INTRODUÇÃOOs angiomas venosos, também denominados anomalias de desenvolvimento venoso (AVD), são atualmente as lesões vasculares intracranianas mais comumente diagnosticadas, em função do avanço das técnicas por imagem. A maioria é assintomática ou não complicada, sendo raramente necessária a cirurgia para sua remoção.
A patogênese das malformações vasculares cerebrais não é bem esclarecida. Uma hipótese, a mais correntemente aceita, é a origem congênita, a partir de distúrbio no desenvolvimento vascular, já, aproximadamente, nas três semanas de vicia intrauterina. Ocorreria, ou retenção de remanescentes vasculares embriológicos, ou displasia primária de capilares e vênulas, ou trombose intrauterina. Aventa-se, tabém, a origem traumática ou por cirurgia, assim como trauma crânio-encefálico2.
O diagnóstico de AVDs é feito com arteriografia cerebral, CT de crânio, com e sem contraste, e, atualmente, o ideal é a RNM de crânio com venografia e/ou angiografia.
O tratamento cirúrgico para angiomas venosos não complicados (sem hemorragia) não é sempre obrigatório. Quando são muito profundos, a opção terapêutica é a ligadura dos pedículos vasculares nutridores3.
Relatamos um caso de angioma venoso de cerebelo e ponte, à esquerda, que se iniciou com apresentação rara de disacusia neuro-sensorial do lado oposto, onde a audiometria de tronco cerebral (BERA) foi extremamente elucidativa, facilitando o diagnóstico final.
RELATO DO CASOF. V. H. N., com 50 anos de idade, do sexo feminino, procurou o serviço médico por apresentar episódios de vertigem súbita há oito meses. A paciente descrevia esta vertigem como sensação de desequilíbrio intenso, com sensação de queda iminente, sem lado preferencial, com duração de segundos. Negava sintomas autonômicos acompanhando o quadro. Também apresentava hipoacusia à direita há anos, não sabendo definir o início desta perda auditiva. Negava zumbido, otalgia, infecções de ouvido, plenitude auricular ou cefaléia. Negava alterações dos demais aparelhos. O exame físico, otorrinolaríngológico e otoneurológico, foi normal.
Figura 1. Audiograma
Foram, então, solicitadas audiometrias tonal e vocal. A audiometria tonal revelou disacusia neuro-sensorial moderada/severa, à direita; e, à esquerda, queda leve em agudos, a partir de 4.000 Hz (Figura 1). O SRT (Speech Recognition Threshold), à direita, foi de 70 dB; e, à esquerda, de 10 dB. A discriminação vocal, à direita, foi de 6814, a 100 dB; e 100%, a 40 dB, à esquerda. A impedanciometria foi normal, com reflexos estapedianos presentes e timpanometria normal. Devido à queda neuro-sensorial assimétrica e à baixa discriminação, à direita, na audiometria vocal, foi solicitada audiometria de tronco cerebral (BERA). O BERA foi realizado com sistema de canal simples, no aparelho Amplaid MK-12, com eletrodo ativo na fronte e de referência em lóbulos auriculares (mastóides), de intensidades em dBSPL (correspondendo a trenos 30 de dBHL). O exame revelou intervalo P5-P1 (interpicos das ondas V e I) aumentado à esquerda (lado contralateral à disacusia neurosensorial e à baixa discriminação nas audiometrias); e, à direita, presença isolada de P5 cotas latência pouco aumentada, considerando-se a disacusia (Figuras 2, 3, 4 e 5). A morfologia das ondas também estava alterada, com menor amplitude. Concluindo, o BERA foi sugestivo de patologia retrococlear. Diante da hipótese de patologia retrococlear, solicitamos tomografia computadorizada (CT) de ossos temporais e ressonância magnética (RNM) de crânio. Na RNM de crânio foi observada, em região de núcleo denteado cerebelar e tegmento pontino adjacente à esquerda, estrutura vascular anômala ectasiada e ramificada em região distal, sem realces anômalos após adição de contraste (Figuras 6 e 7). O nervo facial e o nervo coclear foram bem individualizados com morfologia normal, sem evidência de realce anômalo após contraste. Os ângulos ponto-cerebelares estavam bem definidos e serra alterações.
Figura 2. BERA, 1 esquerda.
Figura 3. BERA, à esquerda.
O caso foi discutido conjuntamente com a equipe de Neurocirurgia, optando-se por tratamento paliativo, com medidas sintomáticas e acompanhamento periódico da paciente, uma vez que a cirurgia para remoção desta lesão seria de grande morbidade, devido a sua localização.
DISCUSSÃORussel e Rubinstein, em 1951, classificaram as malformações cerebrais vasculares em teleangectasias, malformações arteriovenosas, angiomas venosos e angiomas cavernosos.
