Ano: 1991 Vol. 57 Ed. 4 - Outubro - Dezembro - (8º)
Seção: Relato de Casos
Páginas: 224 a 230
Rinoliquorréia: Origem múltipla?
Cerebrospinal fluid rhinorrhea: Multiple origin?
Autor(es):
Décio R Campana*
Clarissa D. Castagno**
Elza M. Lemos**
Fátima R A Abreu***
Maria Cristina R.M. Pássaro**
Marcelo de F. Alves**
Fernando Bihari****
Palavras-chave: rinorréia cerebro-espinhal, fistula
Keywords: cerebro spinhal rhinorrhea, fistula
Resumo:
É apresentado um caso de rinoliquorréia, que surgiu 12 anos após traumatismo craniana. Tendo o paciente apresentado nos últimos anos, duas meningites.
A perda líquida nasal, cessou apenas após a correção cirúrgica de três lesões encontradas: a nível das células da mastóide, a nível da lâmina crivosa do etimóide e por correção de meningoencefalocele frontal.
Trata-se de um caso peculiar, para o qual não encontramos semelhante na literatura consultada.
Abstract:
We present one case of cerebrospinal fluid rhinorrhea, that starts twcive years ago after cranial trauma. The patient developed in the last years, two meningitis.
The rhinorrhea stopped after surgical correction of three lesions encountered in the: mastoid cells, frontal meningoencephalocele correction and cribriform lamina of the ethmoid.
This case is peculiar, because we not found anything in the consulted literature.
INTRODUÇÃO
O Sistema Nervoso Central (S.N.C.) é envolto por 3 membranas conjuntivas, as meninges: dura-máter, aracnóide e pia-máter.
A primeira é espessa, fibrosa, também chamada de paquimeninge. A aracnóide e a pia-mátcr são denominadas de leptomeninges por serem constituídas de tecido conjuntivo mais frouxo e delicado.
A aracnóide é ligada à dura-máter separada da pia-máter pelo espaço sub-aracnoídeo onde existem numerosas trabéculas que unem as duas meninges.
O espaço sub-aracnóideo é ocupado pelo líquido cérebro-espinhal ou liquor. Fluido aquoso e incolor, comparado à água de rocha
O liquor e as meninges são estruturas protetoras do S.N.C. Funcionando o líquido como um verdadeiro amortecedor, defendendo mecanicamente o S.N.C. dos traumas externos.
A dura-máter (juntamente com a aracnóide) adere firmemente aos ossos da base do crânio (1,2).
Isso explica porque pequenas fraturas da base do crânio são freqüentemente acompanhadas de liquorréia. Qualquer afastamento ósseo ou esquírula óssea é capaz de esgraçar ou romper a paquimeninge e a aracnóide, abrindo o espaço sub-aracnóideo para o exterior (3,4).
Surge assim o vazamento de líquido cefalorraquiano pelo nariz ou ouvido, como conseqüência do ferimento aberto através do seio frontal, lâmina crivosa, células etmoidais, sela túrcica ou sistema pneumático do osso temporal.
Com a saída de líquido, pode entrar ar para os espaços liquóricos surgindo o pneumoencéfalo.
Da mesma maneira permite entrada de germes de cavidades contaminadas levando a meningites bacterianas de repetição.
A perda de liquor através do ouvido externo, depende do rompimento das meningites que atinge o sistema pneumático do osso temporal.
Nesse caso para haver escoamento pelo meato acústico externo, ainda temos que ter uma ou as duas condições: fratura do teto ósseo do conduto e rotura da membrana timpânica. É a otoliquorréia.
No caso de não termos nenhuma dessas condições, vai ocorrer uma rinoliquorréia (dita paradoxal) já que o líquido cefaloraquiano vai atingir a rinofaringe através da tuba auditiva (5). Temos então um vazamento posterior, que se exterioriza anteriormente, quando o doente abaixa a cabeça.
A rinoliquorréia é geralmente unilateral, queixando-se o paciente, que de maneira contínua ou intermitente tem gotejamento nasal de líquido límpido, aquoso, ao abaixar a cabeça, tossir, espirar, defecar, enfim qualquer esforço físico que leve a um aumento da pressão liquórica.
