Versão Inglês

Ano:  1991  Vol. 57   Ed. 4  - Outubro - Dezembro - ()

Seção: Relato de Casos

Páginas: 203 a 209

 

Displasia fibrosa do osso temporal. Apresentação de um caso

Fibrous dysplasia of temporal bone. A case report

Autor(es): Lídio Granato*
Mauro Veras**
Ivo Bussoloti Falho***

Palavras-chave: osso temporal, displasia fibrosa óssea

Keywords: temporal bone, fibrous dysplasia of bone

Resumo:
Os autores relatam um caso de displasia fibrosa monostótica do osso temporal complicada por otite média crônica colesteatomatosa fistulizada na região retroauricular e em outro ponto póstero - inferior do pescoço. O paciente foi submetido a sete intervenções cirúrgicas num período de nove anos sendo que na última houve ressecção extensa do osso afetado com apoio da equipe neucirúrgica. A displasia fibrosa do osso temporal apesar de histologicamente benigna pode ser maligna no que se refere a sua localização anatômica e evolução clínica. Os autores ressaltam a importância do segmento pós-operatório destes pacientes por um longo tempo.

Abstract:
The patient is a 25 year old male, with large monostotic fibrous dysplasia of the left temporal bone, complieated by left ear cholesteatoma with fistulas on the mastoid and neck regions. After undergoing six surgerics in nine years, neurosurgery with extensive ressection of the temporal bone was performed. Although the pacient's follow up showed no relapses for two years, the suthors, suggest a close, extended observation period for fibrous dysplasia cases.

INTRODUÇÃO

Displasia fibrosa é um distúrbio relativamente comum do tecido ósseo, caracterizado por lesão expansiva benigna de etiologia ainda não conhecida. A proporção e a distribuição dos componentes normais do osso estão alteradas, via de regra existindo grande quantidade de tecido fibroso para umas poucas trabéculas ósseas malformadas. (1)

A ossatura crânio-facial é freqüentemente acometida e nessa situção, o osso temporal é pouco afetado, tornando-se de especial interesse para o otologista, dada a sua raridade.

A displasia fibrosa foi descrita pela primeira vez por Lichtenstein em 1938 e depois este mesmo autor e Jaffe em 1942, consideraram como uma afecção distinta de outras lesões fibro-ósseas, segundo Pecaro (2). Schlumberger classificou as lesões fibra-ósseas (3). Posteriormente o termo "lesão fibra-óssea benigna" foi usado para descrever a displasia fibrosa, assim como outras entidades patológicas. Há ainda controvérsias quanto a termologia e classificações.

A categorização da lesão fibro-óssea é dependente de elementos da história do paciente, do achado clínico, análise radiográfica, achados cirúrgicos e determinação histopatológica. O diagnóstico é baseado em todos estes elementos e não em dois ou três apenas.

A displasia fibrosa manifestase segundo três padrões distintos:

- Tipo I- monostótica: limitada a um único osso.

- Tipo II - poliostótica: mais de um osso é envolvido.

- Tipo III - disseminada, com manifestações extra-esqueléticas também conhecida como Síndrome de McCune-Albright.

A forma monostótica é a mais comum e usualmente compromete costelas, fêmur, tíbia e ossos da face, especialmente mandíbula e maxila.

A displasia fibrosa poliostótica tem predilação pelos ossos dos membros inferiores. No crânio são afetados principalmente o osso frontal e asas maior e menor do esfenóide, cujos respectivos seios não raramente estão obliterados.

Na Síndrome de McCune-Albright a distribuição das lesões ósseas é semelhante à do padrão poliostótico, porém geralmente unilateral. Estas lesões estão associadas a áreas de hiperpgmentação da pele e distúrbios endócrinos, como o hipertireoidismo. É encontrado no sexo feminino e relacionado com puberdade precoce.

As formas monostóticas, poliostóticas sem distúrbio endócrino e as poliostóticas com envolvimento endócrino atingem os pacientes aproximadamente nas seguintes proporções: 70 %, 30% e 3% respectivamente (4).

A displasia fibrosa envolvendo o osso temporal é rara e a possibilidade de acompanhamento deste paciente por um período longo nos estimulou esta apresentação.

APRESENTAÇÃO DO CASO

Em junho de 1982, E.F.B., sexo masculino, branco, então com 25 anos de idade, compareceu em consulta referindo otorréia intermitente à esquerda, iniciada quinze anos antes e relacionada com trauma na região temporal.

