Versão Inglês

Ano:  1996  Vol. 62   Ed. 6  - Novembro - Dezembro - ()

Seção: Artigos Originais

Páginas: 500 a 502

 

Paralisia Facial e Surdez Súbita Bilateral na Doença de Lyme.

Simultaneous Bilateral Facial and Cocleovestibular Palsy in Lyme Disease.

Autor(es): Sulene Pirana*,
Ricardo Ferreira Bento**,
Priscila Bogar***,
José Alexandre Medicis da Silveira****,
Natalino Hajime Yoshinari*****.

Palavras-chave: Surdez súbita, paralisia facial, borreliose

Keywords: Sudden deafness, facial palsy, borreliosis

Resumo:
A Borreliose de Lyme é uma zoonose cuja principal manifestação neurológica é a paralisia facial periférica. A incidência deparalisia facial periférica causada por borrelia em países onde já estão estabelecidas as áreas endêmicas varia ente 7 a 20%. Os autores relatam um caso de paralisia facial bilateral e surdez bilateral causada por borrelia no Brasil, sendo o primeiro caso relatado com confirmação sorológica. Comentam as características clínico-epidmiológicas e sorológicas da Borreliose de Lyme.

Abstract:
Lyme's Borreliosis is a zoonosis; the main neurologic manifestation is facial palsy. The incidente of this manifestation in other countries is 7 to 20%. The authors report a case of bilateral facial palsy and deafness caused by borrelia in Brazil; this is the first case report with sorologic confirmation . They also discuss the clinical, epidemiologic and sorologic manifestations of Lyme's Borreliosis.

INTRODUÇÃO

A paralisia facial periférica e a surdez súbita são entidades clínicas cujas etiologias são muito discutidas. Uma espiroqueta transmitida pela picada de um carrapato (Borrelia Burgdorferi), causadora da Doença de Lyme, tem sido implicada na etiologia dessas afeccções (1).

A Doença de Lyme, ou melhor, Borreliose de Lyme é uma infecção polimorfa, de caráter sistêmico, com manifestações clínicas muito variáveis. É conhecida desde 1972 após uma epidemia de poliartrite no condado de Lyme - Connecticut (EUA) (2). Sua evolução se faz em 3 etapas podendo evoluir com fases de remissão e exacerbação (3, 4):

1- Fase inicial de primoinfecção que se inicia após um período de 3 a 30 dias da contaminação, caracterizada por manifestação cutânea, classicamente: eritema crônico migrans e manifestações gerais: febre, cefaléia, mialgia, artralgia etc.
2- Fase secundária septicêmica, que se prolonga por 2 meses a 2 anos, quando ocorrem manifestações cutâneas, neurológicas (15%): meningite, encefalite e paresia de pares cranianos, principalmente do facial, manifestações articulares e cardíacas.

3- Fase terciária ou tardia, com comprometimento cutâneo (acrodermatite crônica atrófica), articular ou neurológico. A paralisia facial uni ou bilateral é um dos sinais mais freqüentes da complicação neurológica da espiroquetose, segundo alguns autores (5). Sua incidência varia de 10% a 25% entre os pacientes com paralisia facial inicialmente diagnosticada como idiopática (2, 3, 4, 6, 7). Nos estudos de paralisia facial em zonas endêmicas da Borreliose de Lyme, 15-20% são secundários ao processo infeccioso. O comprometimento de outros pares cranianos é menos freqüente. Quando o VII.º par está afetado ocorrem tonturas, disacusia, surdez súbita (3).

Krejcova, em 1988, descreveu sintomas otoneurológicos associados com borreliose de Lyme. Quarenta e quatro porcento de seus pacientes tinham alterações auditivas e 81% alterações vestibulares (8). Porém, são escassos os relatos de comprometimento do VIII.º par na literatura (3%), acarretando diminuição da audição, vertigem e raramente perda permanente da audição.