As rinoliquorréias podem ser classificadas, segundo Ommaya (5) em:
a) Rinoliquorréia Traumática
a1) Traumáticas acidentais - Traumatismos crânio-encefálicos, nem sempre de grande porte. Às vezes pequenos traumas cranianos podem levar a esse corrimento.
A rinorraquia pode ser precoce, seguindo-se imediatamente ou horas após o acidente.
Tardias que podem ocorrer até anos após o acidente. Até 22 anos, como refere Toennis e Frowein citados por Dietz (3). Segundo Speltzler (6) o intervalo entre o trauma e o diagnóstico ocorreu entre 3 dias a 24 anos, tendo como média 18 meses.
A incidência de liquorréia pós traumatismo crânio-ancefálico, gira em tomo de 2% (7).
a2) Traumáticas iatrogênicasApós neurocirurgia ou cirurgias O.R.L. da base do crânio.
As cirurgias de nossa especialidade que podem levar a esse desagradável incidente são:
- Cirurgias do seio frontal, etmoidal ou esfenoidal (inclusive as microcirurgias) e as transmaxilares.
- Cirurgias do septo nasal - Por fratura da lâmina perpendicular do etmóide, que pode irradiar-se à lâmina crivosa.
- Cirurgia dos tumores benignos e malignos naso-sinusais.
- Cirurgias otológicas e neuro-otológicas. Como nos grandes colesteatomas. Descompressão do saco endolinfático, cirurgias translabirínticas ou via fossa média para retirada de neurinomas do acústico.
b) Rinofiquorréia Espontânea (não traumática (5)).
Existe na literatura uma confusão em relação à classificação do corrimento nasal não traumático.
Autores(5) subdividem as espontâneas em primária espontânea ou idiopáticas, quando uma causa precipitante não é encontrada e de secundária espontânea, quando uma causa, em especial um tumor é encontrado.
Esse tumor além de cerebral, pode ser também da esfera O.R.L., como por exemplo uma mucocele ou um osteoma gigante fronto-etmoidal ou esfenoidal.
Por erosão da parede posterior do seio frontal ou do seio esfenoidal e da dura-aracnóide, levando a uma perda liquórica nasal.
As de origem não traumáticas são ainda classificadas em:
b1) Perda de líquor com pressão liquórica normal.
- Vazamento na região cribiforme da fossa anterior, pós atrofia dos filetes do nervo olfatório ou do bulbo olfatório (atrofia focal (5)).
- Meningoencefalocele basal - É mal formação congênita com incidência de aproximadamente 1 para 40.000 nascidos vivos (8).
Pode exteriorizar-se na fossa nasal, simulando pólipo nasal. No espaço pré-nasal ou dentro do seio frontal (oculta), como ocorreu no presente caso.
- Fístula na região da sela túrcica (síndrome da sela vazia).
- Tumores otorrinolaringológicos.
b2) Vazamento com aumento de pressão liquórica. Tumores da fossa craniana anterior como os meningeomas, os tumores de hipófise, tumores cerebelares etc.
Provocam hipertensão liquórica e erosão das meninges.
CASO CLINICO
53 a, feminino, parda.
História de que após meningite, há 4 meses, teve diminuição da audição e aparecimento de zumbido no ouvido direito.
Espirros freqüentes e prurido nasal. Perda de líquido incolor, gotejante pela fossa nasal direita em caráter intermitente, há cerca de 2 anos.
A. P. - Há 14 anos (1975) queda de escada, batendo forte com a cabeça na região occiptal. Sem perda de consciência ou qualquer outro sinal ou sintoma concomitante.
Apresentou 2 quadros meningíticos após o início da rinorraquia direita (2 anos). Sendo o primeiro, em março de 1987 e o segundo em fevereiro de 1989 (quando piorou a audição e surgiu o zumbido no ouvido direito).
As duas meningites foram precedidas de otalgia direita intensa e hipoacusia desse ouvido.
Os quadros neurológicos, foram acompanhados de febre alta hemiparesia e a última vez, teve crise convulsiva.
Exame O.R.L.:
Cavidade bucal - n.d.n.
