IntroduçãoMuito do que sabemos hoje em relação às várias moléstias que acometem o ouvido provieram do estudo histopatológico de ossos temporais humanos e animais.
A otopatologia data de 1906 na Europa quando Paul Manasse iniciou a colecionar cortes seriados e processados de ossos temporais humanos (OTH) para fins de estudo. Nasceu então em Wurtzburg, Alemanha, o primeiro laboratório de otopatologia do mundo. Ali OTH coletados de 1906 a 1943, havendo, ainda hoje, 534 pares de OTH mantidos em bom estado e disponíveis para estudo. Lamentavelmente as informações clínicas pertinentes a estes indivíduos extraviaram-se durante bombardeios que atingiram Wurtzburg durante a segunda grande guerra(1).
Atraídos pelas potencialidades da otopatologia, outros centros científicos europeus deram seguimento aos esforços pioneiros de Manasse. Resultado disto foi o surgimento de grandes coleções como as de Leipzig, Tubingen, Copenhagen e Hamburgo. Não tardou para a idéia atravessar o Atlântico, pois mesmo antes da segunda grande guerra dois laboratórios já estavam montados e ativos na América: o da John Hopkins University sob a direção de Stacey Guild e da Chicago University capitaneado por John Lindsey. Atualmente na América, além destes dois laboratórios, três outros ultrapassam a marca dos mil ÓTH colecionados: Universidades de Minnesota, Iowa e Harvard.
O objetivo deste trabalho é relatar a experiência do autor nos laboratórios de otopatologia da Universidade de Minnesota, onde o mesmo realizou "Fellowship" durante o biênio 87-88.
A metodologia de obtenção e processamento dos OTH será breve mente revisada, assim como a importância desta ciência ilustrada através da análise de três casos espe- cialmente selecionados.
O laboratório de histopatologia da Universidade de Minnesota
O laboratório de histopatologia do, osso temporal foi fundado em 1965, mas foi em 1967 quando o Dr. Michael Paparella, então com 34 anos tornou-se Professor Titular do Departamento de Otorrinolaringologia e Diretor do laboratórios é que este foi realmente priorizado e definitivamente decolou.
A partir daquele momento, os esforços para obtenção dos OTH foram triplicados através da contratação de pessoal, conscientização da importância da otopatologia e campanhas de esclarecimento público com fins de aumentar o número de doações. Conseqüentemente a coleção cresceu em progressão geométrica alcançando hoje o status de uma das maiores coleções do mundo com 1523 ossos temporais procedentes de 776 indivíduos.
A maioria das molésticas otológicas primárias e secundárias estão ali representadas oferecendo aos médicos, cientistas e acadêmicos uma oportunidade única para o correto entendimento de uma miríade de alterações histopatológicas que podem ocorrer no ouvido médio e interno do ser humano.
Além de OTH, ouvidos de animais submetidos a estudos experimentais nos Laboratórios de Bioquímica, Eletro-Fisiologia e Trauma Acústico são ali processados e microscopicamente escrutinados para as alterações histológicas decorrentes destas experiências.
Estudos procedentes deste laboratório incluem as mais variadas patologias, tais quais doença de Meniére, infecções virais bacterianas e fúngicas, anomalias e síndromes, neoplasias primárias e metastáticas, surdez neuro-sensorial, labirintites, estudos da janela redonda, ototóxicos, trauma acústico, otosclerose e um monumental número de publicações de ponta sobre otite média nasceram de pesquisas do laboratório de otopatologia.
A Universidade de Minnesota tem dedicado particular atenção à otite média nos últimos 10 anos, sendo subsidiada para isto por um "grant" conseguido junto ao Instituto Nacional da Saúde dos EUA (NIH). É atualmente um dos líderes mundiais no que concerne aos avanços nos conhecimentos referentes à patologia e fisio-patogênia desta entidade. Mais de 170 trabalhos já foram publicados pelo corpo técnico-científico do laboratório, incluindo não só OTH mas também de animais. Atualmente o corpo técnico-científico do laboratório é comandado pelo seu Diretor Dr. Michael Paparella, um cientista médico (Dr. TÀE YOON), uma técnica de laboratório (Sra. Nori Morizono) e uma fotógrafa médica (Sra. Sherry Lamey). Além destes, o laboratório sempre tem sido um centro de aprendizado internacional. Através dos anos mais de 40 "Fellows" de todas as partes do mundo ali aprenderam os segredos da otopatologia e os propagaram através de apresentações, publicações e teses.
Obtenção e processamento de ossos temporais
A comparação e correlação de achados histopatológicos, em ossos temporais requer consistência e uniformidade na técnica de remoção, processamento, tratamento, corte e análise deste tecido. Na Universidade de Minnesota os mesmos técnicos vêm processando OTH há mais de vinte anos usando essencialmente a mesma metodologia a qual será resumidamente apresentada.
1. Os OTH são obtidos no momento da autópsia após o pré-consentimento do próprio indivíduo ou guardião legal. Os corpos são mantidos sob refrigeração o que retarda significativamente a autólise pós-morten , viabilizando assim a integridade histológica da peça até 24 horas após a morte.
