Versão Inglês

Ano:  1990  Vol. 56   Ed. 1  - Janeiro - Março - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 14 a 18

 

Laboratórios de histopatologia do osso temporal passado, presente e futuro

Temporal bone histopathology labs: past, present and future

Autor(es): Dr. Sady Selaimen da Costa*
Dr. Michael M. Paparella**
Dr. Tae H. Yoon***
Patricia Schachern****
Sherry Lamey****
Noriko Morizono****

Palavras-chave: Ossos temporais, otopatologia

Keywords: Temporal bones, otopathology

Resumo:
Os autores apresentam uma breve revisão de aspectos históricos do desenvolvimento da otopatologia com especial atenção ao Laboratório de Otopatologia da Universidade de Minnesota, USA. A seguir a importância da otopatologia é ilustrada através de três casos clínicos especialmente selecionados. Finalmente são discutidas e as metas futuras projetadas.

Introdução

Muito do que sabemos hoje em relação às várias moléstias que acometem o ouvido provieram do estudo histopatológico de ossos temporais humanos e animais.

A otopatologia data de 1906 na Europa quando Paul Manasse iniciou a colecionar cortes seriados e processados de ossos temporais humanos (OTH) para fins de estudo. Nasceu então em Wurtzburg, Alemanha, o primeiro laboratório de otopatologia do mundo. Ali OTH coletados de 1906 a 1943, havendo, ainda hoje, 534 pares de OTH mantidos em bom estado e disponíveis para estudo. Lamentavelmente as informações clínicas pertinentes a estes indivíduos extraviaram-se durante bombardeios que atingiram Wurtzburg durante a segunda grande guerra(1).

Atraídos pelas potencialidades da otopatologia, outros centros científicos europeus deram seguimento aos esforços pioneiros de Manasse. Resultado disto foi o surgimento de grandes coleções como as de Leipzig, Tubingen, Copenhagen e Hamburgo. Não tardou para a idéia atravessar o Atlântico, pois mesmo antes da segunda grande guerra dois laboratórios já estavam montados e ativos na América: o da John Hopkins University sob a direção de Stacey Guild e da Chicago University capitaneado por John Lindsey. Atualmente na América, além destes dois laboratórios, três outros ultrapassam a marca dos mil ÓTH colecionados: Universidades de Minnesota, Iowa e Harvard.

O objetivo deste trabalho é relatar a experiência do autor nos laboratórios de otopatologia da Universidade de Minnesota, onde o mesmo realizou "Fellowship" durante o biênio 87-88.

A metodologia de obtenção e processamento dos OTH será breve mente revisada, assim como a importância desta ciência ilustrada através da análise de três casos espe- cialmente selecionados.

O laboratório de histopatologia da Universidade de Minnesota

O laboratório de histopatologia do, osso temporal foi fundado em 1965, mas foi em 1967 quando o Dr. Michael Paparella, então com 34 anos tornou-se Professor Titular do Departamento de Otorrinolaringologia e Diretor do laboratórios é que este foi realmente priorizado e definitivamente decolou.

A partir daquele momento, os esforços para obtenção dos OTH foram triplicados através da contratação de pessoal, conscientização da importância da otopatologia e campanhas de esclarecimento público com fins de aumentar o número de doações. Conseqüentemente a coleção cresceu em progressão geométrica alcançando hoje o status de uma das maiores coleções do mundo com 1523 ossos temporais procedentes de 776 indivíduos.

A maioria das molésticas otológicas primárias e secundárias estão ali representadas oferecendo aos médicos, cientistas e acadêmicos uma oportunidade única para o correto entendimento de uma miríade de alterações histopatológicas que podem ocorrer no ouvido médio e interno do ser humano.

Além de OTH, ouvidos de animais submetidos a estudos experimentais nos Laboratórios de Bioquímica, Eletro-Fisiologia e Trauma Acústico são ali processados e microscopicamente escrutinados para as alterações histológicas decorrentes destas experiências.

