Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:
Vol.70 ed.2 de Março-Abril em 2004 (da página 70 à 73)
Autor: AZIZ LASMAR Jorge Leite Marcos Sarvat
Reportagem
O título de Doutor
Foram bastante oportunos e esclarecedores os artigos publicados pelos colegas Marcos Sarvat, em "O Globo", sob o título "Que doutor é esse?" e Jorge Leite, no Jornal do Brasil, com o título "Não chame o doutor".

Chega a ser alarmante a quantidade de doutores que preenchem os anúncios classificados de jornais e catálogos telefônicos. Todos são doutores: fisioterapeutas, farmacêuticos, fonoaudiólogos, psicólogos e vai por aí afora, mesmo que jamais tenham defendido uma tese de doutorado. O que estarrece é que os seus próprios órgãos de classe fomentam essas autonomeações, como bem identifica o colega Marcos Sarvat.

Num hospital, onde participam profissionais de várias classes da área de saúde, é extremamente comum a confusão que enfrentam pacientes e seus familiares com os diversos "doutores", reais ou imaginários.

Sarvat foi extremamente feliz quando, no último parágrafo de seu artigo, diz que cada um de nós se orgulha imensa ente de ser denominado médico, muito, nas muito mais do que ser chamado popularmente de doutor.

Corno também pondera Jorge Leite "A medicina recebe esse tratamento por tradição e espontânea deferência dos cidadãos e, no final do seu artigo, conclui: Nas situações onde haja perigo de vida ou necessidade de exame médico, diagnóstico e tratamento de doenças para restabelecimento da saúde, para dirimir dúvidas e minimizar riscos, seja na rua, no avião, no hospital, seja lá onde for, não chamem o doutor! Chamem sempre o médico!

É interessante notar que, nos países de língua inglesa, os médicos são sempre chamados de "doctor", ou, intimamente, de "doc", mas, quando escrevem artigos e relatórios, ou mesmo em seus jalecos, não utilizam esse termo, mas apenas o seu nome, seguido das letras M.D. (medical degree), ou traduzindo para o nosso idioma, simplesmente formado em medicina ou, melhor ainda, "médico".

Há alguns anos tive a oportunidade de atender a uma menina, de uns 5 ou 6 anos de idade. Terminado o exame, feita a receita e tendo passado a explicar, detalhadamente, o modo de ministrar os medicamentos, a menina, sentada ao lado da mãe, prestava atenção a tudo e, principalmente, corno a mãe se dirigia a mim. Era doutor para cá, doutor para lá etc.. Num dado momento, a menina não se conteve e perguntou à sua mãe:

- Mamãe, mas ele é doutor ou é médico?

- Aproveitando a deixa, respondi, ao invés de sua mãe:

- Minha filha, eu sou médico. Doutor... bem, doutor é qualquer um que tenha carro...

A seguir, o texto na íntegra escrito pelo otorrinolaringologista Jorge Leite e publicado no jornal dó Brasil:

NÃO CHAMEM O DOUTOR

Jorge Leite

Curiosamente, temos observado algumas profissões não médicas da área de saúde evocando a si novas prerrogativas, até então exclusivas do médico. O "doutor" (em minúsculas) não deve ser confundido com o Doutor (titulação acadêmica mais recente, obtida na conclusão de uma das modalidades de cursos de pós-graduação, com defesa de tese original em área específica), mas alguns neo-doutores parecem desconhecer tal diferenciação, ao se autodecretarem também com "direito ao uso do Doutor", e não doutor, precedendo seus nomes.

O doutor do médico não foi imposto por resolução ou decreto; surgiu e se mantém por tradição, respeito, apreço e admiração da população por seu saber da doutrina e prática de nobre ofício. Tradicionalmente, apenas o médico na saúde, e também o engenheiro, o advogado, o promotor e o juiz, em suas respectivas áreas, recebem da população um legítimo tratamento de doutor. A medicina recebe esse tratamento por tradição e espontânea deferência dos cidadãos, o engenheiro habitualmente o dispensa e os advogados, juízes e promotores seguem lei que lhes garante a distinção no ambiente dos tribunais.

Não há dúvida de que em termos formais, médicos e todos os demais profissionais oriundos de cursos universitários, seriam igualmente "doutores". Aliás, alguns profissionais de saúde, por também vestirem-se de branco, são até tomados por médicos, chamados de "doutor" espontaneamente pelos pacientes, até que estes percebem o equívoco. Ou seja, no caso da saúde, não parece haver inconveniente algum que outros profissionais de curso superior queiram, e por julgarem isso importante, esperem que os pacientes também a eles se refiram com a expressão "doutor".