Acompanhava o quadro diminuição progressiva da acuidade auditiva e elevação endurecida, de crescimento lento, atrás da mesma orelha.

Nos dois anos que precederam à consulta apresentou três episódios diagnosticados como mastoidite aguda, que foram drenados.

Posteriormente, com suspeita de otite média crônica colesteatomatosa, iniciou-se mastoidectomia, que foi interrompida devido a intenso sangramento ósseo durante o broqueamento (sic).



FIGURA 1 - Abaulamento de região retroauricular esquerda com fístula cervical eliminando material purulento.



Ao procurar nosso ambulatório, referia ainda aparecimento de ferida no pescoço abaixo do pavilhão esquerdo, com saída de secreção purulenta, já com duração de um mês.

No exame físico, a inspeção constatava tumoração retroauricular esquerda de consistência dura, rebatendo o pavilhão para a frente, além da presença de orifício externo de fístula drenando secreção punilenta, localizado em região cervical posterior (Fig. 1).

A otoscopia esquerda mostrava estreitamento do conduto auditivo externo às custas de um desabamento da parede postero-superior, com grande quantidade de secreção purulenta. O exame com diapasão sugeria perda auditiva condutiva à esquerda. A audiometria revelou deficiência auditiva mista no ouvido esquerdo, com GAP em torno de 50 dB, mais acentuada nas freqüências graves.



FIGURA 2 - Radiografia comparativa de osso temporal: grande densidade óssea no temporal esquerdo.



Após estudo radiológico, que evidencia grande da densidade do osso temporal esquerdo em suas porções petrosa e mastóidea, foi feita hipótese diagnóstica de displasia fibrosa monostótica do osso temporal, complicada por OMC colesteatomatosa fístulizada (Fig. 2).



FIGURA 3 - Fístula ampla na região retroauricular esquerda. A cicatriz cervical é seqüela da antiga fístula.



O paciente foi submetido a mastoidectomia radical, onde se encontrou tecido ósseo esponjoso e sangrante, colesteatoma e orifício interno da fístula na ponta da mastóide. Foi feita pela ampla remoção do osso doente, com exposição do seio lateral e duramater.

O histopatológico confirmou tratar-se de displasia fibrosa.
Houve fechamento da fístula cervical, mas o paciente evoluiu com reestenose da plástica da cavidade radical e picos febris. Foi realizada revisão de mastoidectomia radical, com drenagem do abscesso extra-ducal. A cavidade mastóidea foi comunicada amplamente com o meio externo na região retroauricular (Fig. 3).

Apos seis anos assintomático, voltou a apresentar estenose da cavidade e quadro compatível com mastoidite crônica reagudizada com cefaléia persistente na região temporal esquerda (Fig. 4).

Craniotomia com extensa ressecção do osso temporal, seguida de enxerto com retalho de músculo foi realizada pela equipe de neurocirurgia (Fig. 5).

O paciente recebeu alta e vem evoluindo sem intercorrências.

COMENTÁRIOS

A displasia fibrosa é uma doença da população jovem, e costuma se manifestar na infância ou adolescência, período de intensa maturação do esqueleto ósseo. Raramente em décadas mais tardias (5).
Quanto ao sexo o predomínio varia segundo a estatística de cada autor. Jaffe descreveu que a freqüência é maior nas mulheres na proporção de 2:1 (1).



FIGURA 4 - Crescimento ósseo e manutenção de mastoidite crônica da esquerda.



A etiologia ainda permanece obscura porém alguns autores acreditam que o trauma possa ter alguma relação com o surgimento da displasia. (6)

O osso temporal é sede pouco comum da displasia fibrosa porém, quando envolvido, usualmente apresenta a forma monostótica da moléstia. O processo geralmente se inicia com o abulamento lentamente progressivo e indolor da mastóide ou porção escamosa do temporal, podendo resultar em evidente assimetria craniana.

Além deste aumento do tamanho do osso temporal, os sintomas mais freqüentemente encontrados são perda progressiva da audição e obliteração do conduto.

Uma deficiência auditiva condutiva causada por obstrução do canal auditivo ou destruição da cadeia ossicular, costuma predominar, embora encontrem-se casos mais avançados com perda neurosensorial em virtude do comprometimento labiríntico.

Sintomas vestibulares e zumbidos são raros. Na literatura alguns poucos casos em que o primeiro sintoma foi o zumbido, a doença afetou o ouvido médio (7).



