Ano: 2004 Vol. 70 Ed. 1 - Janeiro - Fevereiro - (20º)
Seção: Relato de Caso
Páginas: 124 a 128
Grave complicação do tratamento de epistaxe: relato de caso
Severe complication in the treatment of epistaxis: a case report
Autor(es):
Carlos Z. Arbulú 1,
Robinson K. Tsuji 1,
Marcus M. Lessa 2,
Richard L. Voegels 3,
Ossamu Butugan 4
Palavras-chave: epistaxe, tratamento, embolização, complicações
Keywords: epistaxis, treatment, embolization, complications
Resumo:
Epistaxe é uma afecção muito comum, sendo geralmente autolimitada ou tratada com medidas mais conservadoras como compressão local, compressas frias, controle da pressão arterial, cauterização sob anestesia local (química ou termo-elétrica) ou tamponamento nasal anterior. Contudo, podem se apresentar como quadros graves e de difícil tratamento, sendo necessárias medidas mais agressivas como tamponamento nasal antero-posterior, ligadura arterial cirúrgica ou embolização. Apresentamos o caso de um paciente de 49 anos de idade que cursou com epistaxe de difícil controle e evoluiu com uma grave complicação relacionada ao tratamento realizado em outro serviço.
Abstract:
Epistaxis is a very usual disorder, it is usually self-restricted or controlled with conservative measures as local compression, cold gauze, arterial pressure control, cauterization under local anesthesia (chemical or thermoelectric) or anterior nasal packing. However, it could be presented as severe cases, and more aggressive measures could be necessary, like posterior nasal packing, arterial ligation or embolization. We present one case of a forty-nine-year-old patient with epistaxis who developed a severe treatment complication from another department.
INTRODUÇÃO
Epistaxe é um sangramento com origem na mucosa das fossas nasais e representa uma alteração da hemostasia normal do nariz. Essa hemostasia pode estar comprometida por alterações da integridade vascular, anormalidades na mucosa nasal ou por desordem dos fatores de coagulação. É uma afecção muito comum na prática médica, sendo que aproximadamente 60% da população já teve ou terá pelo menos um episódio de epistaxe na vida1,2. É geralmente autolimitada, contudo em cerca de 6% dos casos necessita de alguma intervenção médica3. A hemorragia nasal, se recorrente, pode acarretar em conseqüências mórbidas ou até mesmo fatais como: aspiração, hipotensão, anemia, hipóxia e infarto agudo do miocárdio.
O local mais comum de sangramento encontra-se na região nasal anterior, correspondendo a 80% dos casos4. O sangramento anterior também é o de mais fácil controle e geralmente pode ser resolvido com medidas mais conservadoras, como cauterização química ou elétrica do septo nasal, ou até tamponamento anterior. Os sangramentos posteriores, apesar de menos freqüentes, são mais difíceis de serem tratados e normalmente necessitam de medidas mais invasivas, como tamponamento anteroposterior ou ligaduras arteriais5.
A embolização arterial, como tratamento de epistaxe, foi descrita pela primeira vez por Sokoloff et al.6 em 1974 e tem sido cada vez mais utilizada como tratamento complementar ou alternativo em epistaxes posteriores. Na literatura encontramos índices de sucesso que variam de 79% a 100%7-13, porém este procedimento não é totalmente seguro e algumas complicações graves têm sido descritas.
Os autores relatam um caso de grave complicação decorrente do tratamento de epistaxe por embolização arterial associada à ligadura da artéria esfenopalatina e tamponamento nasal antero-posterior.
