, serotonina e prostaglandinas, os quais causam a resposta alérgica. Clinicamente, as reações do tipo I sé apresentam como urticária, rinite, asma, edema angioneurótico e choque anafilático. Os medicamentas que mais comumente causam estas reações são as penicilinas, anestésicos locais e contrastes radiológicos contendo iodo. Nas reações do tipo II (reações citotóxicas), anticorpos circulantes do tipo IgG, IgM ou IgA interagem com haptenos - o medicamento - combinados a proteínas constituintes da membrana celular, para formar complexos antígeno-anticorpo. O complemento é ativado e a lise celular ocorre. A maioria das reações são hematológicas, como a trombocitopenia associada ao uso de quinidina ou digitoxina; a neutropenia devida ao uso de fenilbutazona, anticonvulsivantes ou metronidazol; ou anemias hemolíticas devidas ao uso de penicilinas, cefalosporinas ou quinidina. Nas reações do tipo III (reações devidas a complexo imunológico), anticorpos IgG combinam-se com o antígeno na circulação, ocorrendo uma deposição deste complexo nos tecidos, com ativação do sistema complemento e lesão capilar endotelial. A doença do soro é um exemplo típico, caracterizada por febre, artrite, linfonodomegalia, urticária e erupções oráculo-papulares. Os fármacos que mais comumente causam esse problema são as penicilinas, sulfonamidas e os medicamentos antitireoidianos. Na reação do tipo IV (hiper-sensibilidade retardada ou mediada por células), os linfócitos T são sensibilizados por um complexo antigênico (hapteno - medicamento - combinado a uma proteína). As reações são causadas quando os linfócitos previamente sensibilizados entram em contato com o antígeno, através de ação celular tóxica direta ou pela liberação de linfocinas, que afetam a atividade local e de outras células. Clinicamente, estas reações se manifestam como dermatite de contato no uso de anestésicos locais, cremes tópicos com antihistamínicos, antibióticos ou antifúngicos.
Alguns pacientes desenvolvem reações imunológicas complexas, caracterizadas por uma síndrome na qual o tecido conjuntivo é comprometido, como a síndrome lupóide mimetizando o lúpus eritematoso sistêmico com comprometimento articular, que pode ser observada no uso de medicamentos como a hidralazina, procainamida ou fenitoína; ou a poliarterite nodosa, que pode ser observada no uso das sulfonamidas.
REVISÃO DA LITERATURA
Anatomofisiologia do aparelho auditivo
Para que possamos compreender melhor o processo da audição e de ototoxicidade, faremos uma revisão objetiva da anatomofisiologia do aparelho auditivo.
Os ouvidos, mais recentemente denominados "orelhas", são órgãos vestibulococleares, devido à sua importância no mecanismo da audição e equilíbrio. Dividem-se em três porções: ouvido externo ou orelha externa; ouvido médio, orelha média ou cavidade timpânica e ouvido interno, orelha interna ou labirinto.
A. Ouvido externo
É formado por: a) orelha; também chamada de aurícula ou pavilhão auricular e b) meato acústico externo. A membrana do tímpano, funcionalmente, faz parte do ouvido médio, mas geralmente é estudada com os demais componentes do ouvido externo.
O pavilhão auricular é uma prega cutânea da face lateral da cabeça, que recobre placas de cartilagem elástica e é reforçada por elas. Apresenta bordas, faces, elevações e depressões. Já o meato acústico externo é uma estrutura sinuosa que se estende da concha ao tímpano e possui aproximadamente 25 mm de comprimento. A membrana do tímpano tem aproximadamente 10 mm de diâmetro e forma um septo entre o meato acústico externo e a cavidade timpânica. Podemos dividir o tímpano em quatro quadrantes, constituindo parâmetros de grande importância devido às suas relações com estruturas profundas do ouvido médio.
O ouvido externo conduz o som para o ouvido médio e interno e os protege de lesão externa. Apesar de tal função, o pavilhão auricular aumenta pouco a audição; isto pôde ser averiguado audiometricamente em traumatizados com amputação total da orelha13.