Courville, em 1963, descreveu pequenas malformações vasculares de composição somente venosa, com um tronco venoso principal. Huang e colaboradores, assim como Lasjaunais e colaboradores, mais tarde, definiram AVD como malformação de estrutura venosa, sem qualquer anormalidade capilar ou arterial. É caracterizada pela convergência de muitas veias em uma só veia, ou, ocasionalmente, múltiplas, com aumento da veia parenquimal ou medular, em forma de cabeça de medusa ou de guarda-chuva. A veia terminal dilatada drena superficialmente para veias ou seios venosos, ou profundamente. Quando drena profundamente, dirigese para veias subependimais do ventrículo lateral, ou para o IV ventrículo, ou para veia pré-central cerebelar. Quanto às localizações mais freqüentes, Garner e colaboradores, encontraram, na avaliação de 100 pacientes com AVD, através de angiografias, CT e RNM, 42% de ocorrência em frontal, 24% em região parietal, 14% em cerebelo, 11 % em ventrículos, 4% occipitais, 3% em tronco cerebral e 2% em temporal. Lee e colaboradores observaram que estas lesões são relativamente mais comuns em cerebelo, encontrando 36% em região frontal, 22% em cerebelo, 22% em lobo parietal, 10% temporal, 4% occipital e basal e 2% em ponte. Wilms e colaboradores, por outro lado, em estudo com 28 pacientes e 29 AVDs, encontraram freqüências próximas de AVD em região frontal e cerebelo, nas seguintes porcentagens: 38% frontal, 38% cerebelar, 10% parietal, 10% occipital, 7% temporal. No caso relatado, a lesão encontra-se em cerebelo, no núcleo denteado e em ponte, tio tegmento. Ainda, segundo Valavanis e colaboradores, as AVDs podem ser superficiais, justacorticais ou subcorticais, profundas ou periventriculares. Nosso paciente apresentou angioma venoso de localização profunda em cerebelo, pois o núcleo denteado é um dos núcleos profundos do cerebelo, de onde partem fibras aferentes, com ação sobre os núcleos vestibulares na ponte.
Figura 4. BERA, à direita.
Figura 5. BERA, à direita.
Figura 6. RNM (TI com contraste), em corte axial, mostrando angioma venoso, em hemisfério cerebelar esquerdo, estendendo-se para tegmento pontino adjacente.
Figura 7. RNM (TI), em corte coronal, mostrando ectasia vascular anômala, em região de núcleo denteado cerebelar.
As malformações vasculares cerebrais estão presentes desde o nascimento e têm crescimento lento. Geralmente, são assintomáticas. Os sintomas, quando presentes, são variáveis, dependendo da localização da lesão. A epilepsia ocorre em 30% dos pacientes, a maioria com crises parciais. Pode ocorrer cefaléia, por aumento da pressão intracraniana, ou sinais neurológicos deficitários, geralmente de aparição progressiva, por atrofia do parênquima cerebral adjacente à lesão (ou por desvio do aporte sangüíneo, ou por estase venosa). No caso reportado, há queixa de hipoacusia à direita há anos, sem especificação sobre o início desta perda, que foi confirmada pelos exames audiométricos subjetivos e objetivos, e episódios de sensação súbita de desequilíbrio importante, com duração de segundos.- As perdas auditivas típicas retrococleares são lentamente progressivas, unilaterais, neuro-sensoriais, cora zumbido e baixa discriminação. Entretanto, muitos autores mostraram que as perdas auditivas, por desordens otoneurológicas, são variadas. O mecanismo da perda não é claramente compreendido: se ocorre por compressão direta do nervo coclear (VIII), ou das vias auditivas centrais, por diminuição do suprimento sangüíneo da cóclea, ou VIII nervo, ou pela combinação de diversos fatores. A vertigem é sintoma que pode ocorrer tanto em patologia central quanto periférica. A vertigem descrita por esta paciente não era rotatória, compatível com processo agudo unilateral, mas como sensação de desequilíbrio e fraqueza, a qual é geralmente associada à lesão sub aguda ou crônica unilateral, ou bilateral, ou pode representar fator normal de compensação após lesão vestibular aguda que pode durar de semanas a meses. Quando persistentes, refletem ou má compensação ou perda contínua da função vestibular". Lesões da fossa posterior e neuroma do VIII são as causas mais comuns de deterioração gradual da função vestibular. Quando a vertigem é devida a lesão central, é, geralmente, constante, mas pode ser episódica, especialmente em estágios iniciais. A semiologia das síndromes vestibulares centrais é muito imprecisa.
