INTRODUÇÃOA otite média crônica (OMC) é entidade freqüente em nosso meio, motivando grande número de atendimentos pelo serviço de ORL do HCFMUSP.
A infecção do ouvido médio pode extender-se-a outros locais, quer por via hematogênica, quer por contiguidade. Assim, entre as complicações extracranianas mais comuns estão a paralisia facial, abscesso subperiostal e labirintite, enquanto, entre as complicações intracranianas, podemos citar os quadros de meningite, abscessos extra- e subdurais, cerebrais ou cerebelares, além da trombose de seios venosos (2,5).
Tendo em vista a gravidade das complicações intracranianas, potencialmente fatais, os autores estudaram casos de abscesso cerebral secundário a OMC internados no HCFMUSP, analisando sua epidemiologia, microbiologia, achados hïstopatológieos, tratamento e prognóstico.
MATERIAL E MÉTODOSForam analisados os dados referentes a 2240 casos de OMC internados na enfermaria de Otorrínolaringologia do HCFMUSP no período de 1980 a 1995. Desses, 16 casos foram de abscesso cerebral de foco otogênico crônico.
RESULTADOSOs resultados obtidos foram analisados e classificados quanto à incidência em relação aos casos de OMC, distribuição seguindo sexo e faixa etária, tempo de internação localização de abscesso, agentes etiológicos e tratamento utilizado.
Epidemiologia
A incidência de abscesso cerebral nos casos de OMC foi 0,71%, com 6 casos (37,5%) entre 1980 e 1995, 3 casos (18,75%) entre 1986 e 1990 e 7 casos (43,75%) no período de 1991 e 1995. A distribuição segundo sexo foi de 10 homens (62,5%) para 6 mulheres (37,5%). A distribuição por idade variou entre 11 e 60 anos, com média de 24 anos, como pode ser visto no Gráfico 1. Nove pacientes (56,25%) tinham entre 16 e 25 anos de idade.
Tempo de internação
O tempo de internação desses pacientes variou entre 21 a 93 dias, com média de 40 dias de permanência no hospital.
Achados histopatológicos no ouvido médio
Dez pacientes tiveram diagnóstico de OMC colesteatomatosa, enquanto 6 (37,5%), de OMC supurativa. O ouvido direito estava acometido em 50% das vezes, e o esquerdo em outros 50%. Um dos pacientes tinha OMC colesteatomatosa bilateral.
Abscesso Cerebral
O diagnóstico da localização e extensão do abscesso cerebral foi feito através de tornografia eomputadorízada de crânio. Foi encontrado abscesso único em 10 casos (62,5%),
e abscessos múltiplos foram observados em 6 outros casos (37,5%). A localização mais frequente foi em região temporal, em 13 casos (81,25%). Em um dos prontuários não havia dados sobre a localização do abscesso. Segundo o sítio, as coleções distribuiram-se da seguinte forma: 3 (18,75%); em região temporal; 7 (43,75%) em região têmporo-parietal,2 (12,5%) em cerebelo; 1 (6,25%) em região têmporo-occipital, 1 em região têmporo-frontal e 1 em regiões temporal e cerebelar (Gráfico 2).
Microbiologia
Os agentes isolados em cultura do material do abscesso estão listados na Tabela 1.
Não há descrição dos agentes isolados em 2 casos.
Outros achados
Dentre os 16 pacientes, foram diagnosticados também (durante a internação): abscesso subperiostal, petrosite, paralisia facial periférica, e meningite em um caso cada. Um dos casos teve como achado histopatológico de peça cirúrgica carcinoma verrucoso de mastóide.
Tratamento
Apenas 1 paciente recebeu tratamento clínico para o foco otogênico excluvisamente; os demais (93,75%) foram submetidos a mastoidectomia radical. O abscesso cerebral foi tratado pela equipe de Neurocirurgia do HCFMUSP, através de punção com aspiração em 11 casos (68,75%).
Com relação à antíbioticoterapia, 1 paciente (6,25%) recebeu um único antibiótico, enquanto 6 pacientes (37,5) recebram 3 antibióticos, 7 (43,75%) receberam 4 ATB e, finalmente, 2 pacientes (12,5%) receberam 5 ou mais antibióticos diferentes durante o seu tratamento no hospital, sempre por via parenteral.