B. Ouvido médio
É constituído pela cavidade timpânica, um espaço aéreo no interior do osso temporal que é atravessado lateromedialmente por três ossículos articulados - o martelo, a bigorna e o estribo. Comunica-se com as células aéreas mastóides posteriormente, através do ádito e com a tuba auditiva anteriormente, através do óstio timpânico da tuba auditiva. O revestimento mucoso da cavidade timpânica compreende um epitélio colunar ciliado, que se torna cuboidal em uma área transicional localizada póstero-superiormente, até chegarmos a um epitélio escamoso simples revestindo o antro e as células aéreas mastóides.
A cavidade timpânica pode ser comparada a uma caixa de seis faces que possui seu comprimento vertical maior que o comprimento horizontal, sendo estreita em sua profundidade. É responsável pela transformação das ondas sonoras em força mecânica, através da cadeia ossicular.
C. Ouvido interno
Também conhecido como labirinto, está localizado no interior da parte petrosa do osso temporal. Consiste de uma série de espaços complexos e cheios de líquido -labirinto membranoso, contendo a endolinfa -, alojados no interior de uma cavidade disposta de forma similar (labirinto ósseo), contendo perilinfa entre este e o labirinto membranoso. Estruturalmente, o labirinto ósseo possui um sistema de cavidades contínuas, das quais distinguimos três zonas: uma média, o vestíbulo; uma póstero-lateral, correspondendo aos canais semicirculares, e uma anteromedial, a cóclea. O labirinto ósseo tem comprimento máximo de 20 mm. O labirinto divide-se funcionalmente em dois elementos: a) cóclea, responsável pela função auditiva; e b) aparelho vestibular, participando na função do equilíbrio, assim como a visão e propriocepção.
Os ductos semicirculares são estruturas contidas no interior dos canais semicirculares, em número de três, possuindo uma disposição e denominação similar à deles, mas ocupam apenas um quarto do diâmetro dos canais. Cada ducto semicircular apresenta uma dilatação denominada ampola - e cada ampola apresenta uma crista ampular, formada por células ciliares neuroepiteliais e células de sustentação. Os estereo-cílios das células sensoriais neuroepiteliais ficam mergulhados em uma cúpula gelatinosa cônica, que se estende à parede oposta da ampola, obliterando a dilatação dos canais semicirculares. Tais células neuroepiteliais encontram-se intimamente relacionadas com fibras do nervo vestibular; e, uma vez estimuladas pela oscilação da cúpula impulsionada no sentido da endolinfa, levam impulsos vestibulares.
Os três ductos semicirculares estão dispostos nós três planos do espaço e a sua atividade vestibular responde a estímulos de aceleração angular, ocasionada por movimentos rotatórios do corpo.
O utrículo e o sáculo localizam-se no vestíbulo e apresentam no seu interior pequenas regiões (2-3 mm) de epitélio espessado e diferenciado em neuroepitélio, as chamadas máculas. As máculas têm estrutura semelhante à das cristas ampulares, com células de sustentação e neuroepiteliais, cujos estereocílios encontram-se embebidos em uma camada gelatinosa plana. Diferentemente das cristas ampulares, a membrana gelatinosa macular possui cristais de carbonato de cálcio denominados otólitos, otocônios ou estatocônios; além disso, a extremidade livre da mácula não oblitera a luz das cavidades utricular e sacular.
Tanto a mácula utricular quanto a sacular possuem a mesma estrutura e estão dispostas perpendicularmente entre si. Ambas as estruturas participam no equilíbrio em resposta à aceleração linear do corpo: o utrículo na aceleração horizontal e o sáculo na aceleração vertical.
A cóclea ou caracol é um tubo helicóide de aproximadamente 2,5 giros e aproximadamente 35 mm de extensão. É constituída por três elementos: a) modíolo, núcleo ou columela, pequeno cone de tecido ósseo esponjoso, que ocupa o eixo da cóclea e cuja base apresenta uma fileira dupla de orifícios, o crivo espiróide, para passagem dos filetes do nervo coclear no fundo do meato acústico interno; é no modíolo que encontramos também o gânglio espiral; b) canal espiral da cóclea, tubo ósseo que se enrola em torno do modíolo, descrevendo duas voltas e meia em espiral; c) lâmina espiral óssea, que se inicia no assoalho do vestíbulo, projeta-se do modíolo como a aba de um parafuso, introduz-se no canal espiral da cóclea e descreve as mesmas voltas em espiral que este último. Possui uma face anterior e outra posterior, uma borda interna aderente ao modíolo e uma borda externa livre.