A primeira suspeita de patologia retrococlear, neste caso clínico, não foi devida aos sintomas da paciente, irias ao resultado da audiometria subjetiva. Para a confirmação da audiometria subjetiva é que foi solicitado o BERA, que é método objetivo de -avaliação das vias auditivas periférica e central, composto de cinco a sete ondas bifásícas, em período de 10 ms, em resposta a estímulo auditivo. Neste exame, foi observado aumento do intervalo P5-P1 à esquerda, lado contralateral à perda auditiva neurosensorial referida pela paciente e mais importante nos exames audiométricos tonal e vocal. No lado direito, apresentou latência pouco aumentada da onda V, devendo-se considerar a disacusia neste lado, que não permite a avaliação dentro dos limites de intensidade do estímulo sonoro do exame.
A morfologia das ondas presentes estava pouco alterada, com menor amplitude e levemente alargada. À esquerda, os intervalos interpicos foram: I-II1 2,320 ms; 1-V 4,600 ms; e III-V 2,280 ms. Segundo o critério estabelecido pelo laboratório de Audiologia da Universidade de Michigan, os valores destes intervalos para positividade do teste são: I-III > / = 2,3 ms; I-V > / = 4,4 ms; III-V > / = 2,1 ms". De acordo com este critério, todos os intervalos estão aumentados, sendo positivos, portanto, para a suspeita de patologia retrococlear. À esquerda, a latência da onda V foi 6,040 ms; e, à direita, 6,080 ms.
A latência dita normal para onda V, de 5,5 a 6,0 ms3, considerada pouco prolongada à esquerda e à direita. Selters propôs mais um critério para positividade do BERA, considerando-se a diferença interaural da latência da onda V (ILD-V > 0,2 ms, com sensibilidade de 94% e especificidade de 79%",4. A probabilidade de afecção retrococlear aumenta monotonicamente, até a ILD-V atingir o valor de 0,7 ms". O valor ILD-V, no caso descrito, foi 0,04. Estudos de JannettaS, para localização dos sítios geradores das ondas do BERA, sugerem que os dois primeiros componentes, as ondas I e II, são correspondentes ao nervo coclear, ou melhor, à atividade reflexa das porções distais e proximais do VIII nervo, respectivamente, devido à transição da bainha de Schwann para neuroglia próxima ao meato acústico interno, gerando dois potenciais diferentes.
A atividade no núcleo coclear e complexo olivar superior é refletida pelas ondas III e IV, respectivamente. A onda V reflete, segundo estes autores, a atividade do lemnisco lateral, e não do colículo inferior, como foi previamente relado na literatura. A atividade neural no colículo inferior coincide temporariamente com a negatividade pós-onda VI. Os picos VI e VII são altamente complexos em natureza e, provavelmente, refletem a ativação de geradores múltiplos neurais". Os achados no BERA, deste relato, foram sugestivos de patologia retrococlear, que não estaria, aparentemente, relacionada à queda auditiva direita, mas presente no lado contralateral. Entretanto, nada se pode afirmar, de maneira conclusiva, a respeito do lado direito, já que este não apresentava limiar adequado para os estímulos sonoros do exame.
Diante da suspeita de patologia retrococlear, é obrigatório o exame de imagem, para a investigação correta. O resultado da RNM confirmou a hipótese de lesão central, evidenciando imagem compatível com angioma venoso profunda e mais lateralizado de cerebelo, em provável núcleo denteado, e em tegmento pontino adjacente, à esquerda.
O caso relado teve o diagnóstico de angioma venoso (AVD) -que, pela sua localização, explicaria a sintomatologia e os achados audiométricos encontrados. A hipótese é de que esta lesão estaria provocando estes sintomas, ou por múltiplos fatores (compressão em ponte e/ou cerebelo, sítio da lesão, alteração sangüínea nas adjacências), ou por combinação de alguns deles, ou por algum, isoladamente. A lesão encontra-se no núcleo do cerebelo, que é aferente para os núcleos vestibulares, na ponte. Apesar de haver várias conexões entre cerebelo e ponte, acreditamos que a sintomatologia cerebelar seria mais intensa se a lesão no cerebelo estivesse diretamente provocando os sintomas (quadro clínico que pode alterarse com o decorrer do tempo), além de não explicar o mecanismo da perda auditiva. Por outro lado, a lesão compromete o tegmento pontino, à esquerda também, local onde estão os núcleos de pares cranianos, fibras nervosas ascendentes, descendentes e transversais, e a substância cinzenta. Sugerimos que esta lesão possa estar em ponto que venha a comprimir alguma região onde as fibras do VIII nervo, à direita, já tenham cruzado a ponte (a maioria das fibras do VIII par cruzam para o lado oposto, através do corpo trapezóide na ponte, para o núcleo olivar superior, do lado contralateral, formando, depois, o leminisco lateral; junto com algumas poucas fibras homolaterais). Também, nesta localização, deve comprometer alguns núcleos vestibulares (superior, inferior, medial, lateral), especialmente os lateralizados, e/ou atingir as aferências provenientes do cerebelo para estes núcleos. O nervo facial e seu núcleo são poupados por serem mais mediais.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS1. LEE, C.; PENNINGTON, M, A,; KENEY III, C. M. - MR Evaluation of Developmental Venous Anomalies; Meduallary Venous Anatomy of Venous Angiomas, AJNR Am. J. Neuroradiol. 17:61-70, 1996.
