Ano: 1998 Vol. 64 Ed. 4 - Julho - Agosto - (10º)
Seção: Relato de Casos
Páginas: 407 a 413
Achados Audiométricos Subjetivo e Objetivo em Angioma Venoso de Cerebelo e Tronco Cerebral: Relato de Caso.
Subjetive and Objective Audiometric Findings of Venous Angioma in Cerebellum and Brain Stem: Case Report.
Autor(es):
Ronaldo C. Santos Júnior*
Aríete C. da S. Granizo** ;
Luís A. P. Figueiredo* ;
Edigar R. Almeida ***i
Silveira, J. A. M.***;
Ossamu Butugan****.
Palavras-chave: BERA, angioma venoso, hipoacusia
Keywords: ABR, venous angioma, deafness
Resumo:
Angiomas venosos são lesões vasculares comuns em exames de imagem. A patogênese dessas lesões é desconhecida, parecendo ser congênita. Relatamos um caso de angioma venoso no núcleo denteado cerebelar e tegmen pontino à esquerda, com achados audiométricos peculiares. Paciente do sexo feminino, com 50 anos de idade, com vertigem há oito meses e hipoacusia à direita há anos e exame físico normal. Disacusia moderada à direita, com baixa discriminação, foi observada nas audiometrias tonal e vocal. À audiometria de troncocerebral, o intervalo P5-Pl apresentava-se aumentado à esquerda, e, à direita, P5 isolada com latência normal, considerando-se a disacusia. Patologia retrococlear foi confirmada à tomografia computadorizada e à ressonância magnética. Optou-se pelo seguimento da paciente e administração de medicamentos sintomáticos, devido à alta morbidade da intervenção cirúrgica para tal lesão.
Abstract:
Venous angiomas are the most commonly encountered vascular lesion in imaging exams. The exact pathogenesis of developmental venous anomalies is unknown. They appear tobe congenital lesions. We report a case of a 50-year-old female, who was complaining about vertigo for eight months and deafness in the right ear a long time ago, with deep venous angioma in dentate cerebellum ancí left pontine regions. The audiometry showed a moderate decrease and low discrimination. The Brainstem Evoked Response Audiometry showed an increase in the P5-Pl interval in the left side and an isolated P5 with normal latency in the right, considerating the loss of the hearing at this lide. The retrococlear pathology was confirmed by CT scan and MR. Due to the danger of the surgery for this case, we chose to follow up the patient with symptomatic drugs.
INTRODUÇÃO
Os angiomas venosos, também denominados anomalias de desenvolvimento venoso (AVD), são atualmente as lesões vasculares intracranianas mais comumente diagnosticadas, em função do avanço das técnicas por imagem. A maioria é assintomática ou não complicada, sendo raramente necessária a cirurgia para sua remoção.
A patogênese das malformações vasculares cerebrais não é bem esclarecida. Uma hipótese, a mais correntemente aceita, é a origem congênita, a partir de distúrbio no desenvolvimento vascular, já, aproximadamente, nas três semanas de vicia intrauterina. Ocorreria, ou retenção de remanescentes vasculares embriológicos, ou displasia primária de capilares e vênulas, ou trombose intrauterina. Aventa-se, tabém, a origem traumática ou por cirurgia, assim como trauma crânio-encefálico2.
O diagnóstico de AVDs é feito com arteriografia cerebral, CT de crânio, com e sem contraste, e, atualmente, o ideal é a RNM de crânio com venografia e/ou angiografia.
O tratamento cirúrgico para angiomas venosos não complicados (sem hemorragia) não é sempre obrigatório. Quando são muito profundos, a opção terapêutica é a ligadura dos pedículos vasculares nutridores3.
Relatamos um caso de angioma venoso de cerebelo e ponte, à esquerda, que se iniciou com apresentação rara de disacusia neuro-sensorial do lado oposto, onde a audiometria de tronco cerebral (BERA) foi extremamente elucidativa, facilitando o diagnóstico final.
RELATO DO CASO
F. V. H. N., com 50 anos de idade, do sexo feminino, procurou o serviço médico por apresentar episódios de vertigem súbita há oito meses. A paciente descrevia esta vertigem como sensação de desequilíbrio intenso, com sensação de queda iminente, sem lado preferencial, com duração de segundos. Negava sintomas autonômicos acompanhando o quadro. Também apresentava hipoacusia à direita há anos, não sabendo definir o início desta perda auditiva. Negava zumbido, otalgia, infecções de ouvido, plenitude auricular ou cefaléia. Negava alterações dos demais aparelhos. O exame físico, otorrinolaríngológico e otoneurológico, foi normal.