A cóclea membranosa, também conhecida como ducto coclear, rampa ou escala média aloja-se no canal espiral da cóclea, dispondo-se a partir da borda livre da lâmina espiral óssea e seguindo o seu formato espiralado, começando na parte inferior do vestíbulo, onde se conecta ao sáculo através do dueto reuniens, terminando~em fundo cego no ápice da cóclea. O canal espiral da cóclea é dividido pela lâmina espiral e ducto coclear em duas porções: rampa ou escala vestibular, que se inicia no vestíbulo, e rampa ou escala timpânica, que termina em fundo cego próximo à janela da cóclea, ocluída pela membrana timpânica secundária e voltada para a cavidade timpânica. Ambas as rampas comunicam-se no vértice da cóclea por um orifício chamado helicotrema.TABELA 1- Agentes causadores de ototoxicidade.
Em cortes transversais, o ducto coclear apresenta o formato de um triângulo, com um dos lados apoiado sobre a lâmina espiral óssea, e o vértice apontando para o modíolo. Seu lado inferior está anatomicamente localizado posteriormente e corresponde à membrana basilar, que na sua parte interna possui uma formação chamada órgão de Corti, responsável pela audição, constituído por um arranjo complexo de células de sustentação e células neuroepiteliais.
Após a ativação da cadeia ossicular pelas ondas sonoras captadas pelo ouvido externo, a platina do estribo (último osso da cadeia) promove uma onda de propagação na perilinfa, a partir da janela oval, estrutura situada entre o ouvido médio e interno. Tal propagação alcança uma porção da cóclea - a membrana basilar -, ocasionando a sua vibração e ativação posterior de células neuroepiteliais ciliadas externas, que culmina com a despolarização de células ciliadas internas. Em seguida, sinais são enviados para o nervo acústico, no nível da cóclea, atingindo o gânglio espiral. A partir do gânglio espiral, os impulsos propagam-se por estruturas do tronco cerebral (núcleos cocleares, complexo olivar, lemnisco lateral, colículo inferior) e alcançam o corpo geniculado medial, de onde vão para a área auditiva cortical no giro temporal transverso anterior - e são reconhecidos.
IATROGENIA E AUDIÇÃO
Drogas que acometem o ouvido podem produzir vertigem ou zumbidos (tinnitus) e surdez, dependendo de a lesão ser predominantemente na porção vestibular ou auditiva do oitavo nervo craniano. Existem ainda outros poucos problemas otológicos induzidos por drogas: otorragia pode ser ocasionada por terapia anticoagulante, e otite externa tem sido produzida tanto por Pseudomonas ou Proteus, seguido do uso de antibióticos de largo espectro. Além dos medicamentos, outros produtos químicos podem causar dano ao ouvido interno.
Os seguintes agentes têm sido considerados responsáveis; e, embora esta lista não seja completa, serve para ilustrar a grande variedade de substâncias incluídas neste caso (Tabela 1).
A. Fisiopatologia das lesões
Entre as drogas ototóxicas, os antibióticos aminoglicosídeos são talvez os mais importantes; e, sem dúvida, os mais estudados. Alguns autores concluíram que estes antibióticos combinam com receptores das membranas das células ciliadas do órgão de Corti, da mácula sacular e da utricular e das cristas do sistema vestibular. Esses receptores são os polifosfoinositídeos, lípides componentes da membrana celular, com papel importante nos eventos bioelétricos e na permeabilidade da membrana por interação com íon cálcio. A formação de complexos entre os antibióticos aminoglicosídeos e os polifosfoinositídeos produz modificações na fisiologia da membrana e na sua permeabilidade, acabando por afetar a estrutura e função dos cílios, em primeiro lugar, e depois da própria membrana e, finalmente, por causar destruição das células receptoras12.
