Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL: Vol.71 ed.4 de Julho - Agosto em 2005 (da página 20 à 24) |
|
Autor: Pedro Henrique de Miranda Mota1, Lúcia Figueiredo Mourão2, Kelly Cristina Silverio2 |
|
|
Relato de Caso |
Membrana laríngea congênita associada a vasculodisgenesia: relato de caso |
|
|
INTRODUÇÃO
Membranas laríngeas congênitas (MLC) são má-formações laríngeas raras em que se observa presença de tecido anormal entre duas estruturas laríngeas, localizado nas regiões glótica, supraglótica e subglótica, além da interaritenoídea, sendo a região glótica a mais comumente afetada (Benjamin, 1983). A apresentação clínica é variável de acordo com a extensão, espessura e localização da membrana laríngea, sendo a disfonia o sintoma mais importante.
O diagnóstico da MLC é usualmente realizado logo nas primeiras horas de vida, quando o neonato apresenta choro rouco, associado ou não a estridor laríngeo e dispnéia. Se a membrana é extensa, pode diminuir a luz laríngea ocasionando dificuldade respiratória e estridor laríngeo. Ela pode estar associada a outras alterações laríngeas como estenose subglótica. Para Milczuk et al. (2000), a endoscopia laríngea é o melhor método diagnóstico, sendo também útil no planejamento terapêutico.
A MLC pode ser classificada, segundo Cohen (1990), de acordo com sua localização e o grau de obstrução, ou seja: Tipo I - uniforme em espessura, sem extensão para subglote, e com comprometimento menor que 35% da via aérea; Tipo II - mais espessa que a anterior e com extensão para subglote, com comprometimento em torno de 35 a 50%; Tipo III - não se delimita com precisão a prega vocal, com comprometimento em torno de 50 a 75%; e tipo IV - espessa, ocluindo 75 a 90% da via aérea.
Neste artigo relatamos os achados laringológicos, perceptuais e da análise acústica de irmãos com membrana laríngea congênita subglótica, do tipo II, associada a vasculodisgenesia.
REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Em 1930, Chevalier Jackson (apud Stasney, 1995) já recomendava a secção da membrana laríngea seguida de dilatação diária da glote até a completa cicatrização, demonstrando a preocupação de laringologistas com esta afecção.
A laringe desenvolve-se a partir do endoderma da porção cranial do entalhe laringotraqueal, assim como do mesênquima dos arcos branquiais quarto, quinto e sexto. Na sexta semana de vida embrionária, a luz laríngea é temporariamente obliterada por epitélio proliferativo, mas na décima semana um processo autolítico restabelece a luz laríngea. Comprometimentos no desenvolvimento normal neste período embrionário ocasionarão a persistência deste epitélio com aparecimento da MLC (Fokstuen et al., 1997).
Para Zaw-Tun (1988), quando o comprometimento no desenvolvimento embrionário surge até a sétima semana gestacional, ocorre o aparecimento da MLC com alterações mais proeminentes, com atresia de toda a laringe; entre a oitava e nona semanas, observa-se obstrução supraglótica; e, a partir da décima semana há obstrução parcial da glote por estrutura membranácea, sendo este o tipo mais comumente encontrado.
Apresentação de casos
Caso 1
D.M.R., masculino, 41 anos de idade, residente e procedente de Piracicaba-SP. Paciente refere voz "fina e rouca" desde a infância, não relacionada ao uso da voz ou a outros sintomas laríngeos. Faz uso profissional da voz como vendedor. Procurou a Clínica-Escola de Fonoaudiologia da Universidade Metodista de Piracicaba por ter sido informado sobre possível tratamento para melhorar a qualidade vocal, pois desejava candidatar-se à Câmara Municipal e participaria de comícios em que faria uso contínuo da voz. Como antecedentes pessoais, nega etilismo, tabagismo, quadros alérgicos, queixas respiratórias e refluxo gastroesofágico. Refere ter 3 irmãos e 4 irmãs que apresentam as mesmas características vocais.
