Ano: 1997 Vol. 63 Ed. 5 - Setembro - Outubro - (6º)
Seção: Artigos Originais
Páginas: 461 a 464
UTILIAÇÃO DE MEDICAMENTOS PARA OTALGIA SEM PRESCRIÇÃO MÉDICA: ESTUDO EM FARMÁCIAS.
Drugs for Ear Pain Without Medical Prescription: A Study in Pharmacies.
Autor(es):
Ricardo Ferreira Bento*
Renata Cantisani Di Francesco**
Arlete Cristina Granizo**
Richard Zouis Voegles***
Aroldo Miniti****
Palavras-chave: otite média, antibióticos
Keywords: otitis media, antibiotics
Resumo:
Com o objetivo de avaliar o tratamento instituído pelos atendentes de farmácias de São Paulo (Capital), frente a uma história de otite média aguda e otite média aguda supurada, os autores visitaram 41 farmácias de pequeno e médio portes em diferentes regiões da cidade. Apresentaram quadro fictício das situações supracitadas em uma criança com três anos de idade, solicitando orientação. Na maioria das vezes, as orientações foram inadequadas quanto ao tipo de tratamento, doses da droga e tempo de uso, o que pode ter como conseqüência problemas crônicos ou complicações.
Abstract:
The authors visited 41 small and middle size drugstores in the city of São Paulo, with the objetive of evaluating advices given by clerks to patients with ear pain. A clinical history of ear pain and/or otorrhea in a three-year old child was presented and asked for advices. Most of the time the advices were inadequate and the doses and time of treatment were insufficients. This situation can lead to complications to the ear or related structures.
INTRODUÇÃO
É prática comum no Brasil o doente, ao apresentar algum sinal ou sintoma, procurar tratamento em farmácias, ao invés de recorrer a um Serviço de Saúde, principalmente nas fases iniciais. Cabe, desse modo, aos atendentes de farmácias a orientação da população, o que fazem muitas vezes de modo distorcido e abusivo, por serem pessoas incapacitadas para o diagnóstico e tratamento. Assim, sugerem drogas cujos possíveis efeitos colaterais e reações adversas desconhecem, vendendo-as, muitas vezes, por influência da propaganda.
A otite média aguda (OMA) é uma das infecções mais comuns na infância1, 2, sendo a segunda mais comum após infecção de vias aéreas superiores (IVAS)1. Até os três meses de idade, 13% das crianças já apresentaram um episódio de OMA, e, até os três anos, 46% tiveram três ou mais episódios1.
Há estudos que mostram grande incidência de persistência de líquido no ouvido médio após quadro agudo de OMA1, 3 , com duração média de 40 dias1, sendo que 10 % dessas crianças podem permanecer com líquido por até seis meses6. O tratamento inadequado pode prolongar esses períodos, levando a prejuízos no desenvolvimento da linguagem, pela hipoacusia condutiva4, 5, 6. Como complicações agudas, temos: mastoidite, paralisia facial, labirintite, meningite e abscesso subdural, entre outras1, 2, as quais tiveram sua incidência diminuída após o advento da antibioticoterapia7.
Este estudo visa analisar, de forma objetiva, o tratamento instituído em farmácias da cidade de São Paulo para quadros de otite média aguda em crianças.
METODOLOGIA
Duas médicas residentes da disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, se fazendo passar por mães, visitaram 41 farmácias da Região Metropolitana de São Paulo. Essas farmácias foram selecionadas de modo aleatório nos diversos bairros da cidade, não tendo sido incluídas farmácias de grandes redes.
Nessas visitas, as supostas mães relataram aos atendentes disponíveis a "história da doença de seu filho". Colocaram dois quadros clínicos: A e B (Tabela 1), apresentados em 25 e 16 farmácias, respectivamente.
As orientações obtidas e o tratamento oferecido foram anotados, considerando-se os seguintes parâmetros: orientação para procura de serviço médico, uso de antibiótico (tipo, dose, duração do tratamento - mais ou menos 10 dias), uso de gotas otológicas e uso de analgésicos.
TABELA I
Quadro A: criança de 3 anos (15 kg), com febre de 39 graus, há 2 dias e otalgia à direita.
Quadro B: criança de 3 anos (15 kg), com febre de 39 graus há 2 dias e otalgia e otorréia à direita.
RESULTADOS
Para o grupo A, foram obtidos os seguintes resultados: 16% orientaram que se procurasse serviço médico; 32% orientaram o usos de antibióticos via oral; e 52%, o uso de gotas otológicas.
Entre os antibióticos recomendados, verificou-se que a amoxicilina foi indicada em 37%; sulfametoxazol e trimetoprin em 25%; ampicilina em 13%; e eritromicina em 25%.
Para o grupo B, houve maior número de indicação para o uso de antibióticos, constituindo 50%; 25% orientaram para o uso de gotas otológicas; 6% para uso de analgésicos; e só 19% orientaram para a procura de um serviço médico. Os antibióticos indicados foram: amoxicilina, 62%; eritromicina, 25%; e ampicilina, 13%.
Para o grupo A, a orientação, quanto à duração do tratamento, foi de 88%, para uso por menos de 10 dias; e 12%, por 10 dias. Para o grupo B, 100% das orientações foram para uso por menos de 10 dias.
A dose utilizada do antibiótico também foi variável, não tendo sido a dose preconizada para determinado antibiótico: em 50% para o grupo A; para o grupo B, 100% das orientações foram corretas.
DISCUSSÃO
No Brasil, as farmácias ainda se apresentam como centro procurado pela população na busca de orientação. Desse modo, os atendentes desses estabelecimentos são fontes de orientação para o tratamento das doenças8. Cabe ressaltar que esses atendentes são pessoas incapacitadas para tanto, e não podem fazer a prescrição que só compete ao médico. Na maioria das farmácias, nem sempre se encontra o farmacêutico responsável, como exigido por lei9.