2. GULYA; A. J. - Pathological Correlates in Neurotology. In: JACKLER R.K., BRACKMANN D.E. - Neurotology, St. Louis, Mosby - Year Book Inc., 1994, 109-129.
3. CAMBIER, J.; MASSON, M.; DEHEN, H. - Abrégé de Neurologie, 4a ed, Paris, Masson Editeur, 1988, 353-361.
4. LASJAUNIAS, P.; BURROWS, P.; PLANTE, C. Developmental Venous Anomalies (DVA): The So-called Venous Angioma. Neurosurg. Rev., 9: 233-244, 1986.
5. GARNER, T. B.; CURLING, O. D.; KELLY, D. C.; LASTER, D. W. - The Natural History of Intracranial Venous Angiomas. J. Neurosurg., 75.- 715-722, 1991.
6. WILMS, G.; DEMARKEL, P.; MARCHAL, G.; BAERT, A. L.; PLETS, C. - Gadolinium - enhanced MR Imaging of Cerebral Venous Angiomas with Emphasis on Their Drainage. J. Comput. Assist. Tomogr., 25.- 199-206, 1991.
7. VALAVANIS, A.; WALLAUER, J.; YARSAGIL, M. G. - The Radiological Diagnosis of Cerebral Venous Angioma: Cerebral Angiography and Computed Tomography. Neuroradiol., 24: 193-199, 1983.
8. MACHADO, A. - Neuroanatomia Funcional, São Paulo, Livraria Atheneu Editora, 1983, 145-150; 172-178.
9. NOVAK, M. A. - Hearing Loss in Neurotologic Diagnosis. In: JACKLER R.K., BRACKMANN, D. E. - Neurotology, St. Louis, Mosby - Year Book Inc., 1994, 131-144.
10. KVETON, J. F. - Symptons of Vestibular Disease. In: JACKLER R.K., BRACKMANN, D. E. - Neurotology, St. Louis, Mosby - Year Book Inc., 1994, 145-151.
11. KILENY, P. R.; YOUNG, K. E.; NIPARKO, J. K. - Acoustic and Electrical Assessment of the Auditory Pathway. In: JACKLER R.K., BRACKMANN D.E. - Neurotology, St. Louis, Mosby - Year Book Inc., 1994, 261-281.
12. REZENDE, V. A.; ALMEIDA, E. R.; BUTUGAN, O.; SILVEIRA, J. A. M.; REZENDE, M. A. - Audiometria de Tronco Cerebral (BERA) e Eletrococleografia (ECoG) em uma Criança Operada de Ependimoma Intracraniano. Rev. Bras. Otorrinolaringol., 61(2):146-151, 1995.
13. MINITI, A.; BENTO, R. F.; BUTUGAN, O. Otorrinolaringologia Clínica e Cirúrgica, São Paulo, Livraria Atheneu Editora, 1993, 85-102.
14. SELLTERS, W. A.; BRACKMANN, D. E. - Brainstem Eletric Response Audiometry in Acoustic Tumor Detection. In: HOUSE W., LUETJE C., eds. - Acoustic Tumors, vol. I: Diagnosis, Baltimore, University Park Press, 1979, 225235.
15. MOLLER, A. R.; JANETTA, P. J. - Neural Generators of the Auditory Brainstem Response. In: JACOBSON J.T., eds. - The Auditory Brainstem Response, Boston, College-Hill Press, 1985, 13-31.
* Pós-Graduando da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.
** Médica Residente da Divisão de Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital (das Clinicas da FM da USP.
*** Professor-Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da USP.
**** Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia (Faculdade de Medicina da USP.
O trabalho foi realizado na Divisão de Clínica de Otorrinolaringologia do Hospital das clínicas e LIM-32 cta Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Trabalho apresentado na XII Reunião da Sociedade Brasileira de Citologia, Rio de janeiro /RJ, em novembro de 1997. Endereço para correspondência: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 6°- andar - 04531-012 São Paulo /SP - Telefone e fax: (011) 280-0299. Artigo recebido em 13 de fevereiro de 1998. Artigo aceito em 8 de maio de 1998.