Estudos procedentes deste laboratório incluem as mais variadas patologias, tais quais doença de Meniére, infecções virais bacterianas e fúngicas, anomalias e síndromes, neoplasias primárias e metastáticas, surdez neuro-sensorial, labirintites, estudos da janela redonda, ototóxicos, trauma acústico, otosclerose e um monumental número de publicações de ponta sobre otite média nasceram de pesquisas do laboratório de otopatologia.

A Universidade de Minnesota tem dedicado particular atenção à otite média nos últimos 10 anos, sendo subsidiada para isto por um "grant" conseguido junto ao Instituto Nacional da Saúde dos EUA (NIH). É atualmente um dos líderes mundiais no que concerne aos avanços nos conhecimentos referentes à patologia e fisio-patogênia desta entidade. Mais de 170 trabalhos já foram publicados pelo corpo técnico-científico do laboratório, incluindo não só OTH mas também de animais. Atualmente o corpo técnico-científico do laboratório é comandado pelo seu Diretor Dr. Michael Paparella, um cientista médico (Dr. TÀE YOON), uma técnica de laboratório (Sra. Nori Morizono) e uma fotógrafa médica (Sra. Sherry Lamey). Além destes, o laboratório sempre tem sido um centro de aprendizado internacional. Através dos anos mais de 40 "Fellows" de todas as partes do mundo ali aprenderam os segredos da otopatologia e os propagaram através de apresentações, publicações e teses.

Obtenção e processamento de ossos temporais

A comparação e correlação de achados histopatológicos, em ossos temporais requer consistência e uniformidade na técnica de remoção, processamento, tratamento, corte e análise deste tecido. Na Universidade de Minnesota os mesmos técnicos vêm processando OTH há mais de vinte anos usando essencialmente a mesma metodologia a qual será resumidamente apresentada.

1. Os OTH são obtidos no momento da autópsia após o pré-consentimento do próprio indivíduo ou guardião legal. Os corpos são mantidos sob refrigeração o que retarda significativamente a autólise pós-morten , viabilizando assim a integridade histológica da peça até 24 horas após a morte.

2. O osso temporal é removido após craniotomia e retirado do encéfalo para que não haja nenhum sinal externo de desfiguramento do cadáver após a remoção. Rotineiramente uma serra oscilatória com extremidade cortante cilíndrica (Strikers) é posicionada sobre a eminência arqueada e acionada em direção ao assoalho da fossa média com movimentos alternados a fim de remover o OTH em bloco único, com uma forma cilíndrica (rolha de osso temporal), Após a carótida interna é identificada e ligada (Figura 1).



Figura 1 - Posição na base do crânio onde é feita a remoção do osso temporaç. Nota-se que a remoção pode ser feita de forma circular ou retangular na dependência do tipo de serra a técnica empregada.



3. Os espécimes são então fixados em formalina buferada a 10% por um mínimo de 14 dias, a seguir desengordurados em urna série gradual de concentrações de etanol e descalcificados em ácido tricloroacético 5% por um período variável de 5 a 6 semanas. Após a descalcificação os ossos são neutralizados em sulfato de sódio a 5% e desidratados em outra série gradual de etanol.

4. Os espécimes são então embebidos em concentrações crescentes de celuidina (de 1% a 12%) e o bloco resultante cortado a cada 20 microns com o auxílio de um micrótomo e uma a cada dez secções é corada com hematoxilina e eosina para posterior análise microscópica (Figura 2).

As secções restantes são armazenadas para posteriores reposições.



Fig. 2 - Técnica do laboratóirio seccionando um bloco de osso temporal com auxílio de um cricrótomo.



Fig. 3 - Ouvido médio com alterações patológicas irreversíveis representados por tecido de granulação e timpanosclerose envolvendo os ossículos. A membrana timpânica está intacta, porém com atrofia marcada.



Exemplos de patologias do osso temporal

Nos próximos parágrafos apresentaremos três casos clínicos com seus correspondentes aspectos histológicos, ressaltando a importância da histopatologia e de como através dela o nosso entendimento sobre as moléstias que acometem o órgão auditivo pode ser ampliado com o decorrente progresso na avaliação e tratamento dos nossos pacientes.