Infelizmente, esse quadro não terá solução em curto prazo, pois para tal controle seriam necessárias legislação e fiscalização mais rígidas10. Esta atitude não é tomada inclusive porque ainda há cidades e regiões do País em que o acesso ao médico é muito difícil; mas porém o acesso à farmácia é possivel e com isso o paciente tem pelo menos algum tipo de atendimento.
Em nossa pesquisa, apresentamos aos atendentes dois quadros de otite média aguda - com e sem otorréria: apenas em 16%, para o grupo A, e 19% para o grupo B, as supostas mães foram orientadas a procurar serviço médico. Nota-se que a porcentagem na orientação nesse sentido é muito pequena, quando esta deve ser a atitude correta.
A OMA é uma das afecções mais comuns na infância11. Até os três anos de vida, 46% já apresentaram rês ou mais episódios de OMA1, a qual pode resultar em muitas complicações, verificando-se, assim, o grande isco a que se expõe nossa população, não apenas quanto is complicações agudas, mas principalmente quanto à persistência de líquido no ouvido médio, predominante em crianças menores de 24 meses12, com grande prejuízo no desenvolvimento da linguagem4, 5, 6.
A maioria dos atendentes, tendo "diagnosticado" infecção do ouvido, aventuraram-se à orientação do tratamento.
Para o grupo A, 52 % orientaram no sentido do uso de gotas tópicas; 0%, uso de analgésicos; 32%, uso de antibióticos; e apenas 16% orientaram à procura de serviço médico. Sabemos que apenas o uso de gotas tópicas ou analgésicos não traz benefícios para o tratamento da OMA, principalmente em quadros de otorréia com menos de 72 horas de duração, podendo aumentar o risco de suas complicações. Para o grupo B, foram obtidos resultados semelhantes: 6% foram orientadas para o uso de analgésicos; 25%, gotas otológicas; 50%, antibióticos; e 9% à procura de serviço médico. Há maior porcentagem e indicação para uso de antibióticos talvez pela presença e supuração. Observou-se preocupação dos atendentes as farmácias frente aos quadros com otorréia.
Pode-se verificar a pequena porcentagem quanto à orientação de procurar serviço médico.
Quanto aos antibióticos empregados, tivemos:
Grupo A: eritromicina, salfametoxazol + trimetoprim, ampicilina e amoxicilina;
Grupo B: amoxicilina, eritromicina e ampicilina.
A antibioticoterapia é baseada na sensibilidade da droga aos agentes etiológicos da OMA. A maioria dos autores, em pesquisa de secreções de ouvido médio em OMA, encontra, como principais agentes etiológicos; os seguintes agentes: Streptococcus pneumoniae, Haemophylus influenzae, Moraxella catarrhalise Staphylococcus aureus1, 2, 6, 13, 14, 15, 16, 17.
Outro fator de extrema importância para o tratamento da otite média aguda é a duração do tratamento. A maioria dos autores preconiza 10 dias de antibioticoterapia sistêmica1, 2, 14, 15, 18. Em nosso trabalho, foram obtidas diversas orientações quanto à duração do tratamento, sendo a mais freqüente aquela que utilizasse a medicação até a recrudescência dos sintomas. Dividimos, então, as orientações quanto à duração em 10 dias ou mais de tratamento e menos de 10 dias. Apenas uma orientação recomendou o tratamento durante 10 dias para o Grupo A, tendo-se portanto 88% de orientações inadequadas. Para o Grupo B, 100% das orientações recomendaram duração menor que 10 dias.
A dose de antibiótico é baseada na farmacodinâmica da droga e no peso da criança. Nesta série, a dose foi inadequada em 50 % das orientações para o Grupo A; e, para o Grupo B, todas as orientações foram corretas.
Os dados mostram que a maioria dos atendentes de farmácias assume tranqüilamente a responsabilidade pelo diagnóstico e a terapêutica, sem estar habilitada para tal função. A população, ao procurar diretamente a farmácia, expõe-se a graves riscos de complicações das doenças, assim como dos efeitos colaterias das drogas indicadas. Junto a estes fatores há, ainda, a resistência antibiótica que pode advir da terapêutica inadequada.
Em nosso meio, parte da incidência de complicações, tais como otite média secretora e perfurações timpânicas, entre outras, deve ser resultante de tratamentos inadequados instituídos em farmácias, porque é freqüente, no Brasil, os doentes se dirigirem inicialmente à farmácia, ao invés de procurar serviço médico - e os atendentes venderem produtos sem a necessária prescrição médica.
CONCLUSÃO
Os autores concluem que os atendentes de farmácias, quando confrontados com os quadros clínicos acima expostos:
1- Na maioria das vezes, não dão a correta orientação de procurar serviço médico e oferecem medicamentos que deveriam ser vendidos apenas com prescrição médica.
2- Geralmente, o tratamento utilizado não estava indicado, foi incompleto ou inadequado.
3- A posologia e a duração foram, na maioria das vezes, insuficientes.
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*Professor-Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
** Residente de segundo ano do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
*** Pós-Graduando (Doutorado) da Disciplina de Otorrinolaringologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
**** Professor Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Trabalho realizado pela Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. Apresentado no XXXII Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia, realizado em Curitiba/ PR.
Endereço dos autores: Avenida Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 255, sala 6002 - São Paulo/ SP - CEP: 04531-012 - Telefone/ Fax: (011) 280-0299.
Artigo recebido em 27 de dezembro de 1996. Artigo aceito em 20 ele março de 1997.