A questão é como não passarem por médicos (crê-se que não desejam isso, pois certamente orgulham-se de suas profissões) e convencerem os pacientes a mudar de hábito cultural-lingüístico. Talvez por essa ansiedade e necessidade de romperem tradições e angariarem respeito (e mercado), estejam usando métodos e técnicas imaginativas como resoluções autárquicas, pois se tantos que não têm curso superior são chamados de "doutor", às vezes, apenas por ocuparem uma posição importante, por que não receberem tal deferência?

Nesse clima de confusão mental e verbal, apenas uma ressalva relevante se faz necessária, como alerta, para segurança de nossos pacientes e da população em geral: nas situações onde haja perigo de vida ou necessidade de exame médico, diagnóstico e tratamento de doenças para restabelecimento da saúde, para dirimir dúvidas e minimizar riscos, seja na rua, no avião, no hospital, seja lá onde for, não chamem o doutor! Chamem sempre o médico!

E se por engano chamarem um doutor, lembrem-se de acrescentar - que seja um médico.

* Jorge Leite é médico, otorrinolaringologista

A seguir, texto de Marcos Sarvat publicado no jornal O Globo.

Preâmbulo: Em 2001, os Conselhos Federais de Enfermagem e de Fisioterapia baixaram resoluções que declaram que seus membros Doutores. Assim algumas perguntas surgem:

1. Como um simples costume popular pode virar algo tão sério, a ponto de merecer tempo de tais autarquias federais?

2. Estariam tentando induzir a população a confundir não-médicos com médicos?

3. Sua motivação seria fazer "tudo pelo paciente" para angariar respeito ou apenas clientela?

QUE DOUTOR É ESSE?

Que nos corrijam os filólogos, mas a palavra doutor vem simplesmente de douto, isto é, estudioso da Doutrina, possuidor do Conhecimento, homem sábio, nada mais.

Ou melhor, vem disso tudo, ou seja, do fato de que, ao longo de séculos e séculos, muitos integrantes de uma profissão terem se destacado junto à população por sua enorme persistência na defesa da Saúde e da Vida, pelo estudo, diagnóstico e tratamento de doenças que a maioria em volta talvez considerasse "destino", "punição divina", "desequilíbrio da harmonia" ou pior, como ainda crêem alguns, "carma de vidas passadas". Lembram-se de Oswaldo Cruz, no início do século, em sua luta pela vacinação?

Ora, a maioria dos doutores médicos de hoje, apesar de toda a deterioração induzida em sua profissão por uma visão distorcida de alguns economistas e "educadores", estes provavelmente patrocinados pela indústria de más escolas médicas, governos e planos de saúde, ainda reza pela cartilha de Hipócrates, dedicando-se a seus pacientes segundo o rigoroso Código de Ética Médica. Mas dá para pensar: que serviços médicos realmente podemos esperar receber de profissionais gerados e inseridos nesse insano sistema público e privado que privilegia o parente, o esperto, o incompetente, o corrupto?

Assim, numa sociedade de tal modo selvagem, parece natural a proliferação de maus médicos. Mas nessa profissão, vale o dito de que se podem enganar alguns durante algum tempo, mas dificilmente alguém engana todos por muito tempo. A verdade vem logo à tona, pois da mesma forma como o médico é chamado de doutor, também lhes são exigidas postura, conhecimentos e soluções de doutor.

E são exatamente esses profissionais abnegados que mantém a tradição do doutor "na boca do povo", e jamais decreto algum conseguirá modificar a cultura de um povo. Na verdade, iniciativas individuais ou institucionais de profissionais não médicos da área de saúde, auto-nomeando-se "doutores ou Doutores", nada significarão além de risível impressão de propaganda enganosa, transparecendo desejo inconfesso de "parecer médico", ou pior, simples frustração por "não ser médico", certamente ausente na maioria desses profissionais.

De fato, é incrível que algum cidadão douto possa imaginar que auto-nomeações por cabeçalhos de papéis timbrados ou por portarias autárquicas possam ser eficazes na mudança de linguagem de um povo. Afinal, esse povo de língua portuguesa pode ser gentil com os odontólogos e médicos (que agradecem a gentileza!), e até paciente (com o governo, por ex.), mas definitivamente não é bobo.

Bem, aos demais profissionais da área de saúde, auxiliares e complementares, os médicos, humildemente, recomendam, ou prescrevem uma receita bem simples sobre "como se tornarem doutores": àqueles que julgam "Dr." importante, não desanimem. Continuem trabalhando de forma séria, ética e comprometida com o paciente, dignificando suas respectivas profissões (vocês estão indo muito bem), que essa consagração popular talvez então venha, da forma mais agradável, justa, válida e definitiva, ou seja, naturalmente.

Enquanto isso, sugerimos orgulharem-se, promovendo mais, dentro de limites éticos e técnicos, o nome próprio da sua profissão, como cada um de nós se orgulha imensamente de ser denominado médico, muito, mas muito mais do que ser chamado popularmente de doutor.

Marcos Sarvat é médico otorrinolaringologista.
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