Pacientes com borreliose de Lyme tem alterações laboratorais não específicas, como aumento doVHS e leucocitose. Culturas para Borrelia são muito caras e pouco produtivas e a possibilidade de isolamento do agente etiológico decresce com a progressão clínica e o diagnóstico é fundamentalmente laboratorial, associado a manifestações clínicas compatíveis (9).
Os testes sorológicos mais utilizados são Elisa e Western-Blott (4). Anticorpos da classe IgM surgem ao redor da segunda semana de doença, e o título tende a diminuir com o tratamento clínico. Anticorpos da classe IgG surgem tardiamente, atingindo o pico ao redor do segundo ou terceiro mês de doença e o título pode permanecer positivo indefinidamente (9). Resultados falsos positivos podem ocorrer na sífilis, mononucleose e doenças reumáticas (4, 10, 11,12).

O tratamento é feito com antibióticos: amoxacilina, tetraciclinas, eritromicina ou cefalosporinas (4).

RELATO DE CASO

BHN, 23 anos, masculino, branco, foi atendido no Ambulatório de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo com quadro de paralisia facial periférica (PFP) esquerda, de início súbito há 15 dias, com vertigem, hipoacusia e zumbido ipsilaterais há 2 dias. Há um ano, havia apresentado PFP direita e hipoacusia direita, havendo regressão espontânea da paralisia, com persistência da hipoacusia. Negava outros sinais ou sintomas, assim como antecedente de trauma ou existência de doenças sistêmicas. Ao exame clínico, apresentava paralisia grau IV, segundo classificação de House (13) e diminuição do lacrimejamento ao teste de Schirmer. A audiometria revelou anacusia à direita e via aérea em 100 dB à esquerda. Foi feito o diagnóstico de surdez súbita e paralisia facial periférica suprageniculada. Os exames laboratoriais revelaram aumento do VHS (14 mm), hemograma sem alteração, reações sorológicas para sífilis negativas, sorologia para mononucleose negativa e provas reumatológicas negativas. A tomografia computadorizada e a ressonância nuclear magnética não mostraram nenhuma alteração. Pela bilateralidade da paralisia e acometimento de outro par craniano, foi solicitada sorologia para borreliose, onde encontrou-se IgM negativa e IgG 1/800, sendo sugerido o diagnóstico de Doença de Lyme. A epidemiologia era compatível, pois o paciente reside na região de Cotia onde já foram diagnosticados 4 casos (14). O paciente foi tratado cor eritromicina, com regressão do quadro de paralisia facial porém sem qualquer alteração do quadro auditivo.

DISCUSSÃO

A doença de Lyme é fator importante no diagnóstico diferencial de muitos pacientes atendidos pelo otorrinolaringologista (ORL). Apesar da paralisia facial ser o sinal mais comum de Borreliose de Lyme visto pelo ORL numerosos outros sinais e sintomas otorrinolaringológico podem ser causados por esta entidade, como dor facial acometimento da articulação tempo mandibular, cefaléia zumbido, hipoacusia, faringite e linfadenopatia cervica1 (2).

Em áreas endêmicas, a doença de Lyme é a principa causa de paralisia facial na infância. Nos adultos, a principal causa continua sendo a paralisia de Bell. Apesar de algun autores relatarem alta incidência entre os doentes com paralisia facial (10 a 25%), isto não foi confimando em nosso meio, onde ainda se desconhece a incidência.

Não se sabe se a paralisia de nervos cranianos é causada por invasão direta ou por mecanismos imunes, ou ambos. A predominância de afecção do nervo facial é inexplicada. Os sintomas otológicos de zumbido, surdez e tontura são menos comuns. Outros nervos podem ser acometidos, como o laringeo recorrente e o glossofaríngeo.

Com o intuito de identificar a existência ou não de casos de Borreliose de Lyme entre os pacientes com paralisia facial em nosso ambulatório, iniciamos o estudo sorológico dos pacientes; este caso relatado foi o que deu inicio à suspeita dessa patologia em nosso meio e o primeiro caso relatado de paralisia facial e deficiência auditiva causadas por Borreliose de Lyme no Brasil. Este diagnóstico só foi possível graças à existência de equipe multidepartamental que se dedica à pesquisa desta entidade no Brasil (12), que antes não era estudada, pois não contavamos com métodos diagnósticos.

