Versão Inglês

Ano:  2001  Vol. 67   Ed. 1  - Janeiro - Fevereiro - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 29 a 35

 

A Voz da Criança Deficiente Auditiva.

The Voice of Hearing Impaired Children.

Autor(es): Maria C. Giusti*,
Marina M. P. Padovani*,
Maca Behlau**,
Lídio Granato***.

Palavras-chave: análise acústica, deficiência auditiva, voz

Keywords: acoustic analysis, deafness, voice

Resumo:
Introdução: A audição exerce um papel primordial na aquisição da linguagem oral, sendo o monitoramento auditivo fundamental no controle da produção vocal. Objetivo: A fim de investigar o efeito da deficiência auditiva na função vocal, o objetivo deste trabalho foi avaliar a freqüência fundamental e sua variabilidade nas vozes de crianças com deficiência auditiva neurossensorial severa e profunda e comparar com vozes de crianças ouvintes normais. Material e método: Participaram 64 crianças portadoras de disacusia pré-lingual severa e profunda, e 90 crianças sem histórico de distúrbios da comunicação, na faixa etária entre seis e 13 anos de idade. Cada indivíduo foi submetido a uma gravação da voz nas emissões sustentadas das vogais: "a", "i", "u", que foram analisadas acusticamente pelo programa Dr. Speech Sciences (versão 4.0); e, auditivamente, por fonoaudiólogas especialistas em voz. Resultados: Encontramos nos deficientes auditivos uma freqüência fundamental média elevada (435 Hz) e uma grande variabilidade na sustentação (13 semitons), quando em comparação com os ouvintes normais (264 Hz de média e um semitom de variabilidade). Tais características acústicas são marcadores auditivos que fazem.com que os deficientes sejam identificados perceptivamente como tais (90% de identificação auditiva positiva). Conclusão: Assim sendo, o deficiente auditivo severo ou profundo apresenta um pobre controle laríngeo e uma grande instabilidade fonatória. Este estudo reforça a necessidade de se enfocar a voz do deficiente auditivo em fonoterapia, para minimizar o impacto social da deficiência auditiva.

Abstract:
Introduction: Hearing has an important role in the achievement of the oral language and the control of the vocal production. Aim: This work investigated the impact of deafness in vocal function and has the aim to evaluate the fundamental frequency and its variability in children's voices with and without sensorioneural hearing impaired from severe to profound levels and also to compare their voices with normal children's voices. Material and method: The subjects of this study were 64 children with pre-lingual deafness from severe to profound levels, age six to 13. The experimental control group was composed by 90 children, without any communication disorders. Each one emited the sustained vowels "a", "i" and "u". The acustic analysis was achieved by the Dr. Speech Sciences (version 4.0). The perceptive auditory evaluation was done by Speech language pathologists speciallysed in voice. Results: We have found a high fundamental frequency (435 Hz) and a great variability (13 semitons) in deaf children comparing to normal children (264 Hz and on semiton). Those vocal characteristics used by deaf people, make us to be able to identify them perceptually (90% positive). Conclusion: Therefore, severe to profound deafness presents a poor laryngeal control and great phonatory instability. This study reinforce that the voice of a hearing impaired individual must be specifically focused to minimize the social impact of deafness.

INTRODUÇÃO

A audição exerce papel primordial na aquisição da linguagem oral. Uma perda auditiva severa e profunda pode ter efeito devastador no desenvolvimento da linguagem e competência comunicativa. Sabemos que, no mundo atual, a comunicação humana é de fundamental importância, não apenas para a constituição de um meio social saudável, mas também para o desenvolvimento pessoal e emocional.

Uma criança deficiente auditiva severa ou profunda apresenta um desenvolvimento de fala desviado da normalidade. O ouvinte normal baseia-se grandemente nos sinais auditivos para o desenvolvimento da sua linguagem; já o deficiente auditivo tem que suplementar o que ouve com informações visuais e táteis, além das estratégias específicas do modelo comportamental da linha de tratamento a que é submetido. As diversas formas de monitoramento fazem com que o deficiente auditivo crie um sistema próprio de produção vocal, o que o diferencia enormemente dos ouvintes normais.