Figura 1. Audiograma
Foram, então, solicitadas audiometrias tonal e vocal. A audiometria tonal revelou disacusia neuro-sensorial moderada/severa, à direita; e, à esquerda, queda leve em agudos, a partir de 4.000 Hz (Figura 1). O SRT (Speech Recognition Threshold), à direita, foi de 70 dB; e, à esquerda, de 10 dB. A discriminação vocal, à direita, foi de 6814, a 100 dB; e 100%, a 40 dB, à esquerda. A impedanciometria foi normal, com reflexos estapedianos presentes e timpanometria normal. Devido à queda neuro-sensorial assimétrica e à baixa discriminação, à direita, na audiometria vocal, foi solicitada audiometria de tronco cerebral (BERA). O BERA foi realizado com sistema de canal simples, no aparelho Amplaid MK-12, com eletrodo ativo na fronte e de referência em lóbulos auriculares (mastóides), de intensidades em dBSPL (correspondendo a trenos 30 de dBHL). O exame revelou intervalo P5-P1 (interpicos das ondas V e I) aumentado à esquerda (lado contralateral à disacusia neurosensorial e à baixa discriminação nas audiometrias); e, à direita, presença isolada de P5 cotas latência pouco aumentada, considerando-se a disacusia (Figuras 2, 3, 4 e 5). A morfologia das ondas também estava alterada, com menor amplitude. Concluindo, o BERA foi sugestivo de patologia retrococlear. Diante da hipótese de patologia retrococlear, solicitamos tomografia computadorizada (CT) de ossos temporais e ressonância magnética (RNM) de crânio. Na RNM de crânio foi observada, em região de núcleo denteado cerebelar e tegmento pontino adjacente à esquerda, estrutura vascular anômala ectasiada e ramificada em região distal, sem realces anômalos após adição de contraste (Figuras 6 e 7). O nervo facial e o nervo coclear foram bem individualizados com morfologia normal, sem evidência de realce anômalo após contraste. Os ângulos ponto-cerebelares estavam bem definidos e serra alterações.
Figura 2. BERA, 1 esquerda.
Figura 3. BERA, à esquerda.
O caso foi discutido conjuntamente com a equipe de Neurocirurgia, optando-se por tratamento paliativo, com medidas sintomáticas e acompanhamento periódico da paciente, uma vez que a cirurgia para remoção desta lesão seria de grande morbidade, devido a sua localização.
DISCUSSÃO
Russel e Rubinstein, em 1951, classificaram as malformações cerebrais vasculares em teleangectasias, malformações arteriovenosas, angiomas venosos e angiomas cavernosos.
Courville, em 1963, descreveu pequenas malformações vasculares de composição somente venosa, com um tronco venoso principal. Huang e colaboradores, assim como Lasjaunais e colaboradores, mais tarde, definiram AVD como malformação de estrutura venosa, sem qualquer anormalidade capilar ou arterial. É caracterizada pela convergência de muitas veias em uma só veia, ou, ocasionalmente, múltiplas, com aumento da veia parenquimal ou medular, em forma de cabeça de medusa ou de guarda-chuva. A veia terminal dilatada drena superficialmente para veias ou seios venosos, ou profundamente. Quando drena profundamente, dirigese para veias subependimais do ventrículo lateral, ou para o IV ventrículo, ou para veia pré-central cerebelar. Quanto às localizações mais freqüentes, Garner e colaboradores, encontraram, na avaliação de 100 pacientes com AVD, através de angiografias, CT e RNM, 42% de ocorrência em frontal, 24% em região parietal, 14% em cerebelo, 11 % em ventrículos, 4% occipitais, 3% em tronco cerebral e 2% em temporal. Lee e colaboradores observaram que estas lesões são relativamente mais comuns em cerebelo, encontrando 36% em região frontal, 22% em cerebelo, 22% em lobo parietal, 10% temporal, 4% occipital e basal e 2% em ponte. Wilms e colaboradores, por outro lado, em estudo com 28 pacientes e 29 AVDs, encontraram freqüências próximas de AVD em região frontal e cerebelo, nas seguintes porcentagens: 38% frontal, 38% cerebelar, 10% parietal, 10% occipital, 7% temporal. No caso relatado, a lesão encontra-se em cerebelo, no núcleo denteado e em ponte, tio tegmento. Ainda, segundo Valavanis e colaboradores, as AVDs podem ser superficiais, justacorticais ou subcorticais, profundas ou periventriculares. Nosso paciente apresentou angioma venoso de localização profunda em cerebelo, pois o núcleo denteado é um dos núcleos profundos do cerebelo, de onde partem fibras aferentes, com ação sobre os núcleos vestibulares na ponte.
