Versão Inglês

Ano:  1996  Vol. 62   Ed. 2  - Março - Abril - ()

Seção: Relato de Casos

Páginas: 146 a 152

 

Abscesso Cerebral como Complicação de Otite Média Crônica.

Brain Abscess Secondary to Chronic Media Otitis.

Autor(es): Aracy Pereira Silveira Balbani *
Ronaldo Carvalho Santos Júnior *
Ivan Dieb Miziara **

Palavras-chave: Otite média, abscesso cerebral

Keywords: Otitis media, brain abscess

Resumo:
Os autores apresentam levantamento de 16 casos de abscessos cerebrais secundários a otite média crônica internados na enfermaria de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da FMUSP no período de 1980 a 1995. Observou-se que esses 16 casos representam 0, 71% do total de otites médias crônicas internados no referído período, com grande número de adultos jovens do sexo masculino, e achado de colesteatoma em 62,5% dos casos. Predominaram os abscessos únicos, de localização temporal e têmporo parietal (62,5%). Os agentes mais frequentes foram Proteusmirabilis,Bacteroides sp, Pseudomonas aeruginosa e Staphylococcus aureus. Os autores discutem a necessidade do tratamento clínico e cirúrgico precoce nesses casos, bem como a prevenção de complicações intracranianas do colesteatoma.

Abstract:
The authors present 16 cases of brain abscesses secondary to chronic media otitis referred to Otolaryngology Department of HCMUSP frorn 1980 to 1995. Brain abscesses were 0,71% of total chronic media otitis in that period, the majority of patients affected was male young people, and cholesteatoma was found in 62,5% of patients. Single abscess was frequent, at temporal and temporoparietal sites (62,5%). The organisms cultured were Proteus rnirabilis, Baderoides sp, Pseudomonas aeruginosa and Staphylococcus aureus. The authors discuss the need of early clinical and surgical treatment for these cases, as well as the prevention of intracranial complications of cholestetoma.

INTRODUÇÃO

A otite média crônica (OMC) é entidade freqüente em nosso meio, motivando grande número de atendimentos pelo serviço de ORL do HCFMUSP.

A infecção do ouvido médio pode extender-se-a outros locais, quer por via hematogênica, quer por contiguidade. Assim, entre as complicações extracranianas mais comuns estão a paralisia facial, abscesso subperiostal e labirintite, enquanto, entre as complicações intracranianas, podemos citar os quadros de meningite, abscessos extra- e subdurais, cerebrais ou cerebelares, além da trombose de seios venosos (2,5).
Tendo em vista a gravidade das complicações intracranianas, potencialmente fatais, os autores estudaram casos de abscesso cerebral secundário a OMC internados no HCFMUSP, analisando sua epidemiologia, microbiologia, achados hïstopatológieos, tratamento e prognóstico.

MATERIAL E MÉTODOS

Foram analisados os dados referentes a 2240 casos de OMC internados na enfermaria de Otorrínolaringologia do HCFMUSP no período de 1980 a 1995. Desses, 16 casos foram de abscesso cerebral de foco otogênico crônico.

RESULTADOS

Os resultados obtidos foram analisados e classificados quanto à incidência em relação aos casos de OMC, distribuição seguindo sexo e faixa etária, tempo de internação localização de abscesso, agentes etiológicos e tratamento utilizado.

Epidemiologia

A incidência de abscesso cerebral nos casos de OMC foi 0,71%, com 6 casos (37,5%) entre 1980 e 1995, 3 casos (18,75%) entre 1986 e 1990 e 7 casos (43,75%) no período de 1991 e 1995. A distribuição segundo sexo foi de 10 homens (62,5%) para 6 mulheres (37,5%). A distribuição por idade variou entre 11 e 60 anos, com média de 24 anos, como pode ser visto no Gráfico 1. Nove pacientes (56,25%) tinham entre 16 e 25 anos de idade.











Tempo de internação

O tempo de internação desses pacientes variou entre 21 a 93 dias, com média de 40 dias de permanência no hospital.

Achados histopatológicos no ouvido médio

Dez pacientes tiveram diagnóstico de OMC colesteatomatosa, enquanto 6 (37,5%), de OMC supurativa. O ouvido direito estava acometido em 50% das vezes, e o esquerdo em outros 50%. Um dos pacientes tinha OMC colesteatomatosa bilateral.

Abscesso Cerebral

O diagnóstico da localização e extensão do abscesso cerebral foi feito através de tornografia eomputadorízada de crânio. Foi encontrado abscesso único em 10 casos (62,5%),
e abscessos múltiplos foram observados em 6 outros casos (37,5%). A localização mais frequente foi em região temporal, em 13 casos (81,25%). Em um dos prontuários não havia dados sobre a localização do abscesso. Segundo o sítio, as coleções distribuiram-se da seguinte forma: 3 (18,75%); em região temporal; 7 (43,75%) em região têmporo-parietal,2 (12,5%) em cerebelo; 1 (6,25%) em região têmporo-occipital, 1 em região têmporo-frontal e 1 em regiões temporal e cerebelar (Gráfico 2).