A qualidade vocal do deficiente auditivo severo e profundo é comumente considerada desviada sob os pontos de vista perceptivo-auditivo e acústico. Segundo Calvert8, os termos mais utilizados para descrevê-la são: tensa, soprosa, áspera, desafinada e gutural.

Os desvios vocais apresentados podem interferir na inteligibilidade da fala e comprometer a integração social do indivíduo, pois a qualidade vocal é constantemente rejeitada pelo ouvinte. No processo de reabilitação da comunicação de um indivíduo portador de deficiência auditiva, atenção especial é dada na apropriação da articulação, negligenciando-se, freqüentemente, a reabilitação da função vocal.

Apesar de a incidência de distúrbios vocais ser muito alta nos deficientes auditivos, há uma limitação de dados objetivos referentes à descrição das características acústicas da qualidade vocal por eles apresentada.

Os deficientes auditivos freqüentemente apresentam dificuldades no controle da função laríngea para a fala, resultando em aspectos de qualidade vocal alterados8, 13, 14, 14, 17, 17. Monsen e colaboradores15 observaram que alguns surdos apresentam episódios de diplofonia e de crepitação, além de padrões irregulares de mudança de freqüência e intensidade da onda glótica, denotando uma inabilidade no controle da tensão das pregas vocais e da pressão subglótica.

Há um consenso entre vários autores7, 9, 15, 16, 21 quanto a que o esforço fonatório da voz do deficiente auditivo é resultante do fluxo de ar e da pressão subglótica insuficientes, os quais perturbam a aerodinâmica da vibração, levando a um esforço muscular maior que o normal e/ou um aumento da tensão vocal para se produzir e manter a fonação. Tal esforço resulta em pobre inteligibilidade de fala.

A dificuldade na manutenção do equilibrio da tensão apropriada entre as pregas vocais durante a fonação pode explicar a qualidade vocal áspera, freqüentemente encontrada nos deficientes auditivos. Além da aspereza, a tensão excessiva propicia a elevação da freqüência fundamental8, 11, 16, 17. Na descrição dos desvios vocais apresentados pelos deficientes auditivos é comum a referência às inadequações da freqüência fundamental8, 11, 16, 18, 22 e da sua variabilidade1, 8, 10, 13, 15, 16, 18, 22, 27, dois parâmetros acústicos extremamente importantes na identificação e qualificação da voz pelo ouvinte.

A literatura apresenta consideráveis controvérsias relacionadas aos valores da freqüência fundamental das vozes das crianças deficientes auditivas. Alguns autores relatam valores nos limites da normalidade6, 10 ,14, 15, 20, 23, 26. Boone6 ressalta que crianças deficientes auditivas com idade entre sete e oito anos de idade apresentam freqüência habitual de fala semelhante à das crianças ouvintes normais; no entanto, à medida que se desenvolvem, não há uma redução da mesma, o que é comumente esperado em adolescentes ouvintes normais. Osberger e McGarr20 concluem, após uma revisão de vários estudos, que não existe diferença significativa entre a f0 de crianças deficientes auditivas e ouvintes normais entre seis e 12 anos. Monsen14, estudando um grupo de crianças deficientes auditivas, de 3a 9m a 6a 3m, encontrou uma média de f0 de 297 Hz, valor este que se enquadrava no grupo dos ouvintes normais.

Gilbert e Campbell10, estudando 62 crianças deficientes auditivas divididas em três grupos: quatro a seis anos, oito a 10 anos e 16 a 25 anos, relataram que as freqüências fundamentais para o grupo dos meninos foram, respectivamente: 346, 306 e 142 Hz; e, para as meninas, 300, 307 e 242 Hz, não encontrando diferenças significativas entre as crianças deficientes auditivas e as ouvintes normais. A variação tonal foi considerada mais restrita e repetitiva nos deficientes auditivos.