2. O osso temporal é removido após craniotomia e retirado do encéfalo para que não haja nenhum sinal externo de desfiguramento do cadáver após a remoção. Rotineiramente uma serra oscilatória com extremidade cortante cilíndrica (Strikers) é posicionada sobre a eminência arqueada e acionada em direção ao assoalho da fossa média com movimentos alternados a fim de remover o OTH em bloco único, com uma forma cilíndrica (rolha de osso temporal), Após a carótida interna é identificada e ligada (Figura 1).
Figura 1 - Posição na base do crânio onde é feita a remoção do osso temporaç. Nota-se que a remoção pode ser feita de forma circular ou retangular na dependência do tipo de serra a técnica empregada.
3. Os espécimes são então fixados em formalina buferada a 10% por um mínimo de 14 dias, a seguir desengordurados em urna série gradual de concentrações de etanol e descalcificados em ácido tricloroacético 5% por um período variável de 5 a 6 semanas. Após a descalcificação os ossos são neutralizados em sulfato de sódio a 5% e desidratados em outra série gradual de etanol.
4. Os espécimes são então embebidos em concentrações crescentes de celuidina (de 1% a 12%) e o bloco resultante cortado a cada 20 microns com o auxílio de um micrótomo e uma a cada dez secções é corada com hematoxilina e eosina para posterior análise microscópica (Figura 2).
As secções restantes são armazenadas para posteriores reposições.
Fig. 2 - Técnica do laboratóirio seccionando um bloco de osso temporal com auxílio de um cricrótomo.
Fig. 3 - Ouvido médio com alterações patológicas irreversíveis representados por tecido de granulação e timpanosclerose envolvendo os ossículos. A membrana timpânica está intacta, porém com atrofia marcada.
Exemplos de patologias do osso temporal
Nos próximos parágrafos apresentaremos três casos clínicos com seus correspondentes aspectos histológicos, ressaltando a importância da histopatologia e de como através dela o nosso entendimento sobre as moléstias que acometem o órgão auditivo pode ser ampliado com o decorrente progresso na avaliação e tratamento dos nossos pacientes.
Caso 1
Informações clínicas: paciente com história de hipoacusia e otorréia bilateral de longa data.
Histopatologia: presença de ouvido médio anormal com retração da membrana timpânica, timpanosclerose maciça e importante destruição dos ossículos. Também nota-se presença de tecido de granulação e neoformação óssea. (Figura 3). Comentário: os achados neste OTH indicam claramente a correlação da otite média e suas seqüelas. O quadro de OMC da figura três demonstra alterações teciduais irreversíveis dentro do ouvido médio que somente poderiam ser adequadamente tratadas através de uma intervenção cirúrgica. Está claro que a presença de uma perfuração da MT, não é uma condição indispensável para a conceituação da OMC. Vários autores demonstraram que quando a definição de OMC se estende além da perfuração timpânica pura e simples e passa a considerar alterações patológicas irreversíveis teremos MT intactas (porém dificilmente normais) em 80% dos casos 2.3.
Caso 2
Informações clínicas: paciente com história de cofose e otorréia no ouvido esquerdo desde o nascimento. A otorréia, entretanto, cedeu aos trinta anos.
Histopatologia: a cavidade do ouvido médio apresenta um colesteatoma de grandes proporções envolvendo a cápsula ótica, o nervo facial e a mastóide, além deste achados no ouvido médio este osso temporal mostra outras alterações compatíveis com otoespongiose, labirintite e schwanoma vestibula (Figura 4).
Comentário: este caso é clássico para ilustrar que múltiplas patologias podem ser concomitantes em u mesmo ouvido. O colesteatoma, otoespongiose e o Schwanoma s independentes entre si e completamente coincidentes. A labirintite entretanto, poderia ter sido causa tanto pelo colesteatoma como tumor. A presença de patologias múltiplas acometendo o osso temporal já foi motivo de publicação prévia extraída de estudos histopatológicos 4.
Caso 3
Informações clinicas: paciente hospitalizada aos 60 anos com vertigens recorrentes e incapacitantes. Também queixava-se de zumbido e hipoacusia flutuante desde os 20 anos .
Fig. 4 - Nesta secção notamos a presença de um schwanoma vestibular de grande proporções, associado a achados grosseiros de colesteatoma, labirintite e foco de otoespongioge junto ao canal de falópio
Fig. 5 - Otoespongiose maciça da cápsua ótica com invasão da espira basal da cócla e hidropsia endolinfática acentuada.
Histopatologia: há extenso envolvimento otospongiótico do ducto coclear e labirinto vestibular com hidropsia endolinfática acentuada (Figura 5).
Comentário: o paciente apresentava história típica de doença de Meniére. Os achados histopatglógicos fortemente sugerem uma relação causal (neste OTH) entre a otoespongiose e o desenvolvimento da hidropsia endolinfática. Novamente estudos da associação de otoespongiose e hidropsia endolinfática já foram tema de publicações anteriores partidas de constatações histopatológicas irrefutáveis 5.