Microbiologia

Os agentes isolados em cultura do material do abscesso estão listados na Tabela 1.
Não há descrição dos agentes isolados em 2 casos.

Outros achados

Dentre os 16 pacientes, foram diagnosticados também (durante a internação): abscesso subperiostal, petrosite, paralisia facial periférica, e meningite em um caso cada. Um dos casos teve como achado histopatológico de peça cirúrgica carcinoma verrucoso de mastóide.

Tratamento

Apenas 1 paciente recebeu tratamento clínico para o foco otogênico excluvisamente; os demais (93,75%) foram submetidos a mastoidectomia radical. O abscesso cerebral foi tratado pela equipe de Neurocirurgia do HCFMUSP, através de punção com aspiração em 11 casos (68,75%).





Com relação à antíbioticoterapia, 1 paciente (6,25%) recebeu um único antibiótico, enquanto 6 pacientes (37,5) recebram 3 antibióticos, 7 (43,75%) receberam 4 ATB e, finalmente, 2 pacientes (12,5%) receberam 5 ou mais antibióticos diferentes durante o seu tratamento no hospital, sempre por via parenteral.

Os antibióticos mais utilizados são listados na Tabela 2. Em 2 casos (12,5%), foi empregada a colistina; em um desses pacientes, havia sido isolada Pseudomonas aeruginosa, sensível apenas a esse antimicrobiano. Outras drogas utilizadas foram a cefalexina, imipenen, amicacina, ceftazidima e ciprofloxacin. Os pacientes receberam alta com antibiótico por via oral, durante período de 6 semanas.

Complicações

Houve 1 caso (6,25%) de síndrome de Stevens-Johnson na vigência de tratamento com vancomicina, metronidazol e ceftaxime associados, e 1 caso de erítema polimorfo desencadeado pelo uso de colistina, revertido com a administração de corticosteróide sistêmico.

Ocorreu um único óbito (6,25%), no total dos 16 casos estudados, em paciente de 23 anos, após 80 dias de internação. Há 10 dias do óbito, houve acidente de punção para acesso venoso central, e a paciente evoluiu com pneumotórax, drenado, dores abdominais e choque, apesar do tratamento. À necrópsia, foram relatados adenoma hipofisário, miocarditc aguda e esteatose hepática. Um dos pacientes necessitou ser reinternado 4 meses após a alta, devido à presença de novo abscesso cerebelar. Outro paciente evoluiu com crises convulsivas no pós-operatório neurocirúrgico.

DISCUSSÃO

Abscesso cerebral é a segunda complicação intracraniana mais frequente de otites médias, agudas ou crônicas, perdendo apenas para os casos de meningite (1, 2, 4). Há relatos ele até 3 % de incidência de abscessos cerebrais cm casos de OMC (1), estatística que vem declinando nas últimas décadas, graças ao uso de antibióticos. Apesar de a incidência de abscessos cerebrais por OMC em nosso levantamento ser de apenas 0,71%, este valor pode ser considerado elevado em comparação com o estudo de Kangsanarak e colaboradores, realizado na Tailândia, onde a totalidade de complicações intracranianas - e não somente abscessos - em otites médias agudas e crônicas foi de 0,24% em período de 8 anos. Outro aspecto a destacar é que essa incidência, em nosso meio, não demonstrou tendência de queda nos últimos 10 anos.

Quanto ao predomínio do sexo masculino e de faixas etárias jovens, entre a segunda e a terceira décadas de vida, nossos achados foram plenamente concordantes com os da literatura de outros países (1-4). Não há, ainda, explicação para essa diferença entre os sexos.

A presença de colesteatorna cm número significativo de casos (62,5%) assemelha-se à encontrada em países subdesenvolvidos, como a Tailândia e a África do Sul , com 73,8% e 64% de colesteatomas, respectivamente, e supera a estatística inglesa (1), com apenas 27%, donde se pode inferir que a cirurgia precoce é a melhor maneira de evitar a complicação cerebral.

A maioria dos abscessos localizou-se em regiões temporal ou têrnporo-parietal (62,5%), geralmente às custas de coleção única (62,5%), corroborando a tese de que a localização preferencial dos abscessos é adjacente ao foco infeccioso na porção mastoídea do osso temporal.