Outros autores consideram a freqüência fundamental da fala dos deficientes auditivos mais elevada que a dos ouvintes normais1, 16, 18. Angelocci e colaboradores1 avaliaram 18 garotos deficientes auditivos com idade entre 11 e 14 anos e os compararam com crianças ouvintes normais. A freqüência fundamental dos deficientes auditivos foi 236 Hz, significantemente mais alta que a do grupo normal, com média de 193 Hz. Segundo Nickerson1, os deficientes auditivos exibem distúrbios na freqüência modal e ha entoação. A freqüência é mais aguda e menos estável, enquanto que a entoação inapropriada consiste em voz monótona ou em variações de altura excessivas e irregulares.

Pruszewics e colaboradores22 investigaram as características dos distúrbios vocais em 18 pacientes com perda auditiva profunda, divididos em três grupos, de acordo com a aquisição da perda: congênito, até três anos de vida e pós-lingual. Nos congênitos, observaram grande variabilidade da freqüência fundamental ciclo a ciclo e falta de controle da intensidade e da freqüência, variabilidade essa que diminui progressivamente nos outros grupos.

Considerando-se o panorama apresentado na literatura e a importância da freqüência fundamental e da sua variabilidade na definição da qualidade vocal, tivemos interesse de investigar o efeito da deficiência auditiva na função vocal e estabelecer o seu desvio da normalidade. Desta forma, o presente trabalho teve como objetivo avaliar a freqüência fundamental e a sua variabilidade nas vozes de crianças portadoras de deficiência auditiva neurossensorial severa e profunda e comparar com os níveis médios de crianças ouvintes normais.

MATERIAL E MÉTODO

Participaram do presente estudo 64 crianças deficientes auditivas, que constituíram o grupo experimental, e 90 crianças ouvintes normais, que formaram o grupo controle, brasileiras, residentes na cidade de São Paulo, e com idade compreendida entre seis e 13 anos, pré-muda vocal.

Das 64 crianças portadoras de deficiência auditiva neurossensorial pré-lingual severa e profunda, 33 eram do sexo masculino (51,6%); e 31, do sexo feminino (48,4%), alunas de escola especial. Com base nas médias dos limiares auditivos de 0,5, 1 e 2 kHz da melhor orelha, 18 crianças (28%) foram classificadas como portadoras de deficiência auditiva severa e 46 crianças (72%) apresentaram deficiência auditiva profunda, segundo critério de Silman e Silverman24. Não foram controladas as variáveis: época do diagnóstico da deficiência auditiva, tipo de amplificação, uso e manutenção dos aparelhos de amplificação sonora individual, limiares auditivos com o aparelho e história educacional.

Das 90 crianças do grupo controle, 47 eram do sexo masculino (52,2%); e 43, do feminino (47,8%o), todas com história negativa de distúrbios da comunicação e estudantes de escola normal.

O protocolo de pesquisa foi previamente analisado e aprovado pela Comissão de Ética da instituição. Todos os responsáveis dos participantes foram devidamente informados sobre o objetivo e os procedimentos envolvidos no presente trabalho e, assinaram um termo de consentimento de participação no estudo.

Cada indivíduo foi submetido a uma gravação da sua voz durante as emissões das vogais: "a", "i" e "u", sustentadas na freqüência e intensidade habituais de fala. Os registros foram efetuados em ambiente silente, utilizando-se microfone unidirecional da marca Le Son modelo SM-58-BK, instalado em um pedestal e posicionado em ângulo de 45Q em relação à boca do indivíduo, através do sistema de registro digital Minidisc Sharp, modelo MD-MS702.

As gravações realizadas foram submetidas às análises acústica e perceptivo-auditiva. Para a análise acústica empregou-se o programa computadorizado Dr. Speech, Tiger DRS, versão 4.0, utilizando-se o módulo Real Analysis. Os parâmetros acústicos selecionados para análise foram: média dos valores da freqüência fundamental (em Hz), desvio-padrão da freqüência fundamental (em Hz) e variabilidade da freqüência fundamental durante a sustentação (f0 range, em número de semitons).

A freqüência fundamental (f0) é determinada fisiologicamente pelo número de ciclos que as pregas vocais realizam em um segundo. É determinada pelo comprimento natural da prega vocal, pelo alongamento da mesma, pela massa colocada em vibração e pela tensão envolvida. É afetada pelo sexo e idade. No português brasileiro falado em São Paulo, as crianças apresentam valores acima de 250 Hz, atingindo 400 Hz nos bebês2, 4, 5.