Caso 1

Informações clínicas: paciente com história de hipoacusia e otorréia bilateral de longa data.
Histopatologia: presença de ouvido médio anormal com retração da membrana timpânica, timpanosclerose maciça e importante destruição dos ossículos. Também nota-se presença de tecido de granulação e neoformação óssea. (Figura 3). Comentário: os achados neste OTH indicam claramente a correlação da otite média e suas seqüelas. O quadro de OMC da figura três demonstra alterações teciduais irreversíveis dentro do ouvido médio que somente poderiam ser adequadamente tratadas através de uma intervenção cirúrgica. Está claro que a presença de uma perfuração da MT, não é uma condição indispensável para a conceituação da OMC. Vários autores demonstraram que quando a definição de OMC se estende além da perfuração timpânica pura e simples e passa a considerar alterações patológicas irreversíveis teremos MT intactas (porém dificilmente normais) em 80% dos casos 2.3.

Caso 2

Informações clínicas: paciente com história de cofose e otorréia no ouvido esquerdo desde o nascimento. A otorréia, entretanto, cedeu aos trinta anos.

Histopatologia: a cavidade do ouvido médio apresenta um colesteatoma de grandes proporções envolvendo a cápsula ótica, o nervo facial e a mastóide, além deste achados no ouvido médio este osso temporal mostra outras alterações compatíveis com otoespongiose, labirintite e schwanoma vestibula (Figura 4).

Comentário: este caso é clássico para ilustrar que múltiplas patologias podem ser concomitantes em u mesmo ouvido. O colesteatoma, otoespongiose e o Schwanoma s independentes entre si e completamente coincidentes. A labirintite entretanto, poderia ter sido causa tanto pelo colesteatoma como tumor. A presença de patologias múltiplas acometendo o osso temporal já foi motivo de publicação prévia extraída de estudos histopatológicos 4.

Caso 3

Informações clinicas: paciente hospitalizada aos 60 anos com vertigens recorrentes e incapacitantes. Também queixava-se de zumbido e hipoacusia flutuante desde os 20 anos .



Fig. 4 - Nesta secção notamos a presença de um schwanoma vestibular de grande proporções, associado a achados grosseiros de colesteatoma, labirintite e foco de otoespongioge junto ao canal de falópio



Fig. 5 - Otoespongiose maciça da cápsua ótica com invasão da espira basal da cócla e hidropsia endolinfática acentuada.



Histopatologia: há extenso envolvimento otospongiótico do ducto coclear e labirinto vestibular com hidropsia endolinfática acentuada (Figura 5).

Comentário: o paciente apresentava história típica de doença de Meniére. Os achados histopatglógicos fortemente sugerem uma relação causal (neste OTH) entre a otoespongiose e o desenvolvimento da hidropsia endolinfática. Novamente estudos da associação de otoespongiose e hidropsia endolinfática já foram tema de publicações anteriores partidas de constatações histopatológicas irrefutáveis 5.

Direções futuras

A filosofia expansionista do Laboratório de Otopatologia da Universidade de Minnesota associada à procura constante de novas técnicas fizeram com que estudos de microscopia eletrônica viessem a se somar aos de microscopia óptica nos últimos anos. A ultra-estrutura de OTH e a minúcia de caracteres celulares até então ocultos passaram a ser explorados pelas lentes poderosas e detalhistas do microscópio eletrônico.

Além da microscopia eletrônica, outros avanços estão sendo incorporados nos estudos desenvolvidos pelo laboratório. Até hoje a maioria dos trabalhos nascidos ali descreviam achados histológicos sem entretanto quantificá-los. Hoje através de técnicas histomorfométricas a quantificação já é possível e os achados podem ser estatisticamente respaldados deixando de ser puramente descritivos.