FIGURA 5 - Ressecção subtotal do osso temporal esquerdo.



RESUMO DA EVOLUÇÃO

OTORRÉIA À E. APÓS TRAUMA
TUMORAÇÃO ENDURECIDA DE CRESCIMENTO LENTO E PROGRESSIVO NA REGIÃO RETROAURICULAR E.

1980 MASTODITE AGUDA - DRENADA

1881 2 EPISÓDIOS DE MASTODITE AGUDA - DRENADAS

02/82 MASTOIDECTOMIA INTERROMPIDA A INTENSO SANGRAMENTO ÓSSEO

03/82 FÍSTULA CERVICAL E. DRENADO SECREÇÃO PURULENTA

06/82 CONSULTA NA STª CASA
- DISPLASIA FIBROSA DO OSSO TEMPORAL
- COMPLICADA POR OMC COLESTEATOMATOSA FISTULIZADA

06/82 MASTOIDECTOMIA RADICAL - ACHADOS:
* OSSO ESPONJOSO E SANGRANTE
*COLESTEATOMA
* ORIFÍCIO INTERNO DA FÍSTULA NA PONTA DA MASTÔIDE
- REALIZADA GRANDE REMOÇÃO DO OSSO DOENTE, COM EXPOSIÇÃO DO SEIO LATERAL E DURAMATER
- HISTOPATOLÓGICO: DISPLASIA FIBROSA

07/82 REVISÃO DE MASTOIDECTOMIA RADICAL
* DRENAGEM DE ABSCESSO EXTRADURAL
* CAVIDADE MASTOÍDEA COMUNICADA AMPLAMENTE COM O MEIO EXTERNO

12/88 REESTENOSE DO CANAL E MASTOIDITE CRÔNICA

02/89 CRANIOTOMIA
* EXTENSA RESSECÇAO DO OSSO TEMPORAL
* ENXERTO COM MÚSCULO

02/89 ALTA HOSPITALAR

BOA EVOLUÇÃO ATÉ O MOMENTO


Às complicações secundárias incluem:

1. Colesteatorna secundário causado pelo sepultamento de tecido epitelial atrás de um bloqueio do conduto auditivo externo.

2. Erosão da cápsula ótica e canal de falópio, levando a labirintite e paralisia facial;

3. Exposição daduramaterdas fossas medial e posterior, e dos grandes vasos.

4. Neuropatia mono e policraniana.

5. Bloqueio da tuba auditiva.

A degeneração maligna em sarcoma é fato muito raro na displasia fibrosa, estimada em 0,5% e não encontrada no osso temporal (8).

O desenvolvimento de colesteatoma é a mais comum das complicações, manifestando-se com otorréia característica e podendo originar mastoidite aguda, o que foi observado em três ocasiões nesse caso.

O diagnóstico de displasia fibrosa monostótica sugerida pelo estudo radiológico varia desde uma lesão bem circunscrita com vários graus de calcificação até uma lesão difusa semelhante a vidro embaçado.

Os achados que se seguem auxiliam a investigação radiológica:

A) Aumento do tamanho e densidade do osso temporal, associado a áreas de esclerose e rádio-transparência;

B) Maior comprometimento das porções mastóides e petrosa do que da proporção escamosa;

C) Atilamento ou, mais freqüentemente, espessamento da córtex da mastóide e muitas vezes com obliteração total das células pneumatizadas;

D) Estreitamento do conduto auditivo externo.

A tomografia computadorizada atualmente é imprescindível para ajudar o diagnóstico e sobretudo mostrar a extensão da massa eventual comprometimento das estruturas vizinhas.

De uma maneira geral, a biópsia é dispensável quando se tem a hipótese diagnóstica de afecção benigna. Histologicamente a lesão é composta de tecido conjuntivo fibroso maduro que pode ser suficientemente celular para se assemelhar a um fibroma, e no qual se depositam delgadas trabéculas ósseas em arranjo desordenado (Fig. 6).

O diagnóstico diferencial da displasia fibrosa do osso temporal tem que ser feito com: osteoma, fibroma ossificante, doença de Paget, Osteopetrose (doença de Albers Schonberg ou doença marmórea do asso), osteomielite esclerosante crônica e osteossarcoma

Quanto ao tratamento, não existe nenhum conservador disponível para o controle da displasia fibrosa. Entretanto, o prognóstico costuma ser bom, havendo redução da atividade da doença após a puberdade.