Os antibióticos mais utilizados são listados na Tabela 2. Em 2 casos (12,5%), foi empregada a colistina; em um desses pacientes, havia sido isolada Pseudomonas aeruginosa, sensível apenas a esse antimicrobiano. Outras drogas utilizadas foram a cefalexina, imipenen, amicacina, ceftazidima e ciprofloxacin. Os pacientes receberam alta com antibiótico por via oral, durante período de 6 semanas.
Complicações
Houve 1 caso (6,25%) de síndrome de Stevens-Johnson na vigência de tratamento com vancomicina, metronidazol e ceftaxime associados, e 1 caso de erítema polimorfo desencadeado pelo uso de colistina, revertido com a administração de corticosteróide sistêmico.
Ocorreu um único óbito (6,25%), no total dos 16 casos estudados, em paciente de 23 anos, após 80 dias de internação. Há 10 dias do óbito, houve acidente de punção para acesso venoso central, e a paciente evoluiu com pneumotórax, drenado, dores abdominais e choque, apesar do tratamento. À necrópsia, foram relatados adenoma hipofisário, miocarditc aguda e esteatose hepática. Um dos pacientes necessitou ser reinternado 4 meses após a alta, devido à presença de novo abscesso cerebelar. Outro paciente evoluiu com crises convulsivas no pós-operatório neurocirúrgico.
DISCUSSÃOAbscesso cerebral é a segunda complicação intracraniana mais frequente de otites médias, agudas ou crônicas, perdendo apenas para os casos de meningite (1, 2, 4). Há relatos ele até 3 % de incidência de abscessos cerebrais cm casos de OMC (1), estatística que vem declinando nas últimas décadas, graças ao uso de antibióticos. Apesar de a incidência de abscessos cerebrais por OMC em nosso levantamento ser de apenas 0,71%, este valor pode ser considerado elevado em comparação com o estudo de Kangsanarak e colaboradores, realizado na Tailândia, onde a totalidade de complicações intracranianas - e não somente abscessos - em otites médias agudas e crônicas foi de 0,24% em período de 8 anos. Outro aspecto a destacar é que essa incidência, em nosso meio, não demonstrou tendência de queda nos últimos 10 anos.
Quanto ao predomínio do sexo masculino e de faixas etárias jovens, entre a segunda e a terceira décadas de vida, nossos achados foram plenamente concordantes com os da literatura de outros países (1-4). Não há, ainda, explicação para essa diferença entre os sexos.
A presença de colesteatorna cm número significativo de casos (62,5%) assemelha-se à encontrada em países subdesenvolvidos, como a Tailândia e a África do Sul , com 73,8% e 64% de colesteatomas, respectivamente, e supera a estatística inglesa (1), com apenas 27%, donde se pode inferir que a cirurgia precoce é a melhor maneira de evitar a complicação cerebral.
A maioria dos abscessos localizou-se em regiões temporal ou têrnporo-parietal (62,5%), geralmente às custas de coleção única (62,5%), corroborando a tese de que a localização preferencial dos abscessos é adjacente ao foco infeccioso na porção mastoídea do osso temporal.
Os dados referentes à cultura do material purulento demonstram a importância do isolamento do agente etiológico dos abscessos, o que, muitas vezes, fica prejudicado pelo uso prévio de antibióticos. A flora bacteriana usualmente é mista, coro bacilos gram-negativos, incluindo Pseudomonas aeruginosa, anaeróbios e S. aureus, como descrito em outros estudos (1, 2) A partir do mesmo meio de cultura, cinco agentes diferentes foram identificados em um paciente. O padrão de sensibilidade aos antimicrobianos também pode apresentar particularidades importantes, como no caso da P. aeruginosa sensível, somente, à colistina.