Os dados referentes à cultura do material purulento demonstram a importância do isolamento do agente etiológico dos abscessos, o que, muitas vezes, fica prejudicado pelo uso prévio de antibióticos. A flora bacteriana usualmente é mista, coro bacilos gram-negativos, incluindo Pseudomonas aeruginosa, anaeróbios e S. aureus, como descrito em outros estudos (1, 2) A partir do mesmo meio de cultura, cinco agentes diferentes foram identificados em um paciente. O padrão de sensibilidade aos antimicrobianos também pode apresentar particularidades importantes, como no caso da P. aeruginosa sensível, somente, à colistina.

O tratamento desses casos consistiu na antibioticoterapia precoce c agressiva, realizada sempre por via parenteral, e dirigida à cobertura roais ampla possível contra gram-negativos, anaeróbios e gram-positivos, destacando-se o uso do metronidazol, das penicilinas e, mais recentemente, das cefalosporinas de terceira geração, por período prolongado, chegando-se a até 3 meses de internação hospitalar, implicando em custos significativamente elevados. Não foi possível comparar o tempo de permanência desses pacientes em nosso serviço com os de outros autores. A abordagem cirúrgica do foco infeccioso no ouvido médio consistiu em mastoidectomia radical, realizada na quase totalidade dos casos, associada à punção do abscesso cerebral pelo neurocirurgião, em procedimcnto que, usualmente, precedeu ou foi concomitante à intervenção sobre o ouvido médio. Singh e colaboradores (4) advogam, por sua vez, a realização de mastoidectomia radical apenas nos casos de OMC colesteatomatosa, sob o argumento de que a mortalidade os pacientes com complicações intracranianas está retamente relacionada ao seu nível de consciência no momento da admissão hospitalar, e, não ao achado patológico o ouvido médio.

A ocorrência de uma taxa de mortalidade de 6,25% em nosso levantamento foi bastante inferior à de outros estudos, os quais esse item alcançou entre 15% e 47,2% do total de omplicações intracranianas.


CONCLUSÕES

Diante dos dados expostos anteriormente, foi possível concluir que:

1. O diagnóstico precoce dos abscessos cerebrais, através da tomografia computadorizada, e da ressonância nuclear magnética, com a subsequente instituição da terapêutica adequada, é fator decisivo para o prognóstico desses pacientes, reduzindo-se a mortalidade por essa afecção.

2. Em nosso meio, assim como em outros países subdesenvolvidos, a OMC colesteatomatosa figura como principal foco infeccioso otogênico nos casos de complicações intracranianas.

3. Torna-se imperioso o tratamento precoce dos casos de OMC colesteatomatosa, tanto pela antibioticoterapia, quanto pela mastoidectomia radical, sobretudo nas crianças, adolescentes e adultos jovens, com a finalidade de prevenir as complicações intracranianas. A prevalência de infecções é maior em mastóides pouco pneumatizadas, e há grande risco de extensão da infecção do ouvido médio pela erosão óssea e osteíte consequentes ao colesteatoma, com tromboflebite de pequenos vasos.

4. Os abscessos, geralmente, são adjacentes ao foco otogêníco, pela continuidade do processo infeccioso no osso temporal.

5. Os abscessos originam-se a partir de múltiplos agentes, principalmente Proteus mirabilis, Streptococcus.faecalis, Bacteroides sp, Pseudomonas aeruginosa e S. aureus, o que torna imprescindível a antibioticoterapia de amplo espectro e agressiva.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

1. BRADLEY, P.J.; MANNING, K;P; SHAW, M.D.M. - Brain abseess secondary to otitis media - J Laryngol Otol, 98:1185-1191, 1984.
2. KANGSANARAK, J.; FOOANANT, S.; RUCKPHAOPUNT, K. - Extracranial and intracranial complications of suppurative otitis media. Report of 102 cases. J Laryngol Otol, 107: 999-1004, 1992.
3. SAMUEL, J.; FERNANDES, C.M.C.; STEINBERG, J.L. - Intracranial otogenic complications: a persisting problem. Laryngoscope, 96: 272-278, 1986.
4. SINGH, B.; MAHARAJ; T.J.- Radical Mastoidectomy: its place in otitic intracranial complications. J Laryngol Oto; 107:.1113-1118,1993.
5. STEIN, E.H.; CUNNINGHAM, M.J.; WEBER, A.L. - Noninvasive radiologic options in evaluating intracranial complications of otitis media. Ann Otol Rhinol Laryngol, 101:363-366, 1992.
6. WOLFOWITZ, B.L. - Otogenic intracranial complications. Arch Otolaryngol, 96: 220-222, 1972.




* Médicos residentes da Divisão de Clínica Otorrino laringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Médico Assistente da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. (Serviço do Prof. Dr. Aroldo Miniti).

Endereço para correspondência.: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 6 and - sala 6002 - Cep 05403-000 - São Paulo -SP.

Artigo recebido em 30 de novembro de 1995.
Artigo aceito em 09 de dezembro de 1995

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