Segal e colaboradores observaram que os aminoglicosídeos também possuem ação neurotóxica relacionada a receptores NMDA, mas estas provavelmente não têm grande relevância, por não serem capazes de ultrapassar a barreira hematoencefálica (BHE) em condições normais. No entanto, tal fato torna-se importante naqueles que possuem comprometimento da BHE14.
TABELA 2 - Drogas reconhecidas como causadoras de surdez.
Di-hidorestreptornicina
Neomicina
Kanamicina
Viomicina
Furazolidona
Ácido etacrínico
Furosermida
Quinina
Salicilatos
B. Ototoxicidade e manifestações clínicas
Lesão Vestibular
A estreptomicina afeta o oitavo nervo craniano primariamente, pela produção de dano vestibular. O paciente experimenta tontura e sua movimentação súbita produz vertigem. O perigo de lesão do nervo é aumentado por altas doses da droga, função renal deficiente e pelo avançar da idade4. Surdez é raramente causada pela estreptomicina, exceto em casos de meningite tuberculosa, na qual as concentrações de estreptomicina no líquido cerebroespinhal estarão aumentadas5. É importante manter sob controle os pacientes sob tratamento com estreptornicina visando a cura de, por exemplo, doenças pulmonares, para evitar a ototoxicidade.
Lesão Auditiva
Zumbidos e surdez. Os antibióticos aminoglicosídeos, com exceção da estreptomicina e gentamicina, causam primariamente zumbidos e surdez (Tabela 2). Contudo, a estreptomicina pode cruzar a barreira placentária e levar a surdez sem dano vestibular no feto. O zumbido geralmente é associado à surdez, e quase sempre a precede. Gentamicina raramente produz surdez. São poucos os medicamentos, entre eles a mandelarnina, que produzem zumbido isolado. Estes medicamentos ototóxicos devem ser usados com muita cautela em pacientes com afecções renais. A di-hidroestreptomicina afeta primeiro o labirinto acústico; e o vestibular, só muito mais tarde. Esta foi retirada de uso por levar a uma alta incidência de surdez, mesmo após o tratamento ter sido descontinuado2.
Neomicina, kanamicina e viomicina podem levar à surdez. A neomicina não é usada pela via parenteral, devido a seus efeitos ototóxico e nefrotóxico. Valores insignificantes são absorvidos pelo intestino quando a droga é usada como desinfetante intestinal6.
Lesões ulcerativas do intestino, contudo, podem levar a uma maior absorção da droga, e na presença de função renal reduzida pode produzir altos níveis sangüíneos da droga e resultar em surdez: O uso de neomicina em combinação com polimixina B via cateter plástico para irrigação de lesão osteomielítica tem levado a surdez. A surdez causada pela kanamicina é mais provável de ocorrer especialmente com altas doses ou tratamento prolongado, ou na presença de função renal reduzida. A Surdez pode surgir ou progredir, mas persiste após a suspensão da droga3.
Alguns antibióticos não aminoglicosídeos têm sido citados na literatura como ototóxicos. São eles: a eritromicina, com efeitos reversíveis; o cloranfenicol, principalmente por ação tópica; a ampicilina; a minocilina, derivado da tetraciclina com ação vestibulotóxica; a cefalosporina, com poucas referências; a viomicina; a capreomicina, com maior toxicidade vestibular; a polimixina B e E; a colistina. Viomicina, uma droga antituberculosa, produz principalmente surdez, mas pode afetar também a função vestibular. Furazolidona causa zumbidos e surdez com considerável menor freqüência". O ácido etacrínico, usualmente, quando administrado por via intravenosa, mas também após terapia oral em pacientes urêmicos, tem ocasionado vertigem transitória, sensação de plenitude nos ouvidos, zumbidos e surdez. Surdez permanente pode seguir tanto o tratamento oral quanto o venoso. Perdas auditivas permanentes moderadas a severas têm ocorrido em pacientes urêmicos tratados com ácido etacrínico e pequenas doses de estreptomicina. O efeito sinérgico destas duas drogas pode ser causa de perda auditiva permanente. Vertigem transitória, zumbidos e perda auditiva também têm acontecido com altas doses de furosemida por via venosa, em pacientes com função renal prejudicada6.
