Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL: Vol.71 ed.6 de Novembro - Dezembro em 2005 (da página 16 à 20) |
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Autor: Felipe Sartor G. Fortes1, Ricardo Ferreira Bento2, Robson Koji Tsuji3, Arthur Menino Castilho4, Rubens Vuono de Brito Neto5 |
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Relato de Caso |
Paralisia facial periférica como manifestação inicial de leucemia mielóide aguda |
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Introdução
A leucemia aguda é a neoplasia maligna mais comum na infância, sendo mais freqüente a leucemia do tipo linfóide aguda (cerca de 75% dos casos), com sobrevida de cinco anos superior a 70%1,2. A leucemia mielóide aguda apresenta comportamento diferente, sendo mais comum em adultos, com pico de incidência acima dos 50 anos e apresenta prognóstico desfavorável.2
A apresentação clínica dos pacientes com leucemia aguda é variável, refletindo o grau de comprometimento da função medular e invasão extramedular. Os pacientes podem apresentar-se com quadros de hemorragia, septicemia ou mesmo assintomáticos, cujo diagnóstico pode ser feito através de exames de rotina. Classicamente, os pacientes apresentam-se com quadro sistêmico de palidez, fraqueza, febre e hemorragia, de acordo com o grau de anemia, plaquetopenia e neutropenia.2
A infiltração extramedular pela leucemia pode ocorrer. Usualmente acomete sistema nervoso central, pele, ossos e linfonodos. Além disto, em pacientes com leucemia mielóide aguda, pode ocorrer formação do sarcoma granulocítico, formação sólida de células mielóide malignas precursoras, também conhecido como cloroma.3
Estudos histopatológicos comprovam a invasão do osso temporal pela leucemia. No entanto, mesmo nestes casos, a ocorrência de paralisia facial periférica é rara3-5. A seguir, relatamos o caso raro de uma criança com AIDS e quadro inicial otite média complicada com paralisia facial periférica cuja investigação conduziu ao diagnóstico de leucemia do tipo mielóide aguda.
Relato de caso
Paciente do sexo masculino, nove anos de idade, em acompanhamento regular devido à AIDS adquirida por transmissão vertical e fazendo uso de AZT e 3TC (contagem de CD4 1744, CD8 1838, sendo CD4/CD8 0,95, e replicação viral estável) deu entrada no pronto-socorro com queixa de paralisia facial periférica esquerda há 1 dia. A criança apresentava história de otalgia direita há 3 dias, acompanhado de febre (39° C) e otorragia. Na ocasião foi atendido em outro serviço sendo diagnosticado quadro de otite média aguda e receitado amoxacilina. No entanto, evoluiu sem melhora do quadro à direita, e com otalgia e paralisia facial periférica à esquerda. Negava história de otorréia atual e prévia. A mãe relata que a criança queixava-se de tontura do tipo rotatória e hipoacusia bilateral desde o início do quadro. Nega história de otite média aguda de repetição, mas refere episódio de otalgia acompanhando abaulamento em região parotídea bilateral há 1 ano.
Ao exame físico encontrava-se afebril, em bom estado geral e agitada. Apresentava paralisia facial periférica à esquerda (Escala de House-Brackman: IV)6, otoscopia com membrana timpânica esquerda íntegra, abaulada e hiperemiada, e membrana timpânica direita aparentemente íntegra, hiperemiada, e com coágulos aderidos. O paciente não apresentava adenomegalia cervical ou abaulamento parotídeo à palpação.
Foi admitido com diagnóstico inicial de otite média aguda bilateral complicada com paralisia facial periférica à esquerda, sendo realizada paracentese com saída de secreção sanguinolenta. Após internação, apresentou proptose ocular esquerda progressiva, sem diminuição da acuidade visual ou alteração da motilidade ocular extrínseca.
Foi solicitada tomografia de ossos temporais que evidenciou presença de líquido em orelha média e células da mastóide (com canal do nervo facial preservado bilateralmente) (Figura 1), presença de múltiplos cistos em região parotídea bilateral, maior à esquerda, e próximo ao forame estilomastoideo (Figura 2), pansinusopatia bilateral, aumento de rinofaringe, glândulas lacrimais de tamanho aumentado com infiltrado hiperatenuante orbitário à esquerda ocasionando proptose, além de linfonodomegalias cervicais bilaterais.