A paralisia facial causada por Borreliose de Lyme tem bom prognóstico; o tratamento precoce com antibióticos é recomendado para prevenir complicações tardias como meningoencefalite, miocardite e artrite recorrente, e recomenda-se longo seguimento do paciente. Outro fator importante que faz necessária a distinção entre paralisia facial causada por Lyme e a idiopática (Bell) é o fato de que, em muitos serviços esta última entidade é tratada com corticosteróides e alguns estudos tem sugerido que este tratamento pode afetar adversamente a paralisia causada por Lyme (15, 16).

O comprometimento do VIII.º par, tanto em sua porção coclear, como na vestibular é raramente descrito na literatura e também pouco pesquisado, seja através de audiometria ou testes eletrofisiológicos. Moscatelo (17), estudando 149 pacientes com doença de Lyme, descreveu 4 casos de deficiência auditiva, todos com recuperação total da audição. Sintomatologia otoneurológica é ainda mais raramente descrita e investigada; Krejcova (18) descreveu 6 pacientes com sintomas de vertigem e instabilidade. Hanner (19) estudou 98 pacientes com deficiência auditiva de origem desconhecida e em 17% encontrou sorologia positiva para borrelia. Diehl (20) relatou 4 pacientes com surdez súbita, 3 com zumbido e um com neuronite vestibular num grupo de 15 pacientes otorrinolaringolégicos com Borreliose de Lyme. No caso aqui descrito, a primeira manifestação foi de comprometimento do VIIh par, com posterior acometimento do VIIº; não se encontrando nenhum caso descrito de acometimento bilateral e irreversível do VIIIª par.

O diagnóstico clínico é apenas presuntivo e bastante dificil pelas características tão variadas da afecção, baseandose fundamentalmente em considerações epidemiológicas. O diagnóstico confirmatério deste caso foi sorológico, com deteccção de IgG anti-Bornlia burgdorfeni, o fato de a IgM ter resultado negativa deve-se ao longo tempo decorrido do início dos sintomas até o diagnóstico, pois a primeira manifestação da doença ocorreu há pelo menos um ano do atendimento em nosso ambulatório, quando ocorreu o quadro de paralisia facial periférica direita. A reação cruzada com sífilis, mononucleose e doenças reumatológicas foi afastada.