Níveis sangüíneos de quinina e salicilatos elevados podem levar ao cinchonismo, caracterizado por cefaléia, vertigem, zumbidos, perda auditiva, visão turva e náuseas e vômitos. Estes sintomas desaparecem com a suspensão do uso destas drogas1. Algum grau de zumbidos e perda auditiva acontece com freqüência no uso de altas doses de ácido salicílico para tratamento de artrite reumatóide ou febre reumática aguda. O zumbido geralmente precede a surdez e é temporário, tendo como resultado uma perda de 30 a 40 dB, especialmente para altas freqüências2. Quando o ácido salicílico é usado no tratamento da psoríase, podem ser absorvidas pela pele quantidades de salicilato suficientes para levar a uma perda auditiva transitória. A absorção dos salicilatos depende do estado patológico da pele e do tipo de base na qual o ácido salicílico está dissolvido. Pequenas doses de quinina podem causar zumbido em indivíduos sensíveis. Antineoplásicos podem ser ototóxicos, como é o caso da cisplatina, da mostarda nitrogenada e da vincristina. Essa cocleotoxicidade pode ser reversível ou irreversível. Os contraceptivos orais podem provocar em alguns casos perdas auditivas uni ou bilaterais progressivas e irreversíveis3, 12.
Ototoxicidade local
Vários antibióticos aminoglicosídeos e outras drogas são usados no tratamento de otites médias crônicas, para eliminar a otorréia e posterior realização das miringoplastias ou timpanoplastias necessárias. A droga tóxica aplicada topicamente atinge o ouvido médio através da perfuração da membrana timpânica, alcançando o nicho da janela redonda, na parede medial do ouvido médio, podendo entrar em contato com a membrana permeável dessa janela, a membrana timpânica secundária. Estudos estruturais têm demonstrado que a membrana da janela redonda é formada por três planos12, 8, 11:
a) o epitélio externo, formado por uma camada única de células cuboidais com interdigitações nas paredes laterais das células;
b) o tecido conjuntivo intermediário, com fibroblastos, colágeno,fibras elásticas, vasos sangüíneos e linfáticos, fibrócitos, fibras nervosas mielinizadas e não mielinizadas;
c) o epitélio interno, que é escamoso com extensões laterais grandes, membrana basal contínua, citoplasma com vesículas pinocitóticas, espaços celulares grandes, espaços entre as células epiteliais.
Essa membrana da janela redonda tem várias funções. Pode exercer papel de válvula de liberação da energia que chega pela escala timpânica da cóclea, através da perilinfa, e constituir uma via alternativa de energia sonora para a cóclea, a partir do ouvido médio. Além disso, pode promover a absorção de substâncias, o que seria a endocitose, a secreção de substâncias, constituindo-se na exocitose, e a limpeza da perilinfa e defesa (imunidade). Como se vê, a membrana da janela redonda é permeável, existindo transporte por difusão e por meio de vesículas pinocitóticas. Esta permeabilidade tem sido demonstrada inclusive por experimentos. Várias substâncias atravessam a membrana alcançando a escala timpânica e a perilinfa, como é o caso de sódio, ferritina catiônica, albumina, solventes, HRP (horseradish peroxidose), toxinas (Staphylococcus), anticorpos, derivados de ácido hialurônico, antimicóticos, antissépticos, anestésicos, como procaína, pantocaína, tetracaína, lipocaína. Esses anestésicos, aplicados num ouvido com tímpano perfurado, podem provocar vertigens violentas, com náuseas e vômitos, devido à anestesia dos receptores vestibulares do lado da aplicação12.
Muitos antibióticos, como cloranfenicol, estreptomicina, farmicetina, tetraciclina, penicilina, eritromicina, comprovadamente atravessam a membrana da janela redonda. Entre os antibióticos ototóxicos, já foi demonstrada a entrada na cóclea, pela janela redonda, de gentamicina, polimixina e neomicina. Essas drogas todas passam do ouvido médio para o ouvido interno por via linfática, via membrana da janela redonda ou via sangüínea. Com a demonstrada permeabilidade da membrana da janela redonda através dos vários experimentos citados, pode se esperar que o ouvido interno seja vulnerável a substâncias como toxinas bacterianas ou gotas ototóxicas. Desse modo, essas drogas poderiam provocar perdas auditivas neurossensoriais por alterações no ouvido interno. Em animais, essas alterações celulares no órgão de Corti têm sido demonstradas quando as drogas em questão foram utilizadas12.