APRESENTAÇÃO DE CASO CLÍNICO
AJFT, 49 anos, sexo masculino, apresentou o primeiro episódio de epistaxe à esquerda em janeiro de 2000 quando foi tratado com ligadura da artéria etmoidal anterior esquerda em outro serviço. Nesta mesma época foi diagnosticada uma hipertensão arterial sistêmica que foi tratada com uso de atenolol 25mg por dia. O paciente evoluiu assintomático até 17 de julho de 2001, quando apresentou novo episódio de epistaxe em fossa nasal esquerda, tendo sido realizada ligadura da artéria esfenopalatina ipsilateral no dia seguinte. Após um dia do procedimento, o paciente apresentou novo episódio de epistaxe, sendo realizado então arteriografia e embolização. A arteriografia mostrava uma área suspeita de sangramento em um dos ramos da maxilar interna à esquerda. Foi então realizado embolização das artérias maxilar interna e facial à esquerda com o uso de microesferas. No dia seguinte houve novo episódio de sangramento e o paciente foi novamente levado à arteriografia, repetindo-se a embolização das artérias facial e maxilar interna a esquerda (Figuras 1, 2 e 3), sendo também embolizadas as artérias facial e maxilar interna contralaterais (Figuras 4 e 5) com o uso de Gelfoam®. Nesta ocasião foi passado também um tampão antero-posterior que foi deixado por três dias. No dia 23 de julho, depois da retirada do tampão, notou-se surgimento de lesão necrótica em asa de nariz à esquerda que evoluiu para necrose da pele em região nasolabial. Em 31 de julho foi encaminhado ao nosso serviço por apresentar novos episódios de sangramento autolimitados à esquerda e extensão das áreas de necrose. Em relação aos antecedentes pessoais, ele é tabagista de 30 cigarros por dia e etilista social, sem outras doenças. No momento da admissão em nossa enfermaria o paciente apresentava-se sem sangramento ativo e queixava-se de intensa dor facial em região maxilar à esquerda. Ao exame físico de entrada, o paciente apresentava-se em bom estado geral, eupneico, afebril, normotenso e com palidez cutânea e de mucosa. Apresentava lesão necrótica em asa do nariz à esquerda com extensão para pele de região nasolabial adjacente, com fistulização para o sulco gengivo-labial e com crostas nas bordas da lesão. Na oroscopia notavam-se úlceras em palato e fístula oronasal em região de palato duro (Figura 6). Os exames laboratoriais mostraram hemoglobina de 10mg/dl, hematócrito de 31% e ausência de coagulopatias. Foi realizada tomografia computadorizada que mostrou lesão de partes moles em região de vestíbulo nasal esquerdo (Figura 7), sem outras alterações. Foi tratado com cuidados locais com lavagem nasal (soro fisiológico), uso tópico de violeta de genciana e sintomáticos, evoluindo sem recorrência da epistaxe. Recebeu alta hospitalar no décimo dia de internação sem progressão da necrose tecidual e já com formação de tecido de granulação nas bordas da lesão.
Figura 1. Arteriografia mostrando artéria carótida externa esquerda pré-embolização.
Figura 2. Embolização seletiva da artéria maxilar esquerda.
Figura 3. Atéria carótida externa esquerda após embolização das artérias maxilar e facial.
Figura 4. Arteriografia mostrando artéria carótida externa direita pré-embolização.
Figura 5. Carótida externa direita após embolização da maxilar e facial.
Figura 6. Lesão necrótica na pele do vestíbulo nasal esquerdo e região nasolabial adjacente, com fistulização para sulco gingivo-labial. Note fístula oronasal em região de palato duro (seta).
Figura 7. Tomografia Computadorizada de Seios paranasais, corte axial mostrando perda de continuidade da pele que corresponde a úlcera da região nasolabial.
DISCUSSÃO
O tratamento da epistaxe geralmente obedece a uma escala de condutas que é seguida pelos otorrinolaringologistas. Devem-se tentar inicialmente medidas mais conservadoras como compressão local, controle da pressão arterial sistêmica, sedação, compressas frias, cauterização química ou termo-elétrica, tamponamento nasal anterior ou até antero-posterior. Para as epistaxes refratárias são utilizadas medidas mais invasivas como ligaduras arteriais cirúrgicas das artérias esfenopalatina, maxilar interna, etmoidais ou embolização da artéria maxilar interna e/ou facial. A modalidade de tratamento vai depender do tipo e grau de sangramento (anterior, posterior, septal, etc.), assim como das condições clínicas de cada doente. Em nosso serviço optamos pela ligadura cirúrgica da artéria esfenopalatina ipsilateral a epistaxe refratária, sem a necessidade de qualquer tipo de tamponamento nasal no pós-operatório imediato. Reservamos a ligadura da artéria etmoidal anterior apenas nos casos de insucesso do procedimento anterior, fato muito pouco freqüente em nossa experiência.