Direções futuras
A filosofia expansionista do Laboratório de Otopatologia da Universidade de Minnesota associada à procura constante de novas técnicas fizeram com que estudos de microscopia eletrônica viessem a se somar aos de microscopia óptica nos últimos anos. A ultra-estrutura de OTH e a minúcia de caracteres celulares até então ocultos passaram a ser explorados pelas lentes poderosas e detalhistas do microscópio eletrônico.
Além da microscopia eletrônica, outros avanços estão sendo incorporados nos estudos desenvolvidos pelo laboratório. Até hoje a maioria dos trabalhos nascidos ali descreviam achados histológicos sem entretanto quantificá-los. Hoje através de técnicas histomorfométricas a quantificação já é possível e os achados podem ser estatisticamente respaldados deixando de ser puramente descritivos.
Este fato indubitavelmente empresta às publicações a credibilidade aritmética tão valorizada e exigida nos últimos anos pela maioria dos periódicos científicos.
Além da histomorfometria, novos e aperfeiçoados métodos de embebição e fixação dós OTH têm sido realizados com vistas a correta preparação dos ossos para posterior análise imunohistoquímica.
Esforços concentrados na área da informática objetivam a computadorização de todos os dados pertinentes aos OTH tanto clínicos como de patologia. Com isto a abstração de dados de história, assim como a seleção dos ossos disponíveis para um particular estudo serão enormemente facilitados. Este programa está sendo desenvolvido buscando o estabelecimento de um sistema universal. Assim sendo, abre-se a possibilidade da troca de informações entre os vários centros de otopatologia do mundo sem restrições de linguagem ou distância.
As novas tecnologias e métodos de pesquisa que descrevemos nos parágrafos anteriores levam-nos a uma interrogação obrigatória: quantos laboratórios de ossos temporais serão suficientes para esgotar nossas necessidades e satisfazer nossas dúvidas? Achamos que não obstante o número, ele nunca será o suficiente. As coleções e os laboratórios devem ser dinâmicos com crescimento constante e sempre superior ao número de moléstias que atingem o ouvido humano. Como exemplo a síndrome da imunodeficiência adquiria, as doenças auto-imune e uma miríade de outras síndromes eram desconhecidas e talvez até inexistentes há somente uma década atrás.
Muito mais importante ainda é que cada região tenha acesso às patologias que lhe afetam e são comuns habilitando-os a desenvolver "Know-how" próprio e coerente com suas necessidades. No caso de um país como o Brasil, pela sua extensão geográfica, diversificação cultural, racial, climática e sócio-econômica e pelo elevado nível de sua medicina e existência de um laboratório próprio autônomo ou afiliado se impõe. Os autores se alinham ao lado daqueles que acreditam que em medicina (como em outras áreas) a contínua importação de informações básicas pode ser perigosa, podadora e até mesmo oportunista.
Acreditamos verdadeiramente na viabilidade deste projeto. Ele representará um grande salto de qualidade para a otorrinolaringologia neste país. O vai-vem clínico-patológico é indispensável para o crescimento da otologia de uma forma uniforme e completa em nosso meio.
SummaryThe authors present a brief historical revision about the development of the otopathology with a special attention on the otopathology lab of the University of Minnesota"USA.
Bibliografia1. Schuknecht, H. Temporal Bone Collections in Europe and the United States. Ann Otol Rhinol Laryngol Supp. 130, May-June 1987, Vol. 96, N°- 3, Part 2.
2. Meyerhoff, WL, Kim, CS, Paparella MM: Pathology of Chronic Otitis Media. Ann Otol. Rhinol Laryngol 87 (6): 749-751, 1978.
3. Costa, SS, Paparella, MM., Schadum, P., Yoom, TH. Histopathology of Chronic Otitis Media with Perforated and Non-Perforated. Tympanic Membranea, presented at the Midwinter Meeting of the Association for Research in Otolaryngology, Clearwater, Feb. 1989.
4. Paparella, MM, Schachem PA, Goycoolea, MV: Multiple Otological Pathologies. Ann Otol Rhinol Laryngol. (impress).
5. Paparella, MM, Mancini, F., Linton, S.: Otosclerosis and Meniere's syndrome. Diagnosis and Treatment. Laryngoscope 94: 1414-1417,1984.
* Pesquisador afiliado da International Hearing Foundation, Minneapolis, MN, USA: Pós-graduando em Otorrinolaringologia da Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, Brasil.
** Chairman Emeritus Dept. de Otorrinolaringologia da Universidade de Minnesota, Minneapolis, MN, USA. Secretário da International Hearing Foundation, Minneapolis, MN, USA.
*** Cientista-Médico do Laboratório de Otopatologia da Universidade de Minnesota, MN, USA.
**** Técnicas do Laboratório de Otopatologia da Universidade de Minnesota, MN, USA.
Endereço do autor : R. Prudência de Morais, 432 - apto 64 - 14.015 - Ribeirão Preto / SP.