A infecção parece ser amplamente difundida, podendo, porém, passar desapercebida por desconhecimento ou pela grande variabilidade de suas manifestações. O fato de desconhecermos a história natural da doença de Lyme no Brasil, assim como a dúvida quanto à melhor cepa de Borrelia burgdorferi a ser empregada nos testes sorológicos em nosso meio, constituem os maiores obstáculos na busca de pacientes suspeitos°.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1- BIURRUN, O; ALVAREZ, R; BLANCH, JL; GRAUS, F; VALLS, J Y TRASERRA, J. - Incidencia de la Infección por borrelia Burgdorferi en la Parálisis Facial Aislada. Anales O.R.L. Iber.-Amer. XIX, 3: 209-15, 1992
2- CLARK, JR; CARLSON, RD; PACHNER, AR; SASAKI, CT; STEERE, AC. - Facial Paralysis in Lyme Disease. Laryngoscope 95: 1341-5, 1985
3- BARAHONA, J. - Manifestaciones Neurologicas de la Enfermedad de Lyme. Cuad Neurol XVII, 57-61, 1989
4- GOLDFARB, D; SATALOFF, RT. - Lyme Disease: A Review for the Otolaryngologist. ENT Jourwal 73(11): 8249, 1994
5- HEININGER, U; RIES, M; CHRIST, P; HARMS, D. Simultaneous Palsy of facial and Vestibular Nerve in a Child With Lyme Borreliosis. Eur Pediatr 149: 781-2, 1990
6- ENG, GD. - Lyme Disease Presenting with Bilateral Facial Nerve Palsy. Arch Phys Med Rehabil 71: 749-50, 1990
7- HALPERIN, JJ; GOLIGHTLY, M. - Lyme Borreliosis in Bell's Palsy. Neurology 42: 1268-70, 1992
8- KREJCOVA, MB; BOJAR, M; JERAHEK, J. Otoneurological Symptomatology in Lyme Disease. Adv Otorhino Laryn 42: 210-2, 1988.
9-YOSHINARI, NH; OYAFUSO, LK; MONTEIRO, FGV; BARROS, PJL; CRUZ, FCM; FERREIRA, LGE; BONASSER, F; BAGGIO, D; COSSERMELLI, W. Doença de Lyme. Relato de um caso observado no Brasil. Rev Hosp Clin Fac Med S Paulo 48(4): 170-4, 1993.
10- Centers For Disease Control. "Lyme Disease Connecticut". Morbidity and Mortality Weedly Report, Jan 37(1): 1-3, 1988
11-MAGNARELLI, LA. - Serologic Diagnostic of Lyme Disease. Annals Nexo York Academy of Seience 539: 154-61, 1988.
12- YOSHINARI, NH; BARROS, PJ; YASSUDA, P; BAGGIO, D; STEERE, AC; PAGLIARINE, RC; COSSERMELLI, W. - Estudo Epidemiológico da Doença de Lyme no Brasil. REV HOSP CLIN FAC MED S PAULO 47(2): 71-5, 1992.
13- HOUSE, JW. - Facial Nerve Grading Systems. Laryngoscope 93: 1056-69, 1983.
14- YOSHINARI, NH: BASSOS, PJ; FONSECA, AH; BONOLETI,VLN; BATLESTI, DMB; SCHOMAKER, TS; COSSERMELLI, W. - Borreliose de Lyme. Zoonose Emergente de Interesse Multidisciplinar. News Lab 12: 90104, 1995.
15- DATTWYLER, RJ; HALPERIN, JJ; VOLKMAN, DJ; LUFT, BJ. - Treatment of late Lyme Disease. Lancet 1: 1191-3, 1988
16- HALPERIN, JJ; VOLKMAN, DJ; WU, P. - Central Nervous System Abnormalities in Lyme Neuroborreliosis. Neur»logy 41: 1571-82, 1991.
17- MOSCATELLO, AL; WORDEN, DL; NADELMAN, RB; WORMSER, G; LUCENTE, F. - Otolaryngologic Aspects of Lyme Disease. Laryngoscope 101: 592-5, 1991.
18- KREJCOVA, H; BOJAR, M; JERABEK, J; TOMAS, J; JIROUS, J. Otoneurological Symptomatology in Lyme Disease. Adv Oto-Rkino-Laryrrg, 42: 210-2, 1988
19- HANNER, P; EDSTROM, S; ROSENHALL, U; KAIJSER, B. - Hearing Impairment in Patients with Antibody Production Against Borrelia Burgdorferi Antigen. Lancet 7: 13-5, 1989.
20- DIEHL, GE; HOLTMANN, S. - Die Lyme Borreliosis und Ihre Bedeutung fur den HNO-Arzt. LaryngologieRhinologie-Otologie, 68: 81-9, 1989.




* Pós-graduanda da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
** Professor Associado da Disciplina de Clínica Otorrinolaringológica da Faculdade de Medicina de Universidade de São Paulo
*** Médica Assistente do Hospital das Clinicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Doutora em ORL pela USP.
**** Professor-Doutor da Disciplina de Clínica Otorrinalaringológica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
***** Professor Associado da Disciplina de Reumatologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo

Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica e na Disciplina de Reumatologia do Hospital da Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo
Endereço: Av. Rio Branco, 1710, apto 41 CEP: 01206-001.

Artigo recebido em 29 de fevereiro de 1996.
Artigo aceito em 15 de abril de 1996.

Imprimir:

BJORL

 

 

 

 

Voltar Voltar      Topo Topo

 

GN1
All rights reserved - 1933 / 2024 © - Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial