Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:
Vol.71 ed.6 de Novembro - Dezembro em 2005 (da página 12 à 15)
Autor: Angélica Souza Ferreira1, Ana Paula Serra2, Marcelo Girotti Merighe3, José Fernando Gobbo4
Relato de Caso
Complicação de amigdalectomia: relato de um caso de enfisema subcutâneo de face e pescoço
Introdução

A amigdalectomia é um dos principais procedimentos cirúrgicos realizados na prática otorrinolaringológica. Apesar de ser uma cirurgia relativamente segura, não está isenta de complicações1-3.

Os autores relatam neste artigo uma rara complicação da amigdalectomia, o enfisema subcutâneo de face e pescoço.

Revisão de literatura

A amigdalectomia encontra-se atualmente como uma das principais cirurgias realizadas nos hospitais brasileiros, tendo maior prevalência sobre a população pediátrica. Apesar de não apresentar alto risco ao paciente, não está isenta de complicações1.

Entre elas, a principal e a mais citada na literatura, é a hemorragia, que pode até mesmo resultar na morte do paciente. Outras complicações comuns citadas são: dor, febre, vômitos, desidratação, pequenos sangramentos, edema de úvula, trauma dentário, infecção local; além de complicações raras como: insuficiência respiratória, infecções cervicais, subluxação atlanto-axial, alterações imunológicas, perda visual e até crise hipertensiva com edema pulmonar e hemorragia intracraniana1,3,4.

O enfisema subcutâneo de face e pescoço é uma rara complicação das amigdalectomias2,5-8. Marioni et al.2 (2003) descreveram um caso ocorrido 5 horas após a amigdalectomia e associaram o aparecimento do enfisema cérvico-facial ao orifício deixado pela infiltração peritonsilar de epinefrina e bupivacaína. Nishino et al.5 (2003) relataram um caso 8 horas após a cirurgia, e consideraram que a laceração no plano de dissecção, aliado à ventilação com pressão positiva, poderiam ter levado ao quadro.

Amaral et al.7 (2002) descreveram um caso ocorrido imediatamente após a extubação, com enfisema subcutâneo cérvico-facial progressivo e pneumomediastino, que evoluiu com insuficiência respiratória aguda, reintubação traqueal, internação em Unidade de Terapia Intensiva e traqueostomia.

Castiglia et al.8 descreveram dois casos de enfisema subcutâneo de região cérvico-facial, em pós-operatório de colecistectomia e histerectomia, sem causas evidentes. Relacionaram o acontecimento a uma provável lesão pela intubação traqueal, ou cateter na hipofaringe ou pela ventilação mecânica. Menguy et al. (1997) apresentaram as possíveis etiologias e classificaram o enfisema subcutâneo cérvico-facial pós-operatório em 4 grupos, como apresentado na Tabela 19.

O diagnóstico diferencial com hemorragias, reações alérgicas e edema angioneurótico devem ser lembrados. No entanto, a crepitação à palpação local e os achados tomográficos confirmam o diagnóstico.

RELATO DE CASO

A.G.F., 25 anos, sexo masculino, branco, com indicação de amigdalectomia por amigdalites recorrentes e formação de abscesso periamigdaliano à direita. O exame físico pré-operatório apresentava-se sem anormalidades, exceto pela presença de hipertrofia amigdaliana. O hemograma e o coagulograma encontravam-se dentro dos padrões de normalidade. A amigdalectomia foi realizada sob anestesia geral e intubação orotraqueal. Foi utilizada a técnica de dissecção, com hemostasia através de sutura e cauterização de pontos sangrantes. O tempo cirúrgico foi de 30 minutos, sem intercorrências e com recuperação anestésica rápida. Após a extubação o paciente foi mantido com oxigenioterapia, na cânula de Guedel, com fluxo de 3L/minuto por aproximadamente 20 minutos. Não houve necessidade de ventilação sob pressão positiva em momento algum do pós-operatório.