Na ressonância neuromagnética (RNM) apresentava extensa proliferação de tecido com densidade celular elevada envolvendo anel linfático orofaríngeo e que continuava pela medular óssea com extensão para o clivus e base do crânio (Figura 3). Apresentava também comprometimento intra-orbitário extra-conal, deslocando a cavidade inferiormente e ocupando as fossas lacrimais (Figura 4), além de impregnação da porção fúndica intra-canalicular à esquerda, e presença de cistos e linfonodos intra-parotídeos à esquerda (Figura 6).
Observa-se também envolvimento extracraniano com obliteração das fossas pterigo-palatina, retrofaringe, com ocupação lateral das mesmas, além da região posterior da cavidade nasal pela massa previamente descrita (Figura 5).
O exame hematológico do paciente revelou hemoglobina de 8.2, com hematócrito de 26%, 56.740 leucócitos, com diferencial de 42% segmentados, 2% bastonetes, 10% linfócitos, 3% monócitos, 3% eosinófilos, 8% metamielócitos, 1% mielócitos, 8% promielócitos, 1% mieloblastos, 22% blatos, e 73.000 plaquetas.
Diante do achado hematológico, foi realizada a punção de medula óssea cujo mielograma revelou 21% blastos, 64% linfócitos displásicos, 3% eosinófilos, e 1% basófilos, com investigação confirmando o diagnóstico de leucemia do tipo mielóide aguda.
Discussão
As leucemias são neoplasias comuns na infância, cuja manifestação inicial pode ser variada, refletindo geralmente a deficiência na função medular pela doença. As manifestações extramedulares freqüentemente ocorrem na região de cabeça e pescoço, sendo importante ao otorrinolaringologista o conhecimento da doença para o diagnóstico precoce.2,5
As manifestações otorrinolaringológicas são variadas. Podem ocorrer por infiltração neoplásica, manifestando-se como massas tumorais, ou através de quadros hemorrágicos (gengival, mucosa da cavidade oral, entre outros), além de quadros infecciosos.4,5
A infiltração do osso temporal e as manifestações otológicas são comuns, podendo ocorrer por hemorragia, infecção e infiltrado celular, geralmente em pacientes com quadro sistêmico de leucemia4,5. Estudos histológicos demonstraram a presença de células neoplásicas no osso temporal em cerca de um terço dos pacientes com leucemia, sendo que 20% destes pacientes apresentaram complicações otológicas diretamente atribuídas a invasão celular. Clinicamente, os pacientes podem apresentar-se de forma variada, desde otite externa, otite média supurativa, disacusia neurossensorial, vertigem, mastoidite, e mais raramente paralisia facial periférica.5
A PFP nestes pacientes geralmente reflete acometimento do sistema nervoso central por infiltração meníngea, podendo ocorrer também de forma secundária à lesão temporal ou parotídea. Existem na literatura raros casos descritos de paralisia facial periférica como manifestação inicial ou sinal de recorrência da doença após tratamento. No entanto, este quadro é mais raro ainda em pacientes com leucemia do tipo mielóide aguda.7-9
Há também casos relatados de pacientes com diagnóstico de paralisia de Bell que evoluíram posteriormente com quadro leucêmico, tornando desta forma importante sua investigação em todos os pacientes com PFP. A infiltração neural pode ser a primeira manifestação da doença.10,11
Como o paciente no caso relatado não apresentava história de otorréia crônica, inicialmente foi diagnosticada otite média aguda supurada que complicou com PFP. Nestes casos, a paralisia costuma evoluir favoravelmente após paracentese e antibioticoterapia, e geralmente não é necessária investigação radiológica. No entanto, como o paciente evoluiu com proptose ocular esquerda, foram solicitados exames de imagem.
Na RNM e CT, foi observada infiltração neoplásica orbitária com deslocamento inferior da mesma, que costuma ser a manifestação extramedular mais freqüente em pacientes com leucemia. Também foi observada infiltração das glândulas, seios paranasais, faringe, base do crânio, comuns em pacientes com leucemia.3
O acometimento da glândula parótida próximo ao forame estilomastóideo à esquerda poderia justificar a PFP do paciente, seja por infiltração tumoral ou secundária ao edema e compressão8. Em pacientes com HIV, pode ocorrer o crescimento parotídeo secundário a lesões císticas no parênquima glandular. Trata-se da hiperplasia linfoepitelial com degeneração cística pelo próprio HIV. O diagnóstico pode ser feito através da punção aspirativa com agulha fina, e o tratamento é expectante12. Nestes casos, o diagnóstico diferencial mais importante é o tumor de Whartin, feito através do estudo histopatológico12. Devido ao aspecto radiológico das lesões císticas do paciente fortemente sugestivas de cistos linfoepiteliais associados ao HIV, não foi realizada punção aspirativa da glândula.