A presença isolada de uma lesão não justifica a intervenção cirúrgica, mas esta se faz necessária quando surgem problemas cosméticos ou funcionais (9). A maioria dos pacientes acaba sendo submetida a vários procedimentos cirúrgicos sendo a reestenose do conduto auditivo externo observada com freqüência.

O nosso paciente apresentou fechamento completo da plástica ampla da cavidade radical realizada anteriormente, obrigando-nos a manter uma fístula ampla provisória na região retroauricular.

O paciente não mais retomou para o controle e voltou somente depois de seis anos com nova complicação. Na época referia cefaléia temporal e a fístula retroauricular havia se fechado. Foi então submetido a neurocirurgia para craniotomia com ressecção subtotal do osso temporal.



FIGURA 6 - (HE 240x) Tecido conjuntivo fibroso maduro onde se depositam delgadas trabéculas ósseas em arranjo desordenado.



Para a tentativa de preservação da luz do canal auditivo externo no caso de displasia, alguns autores tem sugerido a colocação de uma prótese tubular permanente de Silastic (10). Nós temos desconfiança que este método pode não funcionar e talvez fosse melhor, após mastoidectomia radical ampliada, removendo todos os vestígios de tecido epitelial da cavidade, desaparecer com o canal através de uma sutura nas margens do poros acústico externo. Este método tem os seus riscos mas previne o fechamento habitual do conduto auditivo externo com o conseqüente enclausuramento de pele no interior da cavidade e suas complicações.

A radioterapia deve ser evitada pelo perigo de malignização.

CONCLUSÃO

O otologista é poucas vezes confrontado com lesões fibro-ósseas benignas do osso temporal, o que dificulta o seu diagnóstico e tratamento.

O caso apresentado, de extensa displasia fibrosa monostótica do osso temporal mostra que, apesar de histologicamente benigna, esta pode ser considerada maligna no que se refere à sua localização anatômica e agressividade clínica.

Embora o potencial de crescimento do tumor tenda a se estabilizar com o tempo, a displasia fibrosa do osso temporal continua representando um desafio terapêutico e cirúrgico, sendo comum a observação de recorrências, o que toma imperativo o seguimento prolongado dos pacientes.

BIBLIOGRAFIA

1. JAFFE A. L - Fibrous dysplasia in tumors and tumorous conditions of the bone and joints. Philadelphia, Lea & Febiger, 1964, p. 117-42.
2. PECARO, B. C. - Fibro-osseos 1esions of the head and neck. Otolaryngol Clin North Am, 19:489-96, 1986.
3. SCHLUMBERGEER, H. C. - Fibrous dysplasia (ossifyng fibronma of the maxilla and mandible). Am J Orthod Oral Surg, 32:579-97, 1946.
4. VAN TILBURG, W. -Fibrous dysplasia. In: VINKEN, P.J.: BRUYN G. W. - Hand book of clinical neurology, Amsterdan, North Holland Publishing Co. Vol. XIV, p. 163212, 1972.
5. LINCHTENSTEIN, L; JAFFÉ, H.L. - Fibrous dysplasia of bone, Arch Pathol 33:777-816, 1942.
6. TOWSON, C. E. - Monostotic fibrous dysplasia of the mastoid and temporal bone. Arch Otolaringol, 52: 809-24, 1950.
7. BASEK, M. - Fibrous dysplasia of the midlle ear. Arch Otolaryngol, 85:4-7, 1966.
8. SCHWARTZ, D.T.; ALPERT M. - The malignant transformation of fibrous dysplasia. Am J Med Sci, 247:35-54, 1964.
9. BARRIONUEVO, C.E._; MARÇALLO, F.A.; COELHO A. al Arch Otorrinolaringol, 106:298-301, 1980.
10. NEGER, G.T.; KOPSTEINS, E. - Fibrous dysplasia: a reviex of the disease and its manifestations in the temporal bone. Ann Otol Rhinol Laryngol Sppl, 92:1-52,1982.

AGRADECIMENTOS

Agradecemos a Sra. Martha Gandara D'Amico e Sônia Regina F. Arevalo, bibliotecárias da Stª Casa de S. Paulo pela ajuda na elaboração das referencias bibliografias.

Trabalho realizado no Departamento de ORL da Santa Casa de São Paulo.

*Prof. Associado da Fac. de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

** Prof. Instrutor da Fac. de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

*** Prof. Assistente da Fac. de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo.

End. Autor: R Tabapuã, 649.67 - São Paulo - SP

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