No exame otorrinolaringológico realizado pode-se observar: Otoscopia: membrana timpânicas íntegras, peroláceas e sem lesões, meatos acústicos externos normais; Rinoscopia anterior: desvio septal para esquerda, conchas normotróficas e mucosa normocorada; rinoscopia posterior: sem anormalidades; Oroscopia: dentes, língua, palatos duro e mole, mucosa e orofaringe sem anormalidades; Telelaringoscopia e videoestroboscopia (Telelaringoscópio explorent GmbH e estroboscópio ATMOS CE 0124): pregas vocais móveis e simétricas, hiperemiadas, com presença de vasculodisgenesia em terço médio de prega vocal direita e membrana laríngea, subglótica, comprometendo o terço anterior da luz subglótica (Figura 1). Durante a fonação, observou-se fenda glótica irregular e hiperconstrição supraglótica de grau moderado (Figura 2), com diminuição da onda mucosa em toda extensão das pregas vocais, simetria de fase e diminuição da amplitude, e periodicidade presente.
Caso 2
O. R., 38 anos, comerciante. Refere voz rouca desde a infância, não associada a outras queixas vocais ou respiratórias. No exame otorrinolaringológico pode-se observar: Otoscopia: meatos acústicos externos normais, membrana timpânicas íntegras, peroláceas e sem lesões; rinoscopia anterior: septo nasal centrado, conchas normotróficas e mucosa normocorada; rinoscopia posterior: sem anormalidades; oroscopia: sem anormalidades; telelaringoscopia e videoestroboscopia (Telelaringoscópio explorent GmbH e estroboscópio ATMOS CE 0124): pregas vocais móveis e simétricas, pouco edemaciadas, com presença de vasculodisgenesia em terço médio de prega vocal direita, membrana laríngea, subglótica, comprometendo o terço anterior da luz subglótica (Figura 3). Durante a fonação, observou-se fenda glótica irregular e hiperconstrição supraglótica de grau moderado, com diminuição da onda mucosa em toda extensão das pregas vocais, simetria de fase e diminuição da amplitude, e periodicidade presente.
A avaliação fonoaudiológica foi realizada apenas pelo Paciente 1, por motivos de dificuldades de agendamento do Paciente 2. A avaliação foi constituída da análise perceptivo-auditiva da voz, das medidas fonatórias e da análise acústica da voz pela utilização do programa MultiSpeech 3700 (software da Kay Elemetrics). Na avaliação perceptivo-auditiva da voz, baseada na escala japonesa GRBAS (Isshiki et al., 1969), foi possível observar: grau de disfonia moderado, rugosidade moderada, soprosidade discreta, astenia ausente e tensão moderada. No que se refere ao trato vocal é possível observar articulação precisa, velocidade de fala acelerada, ressonância laríngea e modulação restrita durante a fala e o canto.
A extração das medidas fonatórias revelou tempos máximos de fonação (TMF) com valores reduzidos em relação ao esperado para o sexo masculino na população brasileira (/a/: 15s; 15s; 12s). A relação s/z (1,7) foi sugestiva de falta de coaptação correta das pregas vocais (/s/:25s e /z/:14s).
A avaliação acústica foi realizada pela emissão da vogal /E/ de forma sustentada, em pitch e loudness habituais, observando-se freqüência fundamental na faixa feminina, ou seja, média de 182Hz (Figura 4). Na análise espectrográfica pode-se observar emissão instável, ocasionais quebras de freqüência com a presença de subharmônicos, presença de ruído em alta freqüência (sugestivo de soprosidade) e nas freqüências médias (sugestivo de rouquidão), pobre definição dos formantes, além de redução da média de alcance dos harmônicos, como o observado nas vozes ásperas (média de 2.104,6 Hz) no sexo masculino (Pontes et al., 2002).
Figura 1. Telea de prega vocal D e membrana subglótica Figura 2. Caso de figura 1 em fonação, diminuição de onda mucosa Figura 3. Vasculodisgenesia de prega vocal D com membrana subglótica Figura 4. Análise computadorizada da voz do paciente 1
DISCUSSÃO
As má-formações laríngeas mais comuns são a laringomalácia e a estenose subglótica e em seguida a membrana laríngea congênita (Altman et al., 1997). As MLC são lesões incomuns, e acredita-se que resultem da falha na reabsorção do epitélio ativamente proliferativo que oblitera a abertura laríngea durante a 7a-8a semana de desenvolvimento intra-uterino. Pode vir associada a outras anomalias laríngeas, como estenose subglótica, mas também pode estar acompanhada de alterações cardíacas, gastrointestinais, e dos sistemas reprodutor e endócrino. Folkstuen et al. (1997) e Alvarez Garrido et al. (2002) descrevem que a membrana laríngea tipo III é decorrente da microdeleção 22q11 e está associada à má-formação cardiovascular.