O paciente evoluiu com edema de face e pescoço à esquerda após 4 horas da cirurgia, sendo este sem sinais inflamatórios, depressível e com crepitação à palpação, atingindo desde a região parotídea até a fossa clavicular à esquerda e estendendo-se à região cérvico-lateral direita. Não apresentava dificuldade respiratória e sua condição geral era estável. Realizada propedêutica pulmonar com expansibilidade preservada e murmúrio vesicular fisiologicamente distribuído, sem ruídos adventícios. Foi sugerida a hipótese diagnóstica de enfisema subcutâneo de face e pescoço e realizadas radiografias de tórax, excluindo a concomitância de pneumotórax e/ou pneumomediastino.

A tomografia computadorizada da região cervical demonstrou um enfisema subcutâneo na região malar e cervical, mais acentuado à esquerda, com presença de imagem aérea dissecando as fáscias cervicais, com extensão até a região do mediastino superior, que apresentava solução de continuidade com a coluna aérea ao nível da loja amigdaliana esquerda, na região da orofaringe.

O paciente foi mantido em observação por 24 horas, não sendo necessária qualquer reintervenção cirúrgica e recebendo alta hospitalar com pequena diminuição do edema. Realizada antibioticoprofilaxia. No seguimento, apresentou regressão total do quadro em 10 dias.

Discussão

O enfisema subcutâneo cervical raramente é descrito como uma complicação de amigdalectomia2,5-8, podendo ainda ser acompanhado de pneumomediastino7,9,10 e pneumotórax2,7. Surge por uma interrupção da integridade da mucosa orofaríngea por alguma laceração no plano de dissecção amigdaliano ou pelo orifício deixado pela infiltração peritonsilar de anestésicos, quando utilizada, aliada a uma diferença de pressão, que pode forçar a entrada de ar no tecido subjacente e sua dissecção através das fáscias cervicais2,7.

A entrada de ar na ferida cirúrgica pode ser facilitada pela pressão intrafaríngea aumentada, como ocorre na tosse, vômito, esforço físico e ventilação manual após a extubação. Através do músculo constrictor superior da faringe, o ar facilmente encontra o caminho para os espaços parafaríngeos do pescoço, dissecando as fáscias musculares. A anatomia dos espaços retrofaríngeo e parafaríngeo permite a penetração do ar para o mediastino, levando ao pneumomediastino7,10,11. Deve-se considerar as causas anestésicas, como intubação traqueal traumática, ventilação com pressão positiva elevada e ventilação manual excessiva2,7.

A evolução do enfisema subcutâneo cervical usualmente é benigna e autolimitada, ocorrendo resolução espontânea do processo2,5. No entanto, alguns casos podem ser dramáticos, levando ao comprometimento da função respiratória, por compressão extrínseca da traquéia, secundária a um enfisema subcutâneo maciço, ou por alteração ventilatória no pneumotórax. O pneumomediastino pode levar ao tamponamento cardíaco com diminuição do débito8.

O tratamento geralmente é conservador, sendo necessária, em alguns casos, a reintervenção cirúrgica para sutura no local da entrada do ar. O paciente deve ser monitorizado para avaliar a função cárdio-respiratória e o grau de comprometimento mediastinal e pulmonar. As condições que elevam a pressão intrafaríngea como tosse, vômito e o esforço fisco devem ser evitadas5. É recomendada antibioticoprofilaxia para evitar a contaminação dos espaços cervicais2,5 ou mediastino7,10. A traqueostomia está indicada se o enfisema subcutâneo cervical e retrofaríngeo forem progressivos.

A avaliação radiológica deve ser solicitada, sendo a tomografia computadorizada o exame mais recomendado.12,13

Comentários finais

Entre as complicações das amigdalectomias, o enfisema subcutâneo de face e pescoço, apesar de infreqüente e de evolução geralmente satisfatória, deve ser lembrado pelos otorrinolaringologistas e anestesistas, uma vez que pode levar à insuficiência respiratória aguda no pós-operatório e estar associado a comorbidades, como o pneumotórax e o pneumomediastino. Os pacientes devem ser monitorizados em ambiente intra-hospitalar e exames elucidativos devem ser solicitados.