Apesar de todos os experimentos provocando alterações cocleares realizados em animais, nota-se com observação clínica a quase ausência de ototoxicidade local em humanos. Poucos trabalhos relatam esta ototoxicidade. Como poderia ser explicada a controvérsia? Em animais de experimentação, especialmente roedores, as alterações do ouvido interno por drogas poderiam ser explicadas pela maior suscetibilidade desses animais, pelo fato de ser a membrana da janela redonda delgada e exposta no ouvido médio, diretamente, sem nicho. No homem, as drogas são usadas em gotas tópicas quando existe uma otite média crônica. Essa infecção provoca modificações no plano conjuntivo e epitelial externo da membrana, hiperplasia e metaplasia no epitélio externo e, no plano conjuntivo, maior espessura da membrana e presença de secreção e tecido de granulação do nicho da janela. Esses e outros fatores poderiam dificultar a passagem das drogas ototóxicas para o ouvido interno. A presença de membrana espessada, secreção e tecido de granulação no nicho poderia tomar a membrana impermeável - daí, os poucos relatos de ototoxicidade local no homem12.
Apesar dessas observações clínicas, deve se tomar alguns cuidados para impedir a ototoxicidade local: aplicar dose segura por tempo curto; interromper a aplicação quando a otite melhorar e a membrana recuperar sua permeabilidade normal; evitar a aplicação de gota ototóxica na otite média secretora com tubo de ventilação; evitar o uso dessas gotas nas perfurações traumáticas. Quando o paciente apresentar fatores de risco, deve ser feita monitorização com audiometria tonal liminar por via óssea. Tomando-se todos esses cuidados, pode se usar essas drogas localmente com boa margem de segurança.
DISCUSSÃO
Diante do exposto, podemos observar que as doenças auditiva e vestibular iatrogênicas são entidades clínicas que devem ser conhecidas e lembradas pelo médico, independentemente da sua área de atuação. Os antibióticos aminoglicosídeos, sobretudo, devem ser prescritos com critério; e a sua administração, realizada com cautela, visto que são agentes ototóxicos de uso rotineiro, principalmente no ambiente hospitalar.
É importante identificar fármacos em uso que apresentem ação ototóxica para que possamos acompanhar melhor o paciente; e, se possível, monitorizar e evitar uma exposição que possa resultarem danos otológicos, assim como compreender manifestações clínicas de cocleo e/ou vestibulotoxicidade que porventura possam surgir no curso do tratamento.
COMENTÁRIOS FINAIS
A iatrogenia ocupa um capítulo importante na medicina atual. Cabe aos médicos atuar da melhor forma possível, de modo a reduzir ao mínimo os resultados aqui apresentados. Desta forma, estaremos proporcionando qualidade de vida aos pacientes, o que não consiste apenas em tratar os distúrbios apresentados, mas também evitar que o alívio ou a solução desses se acompanhem do surgimento de outros.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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* Acadêmico de Medicina (6° Ano), da Faculdade de Medicina de Petrópolis/Fundação Octacílio Gualberto (FMP/FOG).
** Mestre em Otorrinolaringologia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor Assistente de Otorrinolaringologia da Universidade do Rio de janeiro (UNI-RIO).
*** Doutor (Ph.D.) em Medicina pela Universidade de Londres, Inglaterra. Professor de Farmacologia Clínica, INCD, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Associate Director for Medicinal Plants Studies, Vanderbilt University Medical Center, Nashville, TN, USA.
Endereço para correspondência: César Leandro Terra Brito - Estrada dos Três Rios, 1416 - BL 5 - Apto. 401 - Freguesia - Jacarepaguá - Rio de janeiro /RJ.
Telefone: (0xx21) 436-1458 - E-mail: terrabrito@usa.net
Artigo recebido em 29 de junho de 2000. Artigo aceito em 23 de novembro de 2000.