A freqüência fundamental apresenta uma certa variabilidade que é expressa através do número de semitons (f0 range = f0 máxima -f0 mínima), ou através do cálculo de um índice que é o desvio-padrão da f0. Em indivíduos normais esta variabilidade não ultrapassa 2 Hz3.

Para a análise perceptivo-auditiva, os registros em minidisco das vozes dos deficientes auditivos e do grupo controle foram inicialmente transferidos e editados em ordem aleatória, em fitas cassetes da marca Sony, type II high bias UX. Esses registros foram apresentados a 14 fonoaudiólogas especialistas em voz, a fim de que identificassem a voz como pertencente a um ouvinte normal ou a um deficiente auditivo.

O tratamento estatístico do trabalho foi realizado pela análise das variáveis: média dos valores da freqüência fundamental, desvio-padrão da freqüência fundamental e número de semitons segundo as vogais "a", "i" e "u" e a idade, através do cálculo de regressão linear múltipla (Neter, 1996), de-, ido a grande variabilidade apresentada pelas amostras de voz. A concordância entre os resultados da análise perceptivo-auditiva das vozes foi estudada através do teste de concordância kappa (Agresti, 1990).

RESULTADOS

Os resultados obtidos nas análises acústica e perceptivoauditiva das vozes de 64 crianças deficientes auditivas (33 do sexo masculino e 31 do sexo feminino) e sua comparação com os valores obtidos em crianças ouvintes normais (47 do sexo masculino e 43 do sexo feminino), com faixa etária entre seis e 13 anos, encontram-se nas tabelas e Gráficos de 1 a 3.

A Tabela 1 e os Gráficos 1 e 2 apresentam os valores obtidos nos modelos de regressão linear múltipla referentes à média dos valores da freqüência fundamental e ao desvio-padrão da f0. Os valores do modelo de regressão linear múltipla para o número de semitons encontram-se na Tabela 2e no gráfico 3. Os resultados quanto à avaliação perceptivo-auditiva encontram-se na Tabela 3.



Gráfico 1. Valores obtidos do modelo de regressão linear múltipla para a média dos valores da freqüência fundamental (Ave f0), em Hertz, em função da idade, em anos, para os deficientes auditivos e ouvintes normais, nas emissões das vogais "a", "i" e "u".



DISCUSSÃO

A análise acústica da voz da criança com deficiência auditiva mostrou desvios acentuados nos parâmetros analisados, o que provavelmente guiou a elevada identificação correta dessas crianças na avaliação perceptivo-auditiva, pelas especialistas.

A literatura apresenta resultados controversos quanto à freqüência fundamental na criança deficiente auditiva, sendo que alguns autores apontam valores dentro dos limites da normalidade6, 10, 14, 15, 20, 23, 26. Nossos resultados, porém, coincidem com os estudos nos quais a freqüência fundamental é considerada mais aguda em relação à média da normalidade1, 16, 18. Os valores de f0 encontrados foram significantemente mais elevados nos deficientes auditivos (Tabela 1), chegando, algumas das vozes de nosso grupo experimental, a serem muito mais agudas que as referidas na literatura. Encontramos valores médios de 447,95 Hz para o "a"; 475,97 a 404,78 Hz para o "i"; 458,11 a 391,21 Hz para o "u", valores estes extremamente mais agudos que os obtidos nos ouvintes normais: 256,24 Hz para o "a"; 300,13 a 228,94 Hz para o "i"; 308,12 a 241,22 Hz para o "u" (Tabela 1).

Os achados de Subtelny e colaboradores25 e de Ryalls e Larouche23 revelam que nos deficientes auditivos as vogais mais altas apresentam valores de f0 mais elevados que o "a"; no entanto, esse achado não coincide com os nossos, nos quais apenas nas idades de seis, sete e oito anos a vogal "i" foi a mais aguda, sendo que nas idades de nove, 10, 11, 12 e 13 anos a vogal "a" foi a mais aguda (Tabela 1).