Outro possível diagnóstico diferencial para paralisia facial periférica do paciente seria a neuropatia secundária ao HIV, doença de base do paciente13. Em pacientes com HIV, a PFP pode ocorrer em qualquer estado evolutivo da doença, sendo mais comum em estágios iniciais14. Existem diversas etiologias para a PFP relacionadas com o HIV, conforme o comprometimento da imunidade do paciente: neuropatia isolada pelo próprio vírus HIV, forma cefálica da Síndrome de Guillain-Barret, em estágios iniciais ou secundária à neuropatia crônica pelo HIV, infecções oportunísticas e linfoma, em estágios mais avançados, entre outras. Não existe associação comprovada na literatura entre leucemia do tipo mielóide aguda e a infecção pelo HIV.2,13
Na RNM, observa-se aparente comprometimento intra-canalicular à esquerda, possivelmente secundário à leucemia e que poderia justificar a PFP do paciente. O teste de Schirmmer, que poderia ajudar no diagnóstico topográfico, não foi possível de se realizar no paciente pela falta de colaboração do mesmo.
O diagnóstico etiológico e topográfico definitivo seria possível somente através do estudo histopatológico do nervo facial do paciente, embora, considerando-se as manifestações clínicas do paciente nos parece mais provável que a mesma seja secundária ao quadro de infecção da orelha média com possível infiltração tumoral.
O tratamento da leucemia mielóide aguda é clínico, através de quimioterapia ou eventual radioterapia no tratamento dos cloromas. A abordagem cirúrgica limita-se a obtenção de tecido para exame histopatológico ou drenagem de infecções, sendo o prognóstico da doença reservado.2,7
Figura 1. CT corte axial, janela óssea, mostrando quadro de otite média e mastoidite à esquerda. Figura 2. CT coronal, janela partes moles, evidenciando aumento de partes moles presença de múltiplos cistos em região parotídea. Figura 3. RNM, T1, corte axial evidenciando infiltrado celular das fossas pterigo-palatina, rinofaringe, retrofaringe, clivus, e base do crânio, com aparente do conduto auditivo interna à esquerda. Figura 4. RNM, T2, corte coronal, mostrando comprometimento intra-orbitário com infiltrado da fossa lacrimal, deslocando órbita inferiormente, sendo maior à esquerda. Figura 5. RNM, T2, corte coronal, evidenciando lesões na glândula parótida, maior à esquerda, e material preenchendo células timpânicas e mastóide.
Comentários finais
A leucemia deve ser lembrada como diagnóstico diferencial em crianças com paralisia facial periférica, mesmo sem a apresentação de sinais e sintomas sistêmicos da doença, sendo fundamental nestes pacientes a investigação laboratorial para correto diagnóstico e tratamento.
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1 Médico Residente da Disciplina de Otorrinolaringologia do HCFMUSP. 2 Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP e Chefe do Grupo de Otologia da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do HCFMUSP. 3 Estágio de Complementação Especializada em Otologia e Otoneurocirurgia (1º ano) da Disciplina de Otorrinolaringologia do HCFMUSP. 4 Médico Pós-Graduando, Estágio de Complementação Especializada em Otologia e Otoneurocirurgia (2º ano) da Disciplina de Otorrinolaringologia do HCFMUSP. 5 Doutor em Medicina pela FMUSP e Médico Assistente da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do HCFMUSP. Trabalho apresentado no III Congresso Triológico de Otorrinolaringologia, Rio de Janeiro, 8 a 11 de outubro de 2003 Endereço para correspondência: Felipe S. G. Fortes - Rua Fernão Cardim, 161 ap. 154 01403-020 São Paulo SP. E-mail: fsgfortes@yahoo.com.br Artigo recebido em 29 de junho de 2004. Artigo aceito em 19 de julho de 2004.
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