Orofaringe - n.d.n.
Nariz - mucosa pálida, pouco edematosa, ligeiramente mamelonada. Sem corrimento aquoso no momento do exame.
FIGURA 1
Ouvidos - O.E. - n.d.n.
O.D. - Tímpano íntegro, despolido, com nível líquido. À manobra de Valsalva, trompa aberta.
Rinofibroscopia: Cavidades nasais apresentavam apenas mucosa pálida.
Nasofaringe: "Ausência de tumoração no cavum. Estudo comparativo de ambos os óstios tubários, mostrou vazamento de fluido claro, em pequeno volume pela tuba direita"
Foram solicitados audiometria e impedanciometria (Fig. 1)
Tomografia Computadorizada (CT) dos ossos temporais (Fig.2) que mostrou: "Caixa, antro e células da mastóide direita preenchidos por material com densidade líquida. Muro da lojeta e esporões íntegros. Ausência de traço de fratura reconhecível".
Diante do quadro clínico e dos resultados dos exames, ficamos com hipótese diagnóstica de fístula liquórica de aparecimento tardio atingindo a fenda do ouvido médio direito (caixa, antro ou células da mastóide) por trauma craniano pregresso (14 anos).
Indicamos cirurgia exploradora do ouvido médio para bloqueio da fístula.
Em 8/89 foi submetida a exploração cirúrgica tímpano-mastóidea.
- Abertura da caixa timpânica - líquido incolor aquoso, preenchendo totalmente a mesma.
- Acesso retro-auricular - mastóide pneumática. Células preenchidas de liquor. Abertura de antro. Nítida perda de líquido cérebro-espinhal através da célula próxima ao ângulo sino-dural.
Às manobras executadas pelo anestesista, de hiperpressão pulmonar, mostraram aumento de fluxo.
FIGURA 2
- Bloqueio da cavidade posterior com fáscia temporal, pó de osso e gordura abdominal.
- Sutura posterior em dois planos. Curativo compressivo, mantido 5 dias.
No pós-operatório além de medicamentos clássicos, a paciente foi mantida no leito de posição semi-sentada. O repouso absoluto no leito não foi seguido pela doente que levantou foi ao banheiro, tomou banho, etc.
Saiu do hospital após 21 dias e retornou dias após com queixa de novo gotejamento nasal.
Nesse ponto nos questionamos: Será que o bloqueio não foi suficiente? Será que o pós-operatório atribulado fez voltar a liquorréia?
Nesse momento, a otoscopia direita era praticamente normal, com triângulo luminoso esboçado, sem nível líquido.
Nasofibroscopia de cavum: sem vazamento.
Sugerida então uma segunda cirurgia exploradora que foi executada em 1/90.
- Paracentese timpânica - ausência de líquido.
- Revisão do sistema pneumático mastóideo, onde também não havia perda fluida.
- Resolvemos como medida de segurança retirar o bloqueio anterior para excluirmos a possibilidade de perda de liquor por trás do mesmo. O que não ocorria.
- Novo bloqueio com tecido conjuntivo, pó de osso e fáscia temporal. Sendo que essa fáscia foi também colocada em "dedo de luva", bloqueando o ádito na passagem antro-caixa (a parte côncava da fáscia voltada para o antro), isolando totalmente o antro da caixa timpânica.
Achamos que com isso o problema estaria solucionado. Para nossa surpresa, no pós-operatório, agora bem conduzido, surgiu novamente perda líquida pela narina direita.
FIGURA 3
Solicitamos então o concurso da Clínica Neurocirúrgica. A mesma solicitou CT de crânio, seios da face e ossos temporais, que mostrou:
1- Bloqueio da cavidade mastóidea direita eficiente, já havia ar dentro da caixa timpânica. (Fig. 3)
2- Erosão da parede posterior do seio frontal direito, colocando em comunicação o conteúdo craniano com a cavidade frontal, a qual mostrava-se preenchida com tecido da mesma densidade do encéfalo (Fig.4).
FIGURA 4
Submetida em 4/90 a crâniotomia frontal:
- Incisão trans-coronal.
- Crâniotomia tipo John-Jane, respeitando-se o teto das órbitas bilateralmente.