Gráfico 2. Valores obtidos do modelo de regressão linear múltipla para o desvio-padrão (DP f0), em Hertz, das vogais "a", "i" e "u", nos deficientes auditivos e nos ouvintes normais, segundo à idade, em anos.



Gráfico 3. Valores obtidos do modelo de regressão linear múltipla para o número de semitons, em unidade, em função do sexo, nas emissões das vogais "a", "i" e "u", nos deficientes auditivos e nos ouvintes normais.



Na análise acústica computadorizada da voz da criança com deficiência auditiva severa e profunda, pudemos observar que no parâmetro acústico, média dos valores da freqüência fundamental, o sexo não foi uma variável significante, não tendo havido a possibilidade de identificação do sexo de uma criança pelo seu valor da f0. Já com relação à idade, observamos uma redução gradual dos valores de fo em função do aumento da idade, nas emissões do "i" e do "u"; o que é esperado fisiologicamente pelo próprio processo maturacional do sistema fonatório. Tal redução não foi observada na vogal "a", demonstrando esta ser pouco sensível ao fator faixa etária (Gráfico 1)



TABELA 1 - Valores obtidos do modelo de regressão linear múltipla para a média dos valores da freqüência fundamental (Ave fo) e do desvio-padrão (DP), em Hertz, obtidos nos deficientes auditivos e ouvintes normais segundo à idade, em anos e sexo, nas emissões das vogais "a", "i" e "u".



Horii11, estudando mulheres adolescentes, encontrou uma produção com freqüência elevada nas deficientes auditivas quando comparadas com as ouvintes normais, referindo que a redução natural da f0 não: acontecera no grupo analisado. Em nosso estudo, pudemos observar uma redução da f0, pelo menos até os 13 anos de idade; no entanto, mesmo reduzidos, estes valores foram significantemente mais elevados que os dos ouvintes normais.

Malmberg12 explica que a prevalência de valores de freqüência fundamental elevados ocorre porque a sensação de intensidade é diretamente proporcional ao quadrado da variação da freqüência de um som. Portanto, elevar a f0 seria um mecanismo que o deficiente auditivo usaria para ampliar a sensação auditiva; e, conseqüentemente, o monitoramento auditivo, facilitando assim a detecção da própria voz, ainda que o padrão gerado seja pouco inteligível.

O emprego de uma freqüência fundamental elevada reflete um pobre controle laríngeo, traduzido também por uma elevação da laringe, um maior esforço fonatório e uma inabilidade no controle da tensão das pregas vocais e da pressão subglótica, como é salientado por vários autores7, 9, 11, 15, 16, 17, 19, 21, 25.

Segundo vários autores1, 13, 16, 18, 22, os deficientes auditivos apresentam uma excessiva variação inapropriada da freqüência fundamental, o que coincide com os achados do nosso estudo (Tabela 2).



TABELA 2 - Valores obtidos do modelo de regressão linear múltipla para o número de semitons, em unidade, nos ouvintes normais e deficientes auditivos segundo a variável sexo, nas emissões das vogais "a" "i" e "u".




Os deficientes auditivos apresentaram uma grande variabilidade da freqüência fundamental, revelada pelos valores aumentados de desvio-padrão e do número de semitons. Segundo Monsen14, essa variação da freqüência fundamental tem grande correlação com a qualidade vocal, fazendo com que haja uma diferenciação entre os bons e os maus falantes.

Com relação ao desvio-padrão da f0 nas vogais "i" e "u", em ambos os grupos (deficientes auditivos e ouvintes normais) o sexo não foi relevante; no entanto, houve uma diminuição de seus valores em função do aumento da idade, significando que uma maior estabilidade laríngea foi adquirida pelas crianças mais velhas (Tabela 1 e Gráfico 2). Com relação à vogal "a", pudemos observar que apenas a variável sexo foi significante: as meninas deficientes auditivas obtiveram valores mais elevados que os meninos, revelando uma maior instabilidade na sustentação (Tabela 1 e Gráfico 2). Os valores encontrados nos deficientes auditivos foram extremamente mais elevados que os dos ouvintes normais.