Nos pacientes relatados no presente estudo de caso observa-se como característica comum a presença de membrana laríngea subglótica, do tipo II, associada a vasculodisgenesia, porém sem a presença de alterações cardíacas e/ou gastrointestinais. A presença de membrana laríngea em irmãos não é freqüentemente encontrada, ainda mais na localização subglótica, visto que a localização mais comum é a glótica (Benjamim, 1983).
A membrana laríngea do tipo III está associada à microdeleção 22q11, no entanto nos pacientes estudados foi observada a MLC do tipo II, o que não nos permite afirmar a presença de alteração genética. Talvez, a realização de exames genéticos pudesse confirmar a alteração heredofamiliar. Entretanto, a presença de alterações laríngeas semelhantes em irmãos, com uma possível representação familiar com as mesmas características vocais, referida pelos pacientes, pode sugerir caráter hereditário.
Nos pacientes deste relato não se observaram anomalias sistêmicas, mas observou-se vasculodisgenesia, um tipo de alteração estrutural mínima de cobertura de prega vocal. A vasculodigenesia representa uma alteração na rede vascular da laringe, apresentando um arranjo capilar distinto do longitudinal, com vasos transversais à borda livre, aberrantes, tortuosos, com alterações segmentares e interrupções bruscas, modificações nos diâmetros dos capilares, enovelamento difuso, disposições direcionais atípicas e formações aracnoídeas (Pontes, De Biase, Behlau, 1999). As vasculodigenesias raramente aparecem isoladas de outras alterações estruturais mínimas. No entanto, não foi possível encontrar relatos na literatura da associação de vasculodisgenesia e MLC, sugerindo ainda uma associação rara.
A membrana laríngea localizada na região glótica, ou até subglótica, por sua extensão impede a ampla movimentação da onda mucosa, resultando em qualidade vocal áspera e freqüência fundamental elevada, que foi confirmada pela análise perceptivo-auditiva e acústica da voz (Figura 4). Do mesmo modo, na literatura observa-se que a qualidade vocal mais comum tanto em crianças quanto em adultos é a voz áspera.
No Paciente 1 pode-se observar além da soprosidade, a rouquidão, que pode ser justificada pela existência de vasculodigenesia na prega vocal direita. O movimento ondulatório da mucosa pode ser reduzido na região do desarranjo vascular, comprometendo a qualidade vocal, porém os grandes desvios por vezes observados não são devidos à vasculodigenesia em si, mas, aos desarranjos das camadas que acompanham as alterações vasculares (Behlau et al., 2001).
Apesar do grau moderado de disfonia apresentada pelo Paciente 1, este considerava sua voz como uma "marca pessoal" tanto para as atividades de vendedor, quanto para a sua atividade política, vindo a procurar atendimento fonoaudiológico somente no período de eleições municipais, devido à demanda vocal intensa. Geralmente, os pacientes com alterações laríngeas congênitas, quando mínimas, ou seja, com comprometimento exclusivo na voz, começam a se queixar da alteração vocal no momento que necessitam de uma demanda vocal mais intensa ou quando iniciam uso profissional da voz.
A membrana laríngea, também chamada diafragma laríngeo, não deve ser confundida com o microdiafragma laríngeo, que é um tipo de alteração estrutural mínima de pregas vocais, que segundo Ford et al. (1994) pode vir associado a nódulos de pregas vocais, sendo de difícil diagnóstico, muitas vezes somente realizado durante o exame com microscópio nas cirurgias laríngeas. Em nosso meio, Ruiz, Pontes e Behlau (1998), também descrevem a associação de microdiafragma e nódulos de pregas vocais como um fator de pior prognóstico na reabilitação fonoaudiológica.
O tratamento das membranas laríngeas congênitas ou adquiridas é um desafio para o laringologista, devido às dificuldades terapêuticas. A necessidade do tratamento depende das características clínicas, da extensão da membrana laríngea e da severidade de provável estenose subglótica associada. Existem diferentes formas de tratamento, e sugere-se a secção da membrana, seguida de dilatações, até a cura, ou até a secção da membrana com uso de stent, cauterização, secção com laser, laringofissura com ou sem uso de stent (Stasney, 1995). No paciente 1 deste relato, foi sugerido tratamento cirúrgico, seguido de fonoterapia, mas o paciente declinou devido à hesitação em submeter-se ao tratamento cirúrgico, principalmente, por ter a sua voz como identidade pessoal e marca profissional.