A embolização arterial quando bem indicada têm um grande índice de sucesso. As vantagens dessa terapêutica são: localização da região de sangramento, diagnóstico de doenças associadas como tumores e lesões vasculares, não necessitando de anestesia geral. Alguns autores sugerem que o alto custo do procedimento poderia ser compensado pela diminuição no tempo de internação. Como desvantagens podemos citar a necessidade de equipamento sofisticado e de equipe especializada. As limitações deste método são para sangramentos provenientes das artérias etmoidais e pacientes com doença aterosclerótica em artéria carótida9,12,13.
As complicações da embolização arterial são classificadas em maiores ou menores, ocorrendo em 17% a 25% dos casos9,12. As complicações menores são dor ou parestesia facial, cefaléia e edema facial, que geralmente se resolvem na primeira semana. A dor facial que também foi referida em nosso caso pode ser devido à necrose do tecido ou lesão isquêmica do nervo trigêmeo. Como complicações maiores temos o acidente vascular cerebral, amaurose, paralisia facial, perfuração septal, necrose de pele e úlcera palatina, apresentando incidência menor que 2%.
Em nosso estudo o paciente apresentou uma lesão extensa de asa nasal com fistulização para sulco gengivo-labial e fístula oronasal em palato duro. Tseng et al.12 e Elden et al.9 publicaram as maiores casuísticas de complicações decorrentes da embolização arterial. Segundo estes autores, a incidência de lesões cutâneas foi menor que 1%, sendo que em nenhum caso houve lesão cutânea mucosa extensa semelhante àquela apresentada neste relato.
A irrigação arterial da face é realizada por ramos das artérias maxilar e facial. A artéria facial emite ramos para a gengiva (artéria alveolar superior), para a pele da região nasolabial (artéria labial superior). A artéria maxilar emite ramos para o palato (artéria palatina maior) e para o septo e mucosa das fossas nasais (artéria esfenopalatina). O vestíbulo é irrigado pela artéria do subsepto que é ramo da artéria labial superior e também ramos da maxilar interna. Em geral as complicações relatadas na literatura são devido à hiperembolização, uso de partículas muito pequenas ou partículas de maior permanências como o Gelfoam®9. No nosso relato o paciente foi submetido a embolização bilateral das artérias maxilares internas e faciais, sendo que o lado esquerdo foi embolizado duas vezes com Inalom® e Gelfoam®. A epistaxe foi controlada, mas houve isquemia importante das regiões vascularizadas por estas artérias levando às lesões descritas. Além disso, o paciente recebeu tamponamento antero-posterior que provavelmente também contribuiu com a isquemia. Outro fator importante é o fato de o paciente ser tabagista e hipertenso, o que pode contribuir para o desenvolvimento de lesões isquêmicas por alterações arteroscleróticas.
Fazendo uma comparação entre a ligadura arterial cirúrgica e a embolização arterial, podemos observar que ambas as técnicas apresentam índices de sucesso semelhantes. A embolização tem a vantagem de poder ser realizado sob anestesia local, porém as complicações maiores são mais graves11. Em nosso serviço, apesar de contarmos com uma equipe de radiologia intervencionista altamente especializada e competente, reservamos a embolização quando a ligadura arterial não for satisfatória para as epistaxes graves e refratárias.
COMENTÁRIOS FINAIS
A abordagem da epistaxe deve ser sempre criteriosa, levando em consideração o tipo e a gravidade do sangramento e as condições clínicas de cada doente. O tratamento deve ser o mais conservador possível seguindo a uma escala de procedimentos, a fim de que sejam evitadas complicações graves.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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1 Médicos Residentes da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
2 Médico Pós-Graduando da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
3 Professor Doutor da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
4 Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Endereço para Correspondência: Carlos Zevallos Arbulú - Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 6ºandar sala 6021 São Paulo SP 05403-000. Tel: (0xx11) 3069-6288 - Fax: (0xx11) 270-0299 - E-mail: carzevarb@hotmail.com
Trabalho apresentado no 2º Congresso de Otorrinolaringologia da Universidade de São Paulo, realizado de 22 a 24 de Novembro de 2001, em São Paulo-SP.
Artigo recebido em 03 de março de 2003. Artigo aceito em 03 de abril de 2003.