Figura 1. Tomografia Computadorizada (TC) - Plano axial. Pescoço supra-hióide. Presença de ar no espaço parotídeo, parafaríngeo e perivertebral.


Figura 2. TC - Plano axial. Pescoço supra-hióide. Extensa dissecção (enfisema subcutâneo) envolvendo espaço parotídeo, carotídeo e perivertebral.


Figura 3. TC - Plano axial. Pescoço infra-hióide. Dissecção dos planos. Nota-se a passagem de ar através do espaço perivertebral para o lado direito.


Figura 4A. TC - Reformatação multiplanar. Plano coronal. Observar imagem aérea na topografia do espaço perivertebral em continuidade com o mediastino.


Figura 4B. TC - Reformatação multiplanar. Plano sagital.



Agradecimentos

Ao departamento de Anestesiologia e de Radiologia do Hospital Vera Cruz e à Fundação Roberto Rocha Brito.

Referências Bibliográficas

1. Siebert DR. Complicações Pós-Operatórias de Adenoamigdalectomia - Em: Tratado de Otorrinolaringologia. 1ª Edição. São Paulo: Editora Roca; 2003. p. 253-61.

2. Marioni G, De Filippis C, Tregnaghi A, Gaio E, Staffieri A. Cervical emphysema and pneumediastinum after tonsillectomy: It can happen. Otolaryngol Head Neck Surg 2003; 128: 298-300.

3. Vieira FMJ, Diniz FL, Figueiredo CR, Weckx LLM. Hemorragia na adenoidectomia e/ou amigdalectomia: estudo de 359 casos. Rev Bras Otorrinolaringol 2003; 69: 338-41.

4. Deutsch ES, Reilly JS. Amigdalectomia e Adenoidectomia - Mudanças nas Indicações. Em: manual de Otorrinolaringologia Pediátrica da International Association of Pediatric Otorhinolaryngology (IAPO). São Paulo: LIS Gráfica e Editora Ltda. 1997; 145-59.

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7. Amaral FLP, Almeida JSJ, Moura JFCJ, Yoshimoto WM. Enfisema subcutâneo e pneumomediastino após amigdalectomia. Relato de caso. Rev Bras Anest 2003; 29: CBA119.

8. Castiglia YMM, Machado PRA, Amorin RB, Braz JRC, Sato JK. Enfisema subcutâneo pós-operatório. Relato de casos. Rev Bras Anest 1993; 43: 205-7.

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10. Braverman I, Rosenmann E, Elidan E. Closed rhinolalia as a symptom of pneumomediastinum after tonsyllectomy: a case report and literature review. Otolaryngol Head Neck Surg 1997; 116: 551-3.

11. Scott, BA, Stiembreg, CM, Driscoll BP. Deep neck space infections - In: Bailey BJ. Head & Neck Surgery - Otolaryngology. 2nd ed. Philadelphia: Lippincont-Raven; 1998. p. 819-35.

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13. Noyek AM, Witerick IJ, Fliss DM, Kassel, EE. Diagnostic Imaginig - In: Bailey BJ. Head & Neck Surgery - Otolaryngology. 2nd ed. Philadelphia: Lippincont-Raven; 1998. p. 87-9.

1 Residente do 2º ano do serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Vera Cruz.
2 Residente do 3º ano do serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Vera Cruz.
3 Médico Otorrinolaringologista do Hospital Vera Cruz - Preceptor.
4 Médico Otorrinolaringologista do Hospital Vera Cruz - Preceptor.
Hospital Vera Cruz, Campinas SP.
Endereço para correspondência: Dra. Angélica Souza Ferreira - Av. Andrade Neves, 699 1º andar - Campinas São Paulo 13013-161.
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Artigo recebido em 04 de junho de 2004. Artigo aceito em 19 de julho de 2004.
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