Figura 4. BERA, à direita.
Figura 5. BERA, à direita.
Figura 6. RNM (TI com contraste), em corte axial, mostrando angioma venoso, em hemisfério cerebelar esquerdo, estendendo-se para tegmento pontino adjacente.
Figura 7. RNM (TI), em corte coronal, mostrando ectasia vascular anômala, em região de núcleo denteado cerebelar.
As malformações vasculares cerebrais estão presentes desde o nascimento e têm crescimento lento. Geralmente, são assintomáticas. Os sintomas, quando presentes, são variáveis, dependendo da localização da lesão. A epilepsia ocorre em 30% dos pacientes, a maioria com crises parciais. Pode ocorrer cefaléia, por aumento da pressão intracraniana, ou sinais neurológicos deficitários, geralmente de aparição progressiva, por atrofia do parênquima cerebral adjacente à lesão (ou por desvio do aporte sangüíneo, ou por estase venosa). No caso reportado, há queixa de hipoacusia à direita há anos, sem especificação sobre o início desta perda, que foi confirmada pelos exames audiométricos subjetivos e objetivos, e episódios de sensação súbita de desequilíbrio importante, com duração de segundos.- As perdas auditivas típicas retrococleares são lentamente progressivas, unilaterais, neuro-sensoriais, cora zumbido e baixa discriminação. Entretanto, muitos autores mostraram que as perdas auditivas, por desordens otoneurológicas, são variadas. O mecanismo da perda não é claramente compreendido: se ocorre por compressão direta do nervo coclear (VIII), ou das vias auditivas centrais, por diminuição do suprimento sangüíneo da cóclea, ou VIII nervo, ou pela combinação de diversos fatores. A vertigem é sintoma que pode ocorrer tanto em patologia central quanto periférica. A vertigem descrita por esta paciente não era rotatória, compatível com processo agudo unilateral, mas como sensação de desequilíbrio e fraqueza, a qual é geralmente associada à lesão sub aguda ou crônica unilateral, ou bilateral, ou pode representar fator normal de compensação após lesão vestibular aguda que pode durar de semanas a meses. Quando persistentes, refletem ou má compensação ou perda contínua da função vestibular". Lesões da fossa posterior e neuroma do VIII são as causas mais comuns de deterioração gradual da função vestibular. Quando a vertigem é devida a lesão central, é, geralmente, constante, mas pode ser episódica, especialmente em estágios iniciais. A semiologia das síndromes vestibulares centrais é muito imprecisa.
A primeira suspeita de patologia retrococlear, neste caso clínico, não foi devida aos sintomas da paciente, irias ao resultado da audiometria subjetiva. Para a confirmação da audiometria subjetiva é que foi solicitado o BERA, que é método objetivo de -avaliação das vias auditivas periférica e central, composto de cinco a sete ondas bifásícas, em período de 10 ms, em resposta a estímulo auditivo. Neste exame, foi observado aumento do intervalo P5-P1 à esquerda, lado contralateral à perda auditiva neurosensorial referida pela paciente e mais importante nos exames audiométricos tonal e vocal. No lado direito, apresentou latência pouco aumentada da onda V, devendo-se considerar a disacusia neste lado, que não permite a avaliação dentro dos limites de intensidade do estímulo sonoro do exame.
A morfologia das ondas presentes estava pouco alterada, com menor amplitude e levemente alargada. À esquerda, os intervalos interpicos foram: I-II1 2,320 ms; 1-V 4,600 ms; e III-V 2,280 ms. Segundo o critério estabelecido pelo laboratório de Audiologia da Universidade de Michigan, os valores destes intervalos para positividade do teste são: I-III > / = 2,3 ms; I-V > / = 4,4 ms; III-V > / = 2,1 ms". De acordo com este critério, todos os intervalos estão aumentados, sendo positivos, portanto, para a suspeita de patologia retrococlear. À esquerda, a latência da onda V foi 6,040 ms; e, à direita, 6,080 ms.