- Ligadura do seio sagital em sua posição mais antero-inferior.
- Abertura da dura-máter à direita. Afastado lobo frontal pelo polo anterior direito.
- Visualização de formação meningo-encefálica que estendia-se para o seio frontal direito através de orifício circular na tábua posterior do seio frontal direito.
- Dissecção e ligadura da meningoencefalocele.
- Fechamento do orifício ósseo frontal com músculo, suturado com prolene 4-0 e cola Super-Bonder.
- Revisão da fossa craniana anterior e visualização de lacerações durais, junto à lâmina cribiforme do etmóide direito. Refeitas também com o mesmo processo usado no item anterior.
- Sutura dos planos meníngeos e cutâneos.
- Curativo simples.
Pós operatório normal, permanecendo a paciente 2 dias na U.T.I. Prescrição e cuidados semelhantes aos pós-operatórios anteriores. Acrescentando-se apenas a utilização de cateter peri-dural lombar (que foi colocado na véspera da cirurgia e retirado no 7°- dia do pós-operatório).
Alta hospitalar sem rinorraquia. Permanece assintomática há 1 ano.
DISCUSSÃO
O caso ora apresentado tem características "sui generis" e que merecem ser discutidas:
1- A rinoliquorréia surgiu cerca de 12 anos após a injúria craniana, fato que não é raro, como já vimos anteriormente.
2- A presença do quadro clínico de duas meningites está de acordo com o esperado em ferimento aberto do S.N.C.
Levando a risco de meningite fatal, sendo que o uso de antibiótico profilático durante toda a vida, insatisfatório (9).
Dietz(3), coloca em seu trabalho que o número de infecções meníngeas em liquorréias ocorrem entre 2 e 24 repetidas segundo diferentes autoras.
3- A evidência da rinorraquia paradoxal (otoliquorréia) foi clínica e cirúrgica e o bloqueio foi feito 2 vezes, sendo continente desde a primeira cirurgia.
FIGURA 5 - CT pós-operatório - corte axial - seios frontais livres
4- A persistência da rinorraquia pós bloqueios da cavidade antro-mastóidea, levou-nos a pedir a colaboração da Clínica Neurocirúrgica.
5- Foi o CT de crânio que chamou a atenção para existência de unia meningoencefalocele "oculta", dentro do seio frontal direito. Que foi corrigida cirurgicamente por eraniotomia frontal.
6- No mesmo ato neurocirúrgico, foi evidenciada também laceração de dura-máter junto à lâmina crivosa do osso etmoidal direito. Que foi bloqueado.
FIGURA 6 - CT pós-operatório - corte coronal - bloqueio da zona crivosa direita.
CONCLUSÃO
A rinoliquorréia é ocorrência que pode ter origem em traumatismo craniano ou ser de causa não traumática.
Todos esses casos devem ser exaustivamente investigados com objetivo de encontrar-se uma etiologia e o local do vazamento. Não podendo excluir-se a possibilidade de perda de líquido cérebro-espinhal por mais de um local de origem.
Como no caso apresentado, a perda líquida cessou só após a correção dos 3 defeitos descritos, permanece para nós a interrogação inicial:
"Rinoliquorréia: Origem múltipla?"
BIBLIOGRAFIA
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Spetzler, RF.; Wilson, C.B.: Managoment of recurrant C.S.F. rhinorhea of the middle and posterior fossa. J. Neurosurg. 49:393-397, 1978.
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* Chefe da Clínica O.R.L. do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo.
** Residentes de Clínica O.R.L. do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo.
*** Ex-Residente da Clínica O.R.L. do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo.
**** Assistente da Clínica de Neurocirurgia do Hospital do Servidor Público de São Paulo.
Trabalho realizado na Clínica de O.R.L. do Hospital do Servidor Municipal de São Paulo.
Rua Castro Alves nº 60- 6º andar -Clínica O.R.L. - São Paulo - Capital - CEP 01532
Trabalho apresentado no XXX Congresso Brasileiro de O.R.L. e XXIII Congresso Brasileiro de Endoscopia Peroral. Outubro 1990 - Rio de Janeiro.