Outra variável que pôde demonstrar essa grande instabilidade da freqüência fundamental foi o valor do número de semitons na sustentação da vogal. Na Tabela 2 pudemos observar que a idade não foi um fator significante; porém, com relação ao sexo, pudemos verificar um elevado número de semitons nas meninas deficientes auditivas na produção do "a" coincidindo com o elevado valor de desvio-padrão encontrado. Os deficientes auditivos apresentaram um enorme valor de semitons quando comparados com os ouvintes normais. O Gráfico 3 mostra claramente os elevados números de semitons encontrados nos deficientes auditivos.

Além da avaliação acústica, cujos dados já foram comentados, foi realizada também uma avaliação perceptivo-auditiva das vozes de todas as crianças envolvidas no trabalho, para verificar se os desvios que se supunham encontrar representavam marcadores importantes das vozes dessas crianças. De acordo com o teste de concordância kappa (Tabela 3), pudemos verificar elevada concordância entre as examinadoras, na tarefa de identificação das vozes como pertencentes às crianças deficientes auditivas ou com audição normal (entre 0,808 e 0,907), o que havia sido anteriormente salientado por Thomas-Kersting e Casteel27. Assim, nossos dados indicam que os ouvintes treinados, no caso fonoaudiólogas, identificam claramente as vozes das crianças deficientes auditivas. Já Calvert8 ressaltou, em seu estudo, que os deficientes auditivos não poderiam ser reconhecidos apenas pelas vogais, sendo necessárias frases para uma identificação mais apurada, o que contraria nossos achados, onde os deficientes auditivos foram facilmente identificados apenas pelos marcadores vocais das emissões das vogais.



TABELA 3 - Valores do teste de concordância Kappa para as crianças ouvintes normais e deficientes auditivas.



Provavelmente, as variáveis que não foram controladas, neste e em outros estudos descritos na literatura, assim como questões metodológicas, respondem pelos diferentes resultados apresentados. Devido à diversidade dos aspectos relacionados à deficiência auditiva, como natureza e grau da perda, idade, amplificação sonora e tipo de reabilitação, talvez nunca tenhamos parâmetros objetivos definidos como bases universais; porém, os desvios apresentados são evidentes.

Este estudo constatou, através da análise acústica e perceptivo-auditiva da omissão das vogais sustentadas no deficiente auditivo, que este possui um padrão fonatório desviado dos padrões esperados para o sexo e a idade, fazendo com que ele seja facilmente identificado como tal. Reforça-se, assim, a noção de que a voz do deficiente auditivo deve ser especificamente trabalhada, para minimizar o impacto da deficiência auditiva na comunicação oral e contribuir para sua integração social.

CONCLUSÃO

A partir do estudo comparativo dos parâmetros acústicos vocais em 64 crianças portadoras de deficiência auditiva neurossensorial pré-lingual severa e profunda e 90 crianças sem história de distúrbios da comunicação, com idades compreendidas entre seis e 13 anos, pudemos concluir que a voz do deficiente auditivo é caracterizada por:

o Uso de freqüência fundamental muito elevada, refletindo um pobre controle laríngeo.

o Presença de variabilidade excessiva da freqüência fundamental na emissão sustentada, revelando a grande instabilidade de todo o sistema.

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*Fonoaudióloga Especialista em Voz.
** Doutora Fonoaudióloga Especialista em Voz; Coordenadora Didático-Científica do Curso de Especialização em Voz do Centro de Estudos da Voz - CECEV, São Paulo/ SP.
*** Professor Doutor Chefe de Clínica do Departamento de Otorrinolaringologia da Santa Casa de São Paulo.

Trabalho realizado no Centro de Estudos da Voz - CEV, São Paulo/ SP.
Trabalho apresentado no 35° Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, recebendo Menção Honrosa.
Endereço para correspondência: Maria do Carmo Giusti - Rua dos Bandeirantes, 98 - Bom Retiro - 01124-010 São Paulo/ SP - Telefone: (0xx11) 229-7533.
E-mail: mamogiusti@uol.com.br
Artigo recebido em 15 de agosto de 2000. Artigo aceito em 20 de outubro de 2000.

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