A latência dita normal para onda V, de 5,5 a 6,0 ms3, considerada pouco prolongada à esquerda e à direita. Selters propôs mais um critério para positividade do BERA, considerando-se a diferença interaural da latência da onda V (ILD-V > 0,2 ms, com sensibilidade de 94% e especificidade de 79%",4. A probabilidade de afecção retrococlear aumenta monotonicamente, até a ILD-V atingir o valor de 0,7 ms". O valor ILD-V, no caso descrito, foi 0,04. Estudos de JannettaS, para localização dos sítios geradores das ondas do BERA, sugerem que os dois primeiros componentes, as ondas I e II, são correspondentes ao nervo coclear, ou melhor, à atividade reflexa das porções distais e proximais do VIII nervo, respectivamente, devido à transição da bainha de Schwann para neuroglia próxima ao meato acústico interno, gerando dois potenciais diferentes.
A atividade no núcleo coclear e complexo olivar superior é refletida pelas ondas III e IV, respectivamente. A onda V reflete, segundo estes autores, a atividade do lemnisco lateral, e não do colículo inferior, como foi previamente relado na literatura. A atividade neural no colículo inferior coincide temporariamente com a negatividade pós-onda VI. Os picos VI e VII são altamente complexos em natureza e, provavelmente, refletem a ativação de geradores múltiplos neurais". Os achados no BERA, deste relato, foram sugestivos de patologia retrococlear, que não estaria, aparentemente, relacionada à queda auditiva direita, mas presente no lado contralateral. Entretanto, nada se pode afirmar, de maneira conclusiva, a respeito do lado direito, já que este não apresentava limiar adequado para os estímulos sonoros do exame.
Diante da suspeita de patologia retrococlear, é obrigatório o exame de imagem, para a investigação correta. O resultado da RNM confirmou a hipótese de lesão central, evidenciando imagem compatível com angioma venoso profunda e mais lateralizado de cerebelo, em provável núcleo denteado, e em tegmento pontino adjacente, à esquerda.
O caso relado teve o diagnóstico de angioma venoso (AVD) -que, pela sua localização, explicaria a sintomatologia e os achados audiométricos encontrados. A hipótese é de que esta lesão estaria provocando estes sintomas, ou por múltiplos fatores (compressão em ponte e/ou cerebelo, sítio da lesão, alteração sangüínea nas adjacências), ou por combinação de alguns deles, ou por algum, isoladamente. A lesão encontra-se no núcleo do cerebelo, que é aferente para os núcleos vestibulares, na ponte. Apesar de haver várias conexões entre cerebelo e ponte, acreditamos que a sintomatologia cerebelar seria mais intensa se a lesão no cerebelo estivesse diretamente provocando os sintomas (quadro clínico que pode alterarse com o decorrer do tempo), além de não explicar o mecanismo da perda auditiva. Por outro lado, a lesão compromete o tegmento pontino, à esquerda também, local onde estão os núcleos de pares cranianos, fibras nervosas ascendentes, descendentes e transversais, e a substância cinzenta. Sugerimos que esta lesão possa estar em ponto que venha a comprimir alguma região onde as fibras do VIII nervo, à direita, já tenham cruzado a ponte (a maioria das fibras do VIII par cruzam para o lado oposto, através do corpo trapezóide na ponte, para o núcleo olivar superior, do lado contralateral, formando, depois, o leminisco lateral; junto com algumas poucas fibras homolaterais). Também, nesta localização, deve comprometer alguns núcleos vestibulares (superior, inferior, medial, lateral), especialmente os lateralizados, e/ou atingir as aferências provenientes do cerebelo para estes núcleos. O nervo facial e seu núcleo são poupados por serem mais mediais.
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* Pós-Graduando da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.
** Médica Residente da Divisão de Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital (das Clinicas da FM da USP.
*** Professor-Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.
**** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia (Faculdade de Medicina da USP.
O trabalho foi realizado na Divisão de Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital das clínicas e LIM-32 cta Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Trabalho apresentado na XII Reunião da Sociedade Brasileira de Citologia, Rio de janeiro /RJ, em novembro de 1997. Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 6°- andar - 04531-012 São Paulo /SP - Telefone e fax: (011) 280-0299. Artigo recebido em 13 de fevereiro de 1998. Artigo aceito em 8 de maio de 1998.