Este fato indubitavelmente empresta às publicações a credibilidade aritmética tão valorizada e exigida nos últimos anos pela maioria dos periódicos científicos.
Além da histomorfometria, novos e aperfeiçoados métodos de embebição e fixação dós OTH têm sido realizados com vistas a correta preparação dos ossos para posterior análise imunohistoquímica.

Esforços concentrados na área da informática objetivam a computadorização de todos os dados pertinentes aos OTH tanto clínicos como de patologia. Com isto a abstração de dados de história, assim como a seleção dos ossos disponíveis para um particular estudo serão enormemente facilitados. Este programa está sendo desenvolvido buscando o estabelecimento de um sistema universal. Assim sendo, abre-se a possibilidade da troca de informações entre os vários centros de otopatologia do mundo sem restrições de linguagem ou distância.

As novas tecnologias e métodos de pesquisa que descrevemos nos parágrafos anteriores levam-nos a uma interrogação obrigatória: quantos laboratórios de ossos temporais serão suficientes para esgotar nossas necessidades e satisfazer nossas dúvidas? Achamos que não obstante o número, ele nunca será o suficiente. As coleções e os laboratórios devem ser dinâmicos com crescimento constante e sempre superior ao número de moléstias que atingem o ouvido humano. Como exemplo a síndrome da imunodeficiência adquiria, as doenças auto-imune e uma miríade de outras síndromes eram desconhecidas e talvez até inexistentes há somente uma década atrás.

Muito mais importante ainda é que cada região tenha acesso às patologias que lhe afetam e são comuns habilitando-os a desenvolver "Know-how" próprio e coerente com suas necessidades. No caso de um país como o Brasil, pela sua extensão geográfica, diversificação cultural, racial, climática e sócio-econômica e pelo elevado nível de sua medicina e existência de um laboratório próprio autônomo ou afiliado se impõe. Os autores se alinham ao lado daqueles que acreditam que em medicina (como em outras áreas) a contínua importação de informações básicas pode ser perigosa, podadora e até mesmo oportunista.

Acreditamos verdadeiramente na viabilidade deste projeto. Ele representará um grande salto de qualidade para a otorrinolaringologia neste país. O vai-vem clínico-patológico é indispensável para o crescimento da otologia de uma forma uniforme e completa em nosso meio.

Summary

The authors present a brief historical revision about the development of the otopathology with a special attention on the otopathology lab of the University of Minnesota"USA.


Bibliografia

1. Schuknecht, H. Temporal Bone Collections in Europe and the United States. Ann Otol Rhinol Laryngol Supp. 130, May-June 1987, Vol. 96, N°- 3, Part 2.
2. Meyerhoff, WL, Kim, CS, Paparella MM: Pathology of Chronic Otitis Media. Ann Otol. Rhinol Laryngol 87 (6): 749-751, 1978.
3. Costa, SS, Paparella, MM., Schadum, P., Yoom, TH. Histopathology of Chronic Otitis Media with Perforated and Non-Perforated. Tympanic Membranea, presented at the Midwinter Meeting of the Association for Research in Otolaryngology, Clearwater, Feb. 1989.
4. Paparella, MM, Schachem PA, Goycoolea, MV: Multiple Otological Pathologies. Ann Otol Rhinol Laryngol. (impress).
5. Paparella, MM, Mancini, F., Linton, S.: Otosclerosis and Meniere's syndrome. Diagnosis and Treatment. Laryngoscope 94: 1414-1417,1984.




* Pesquisador afiliado da International Hearing Foundation, Minneapolis, MN, USA: Pós-graduando em Otorrinolaringologia da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil.
** Chairman Emeritus Dept. de Otorrinolaringologia da Universidade de Minnesota, Minneapolis, MN, USA. Secretário da International Hearing Foundation, Minneapolis, MN, USA.
*** Cientista-Médico do Laboratório de Otopatologia da Universidade de Minnesota, MN, USA.
**** Técnicas do Laboratório de Otopatologia da Universidade de Minnesota, MN, USA.

Endereço do autor : R. Prudência de Morais, 432 - apto 64 - 14.015 - Ribeirão Preto / SP.

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