CONCLUSÃO
O presente relato de caso apresentou a descrição de dois irmãos com diagnóstico de membrana laríngea congênita, que é uma má-formação laríngea rara, associada ainda a vasculodigenesia, sugerindo como causa fator genético. Além disso apresenta as características perceptuais (soprosidade, rouquidão e aspereza) e acústicas (Freqüência fundamental aguda, presença de ruído em alta e média freqüência e pobre definição dos formantes) compatíveis com redução do movimento muco-ondulatório decorrentes da membrana laríngea do tipo II.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Altman KW, Wetmore RF, Marsh RR. Congenital airway abnormalities requiring tracheotomy: a profile of 56 patients and their diagnoses over a 9 year period. Int J Pediatr Otorhinolaryngol 1997; 41(2): 199-206.
2. Alvarez Garrido C, Holmgren P, Nils L, Caussade S, Paz F, Jofré D, Sánchez Diaz I. Estridor de causa inhabitual em lactantes: description de 3 casos. Rev Chil Pediatr 2002; 73(2):152-8.
3. Behlau M, Azevedo R, Pontes P, Brasil O. Disfonias funcionais. In: Behlau M. (org.) Voz - O Livro do Especialista. v. 1. Rio de Janeiro: Revinter; 2001. 348 p.
4. Benjamin B. Congenital laryngeal webs. Ann Otol Rhinol Laryngol 1983; 92:317-26.
5. Cohen SR. Ventral cleft of the larynx: a rare congenital defect. Ann Otol Rhinol Laryngol 1990; 99: 281-5.
6. Ford CN, Bless DM, Campos G, Leddy M. Anterior comissure microweb associated with vocal nodules: detection prevalence and significance. Laryngoscope 1994; 104(11): 1369-75.
7. Fokstuen S, Bottani A, Medeiros PFV, Antonarakis SE, Stoll C, Schinzel A. Laryngeal Atresia Type III (Glottic Web) with 22q11.2 Microdeletion: Report of Three patients. Am J Med Genet 1997; 70:130-3.
8. Milczuk HA, Smith JD, Everts EC. Congenital laryngeal webs: surgical management and clinical embryology. Int J Pediatr Otorhinolaryngol 2000; 52:1-9.
9. Isshiki N, Okamura M, Tanabe M, Morimoto M. Differential diagnosis of hoarseness. Folia Phoniatr 1969; 21:919- 23.
10. Pontes P, De Biase N, Behlau M. Vascular charactheristics of the vocal fold cover in control larynges and larynges with minor structural alterations. Phonoscope 1999; 2:129-35.
11. Pontes PAL, Vieira V, Gonçalves MIR, Pontes AL. Características das vozes roucas ásperas e normais: análise acústica espectrográfica comparativa. Rev. Bras. Otorrinolaringol 2002; 68 (2):182-8.
12. Ruiz D, Pontes P, Behlau M. Laryngeal microweb and vocal fold nodules. A clinical study in Brazilian population. J Dismorphol Speech Hear Disord 1998; 1:7-12.
13. Stasney CR. Laryngeal webs: a new treatment for an old problem. Journal of Voice 1995; 9 (1): 106-9.
14. Zaw-Tun HIA. Development of congenital laryngeal atresias and clefts. Ann Otol Rhinol Laryngol 1988; 97:353-8.
1 Médico otorrinolaringologista e Professor Doutor da Faculdade de Ciências da Saúde da Universidade Metodista de Piracicaba. 2 Fonoaudióloga e Professora Doutora do Curso de Fonoaudiologia da Universidade Metodista de Piracicaba. Trabalho realizado na Universidade Metodista de Piracicaba - SP. Endereço para correspondência: Pedro Henrique de Miranda Mota - Rua Carlos Guimarães 445/142 - Cambuí - Campinas SP 13024-200. E-mail: olivmota@uol.com.br Artigo recebido em 25 de julho de 2003. Artigo aceito em 15 de maio de 2004.
|
|
|
|
Todos os direitos reservados © Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial
Av. Indianópolis, 740 - Moema - São Paulo - SP - Brasil - Fone: (11) 5052.9515 |
|
|
|