O tratamento desses casos consistiu na antibioticoterapia precoce c agressiva, realizada sempre por via parenteral, e dirigida à cobertura roais ampla possível contra gram-negativos, anaeróbios e gram-positivos, destacando-se o uso do metronidazol, das penicilinas e, mais recentemente, das cefalosporinas de terceira geração, por período prolongado, chegando-se a até 3 meses de internação hospitalar, implicando em custos significativamente elevados. Não foi possível comparar o tempo de permanência desses pacientes em nosso serviço com os de outros autores. A abordagem cirúrgica do foco infeccioso no ouvido médio consistiu em mastoidectomia radical, realizada na quase totalidade dos casos, associada à punção do abscesso cerebral pelo neurocirurgião, em procedimcnto que, usualmente, precedeu ou foi concomitante à intervenção sobre o ouvido médio. Singh e colaboradores (4) advogam, por sua vez, a realização de mastoidectomia radical apenas nos casos de OMC colesteatomatosa, sob o argumento de que a mortalidade os pacientes com complicações intracranianas está retamente relacionada ao seu nível de consciência no momento da admissão hospitalar, e, não ao achado patológico o ouvido médio.
A ocorrência de uma taxa de mortalidade de 6,25% em nosso levantamento foi bastante inferior à de outros estudos, os quais esse item alcançou entre 15% e 47,2% do total de omplicações intracranianas.
CONCLUSÕESDiante dos dados expostos anteriormente, foi possível concluir que:
1. O diagnóstico precoce dos abscessos cerebrais, através da tomografia computadorizada, e da ressonância nuclear magnética, com a subsequente instituição da terapêutica adequada, é fator decisivo para o prognóstico desses pacientes, reduzindo-se a mortalidade por essa afecção.
2. Em nosso meio, assim como em outros países subdesenvolvidos, a OMC colesteatomatosa figura como principal foco infeccioso otogênico nos casos de complicações intracranianas.
3. Torna-se imperioso o tratamento precoce dos casos de OMC colesteatomatosa, tanto pela antibioticoterapia, quanto pela mastoidectomia radical, sobretudo nas crianças, adolescentes e adultos jovens, com a finalidade de prevenir as complicações intracranianas. A prevalência de infecções é maior em mastóides pouco pneumatizadas, e há grande risco de extensão da infecção do ouvido médio pela erosão óssea e osteíte consequentes ao colesteatoma, com tromboflebite de pequenos vasos.
4. Os abscessos, geralmente, são adjacentes ao foco otogêníco, pela continuidade do processo infeccioso no osso temporal.
5. Os abscessos originam-se a partir de múltiplos agentes, principalmente Proteus mirabilis, Streptococcus.faecalis, Bacteroides sp, Pseudomonas aeruginosa e S. aureus, o que torna imprescindível a antibioticoterapia de amplo espectro e agressiva.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA1. BRADLEY, P.J.; MANNING, K;P; SHAW, M.D.M. - Brain abseess secondary to otitis media - J Laryngol Otol, 98:1185-1191, 1984.
2. KANGSANARAK, J.; FOOANANT, S.; RUCKPHAOPUNT, K. - Extracranial and intracranial complications of suppurative otitis media. Report of 102 cases. J Laryngol Otol, 107: 999-1004, 1992.
3. SAMUEL, J.; FERNANDES, C.M.C.; STEINBERG, J.L. - Intracranial otogenic complications: a persisting problem. Laryngoscope, 96: 272-278, 1986.
4. SINGH, B.; MAHARAJ; T.J.- Radical Mastoidectomy: its place in otitic intracranial complications. J Laryngol Oto; 107:.1113-1118,1993.
5. STEIN, E.H.; CUNNINGHAM, M.J.; WEBER, A.L. - Noninvasive radiologic options in evaluating intracranial complications of otitis media. Ann Otol Rhinol Laryngol, 101:363-366, 1992.
6. WOLFOWITZ, B.L. - Otogenic intracranial complications. Arch Otolaryngol, 96: 220-222, 1972.
* Médicos residentes da Divisão de Clínica Otorrino laringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Médico Assistente da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. (Serviço do Prof. Dr. Aroldo Miniti).
Endereço para correspondência.: Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255 - 6 and - sala 6002 - Cep 05403-000 - São Paulo -SP.
Artigo recebido em 30 de novembro de 1995.
Artigo aceito em 09 de dezembro de 1995