Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL: Vol.71 ed.4 de Julho - Agosto em 2005 (da página 12 à 14) |
|
Autor: Elaine M. Watanabe1, Sérgio A. Chiquito2, Thaís K. Ribeiro3, Ulisses J. Ribeiro4 |
|
|
Relato de Caso |
Metemoglobinemia induzida pela benzocaína |
|
|
INTRODUÇÃO
A metemoglobinemia é uma doença que deve ser suspeitada em casos de cianose inexplicável1.
Trata-se da presença aumentada de um tipo de hemoglobina que não consegue carrear o oxigênio adequadamente, produzida a partir da oxidação da hemoglobina em seu estado ferroso (Fe2+) para seu estado férrico (Fe3+).
Relatamos o caso de uma criança que fez uso exagerado do anestésico tópico oral, a benzocaína, durante um tratamento para rinofaringite e que evoluiu para metemoglobinemia.
REVISÃO DE LITERATURA
Os mecanismos para que essa doença ocorra são a deficiência da enzima metemoglobina redutase, a presença aumentada da hemoglobina M congênita ou adquirida por exposição do paciente a certos agentes químicos como: benzocaína, procaína, anilina, nitritos, nitratos, nitrobenzeno, dapsona, pirydium, sulfa e vitamina K3.
Pode levar à morte se não houver um suporte imediato. Na literatura existem casos relatados pelo uso da benzocaína em exames como endoscopias2, broncoscopias3, ecocardiografias transesofágicas4; por aplicação tópica ao redor de enterostomias5 e intubação orotraqueal.6
A incidência da metemoglobinemia induzida pela benzocaína na prática clínica tem sido difícil de estimar.7 É controversa a dose considerada tóxica para que a doença efetivamente ocorra. Num estudo de pacientes expostos a benzocaína, realizado na Cleveland Clinical Foundation, foi estimada uma incidência de 0,115%7. Em outro estudo, retrospectivo e multicêntrico, apenas 0,005% apresentou aumento evidente de metemoglobina, dos 188 pacientes expostos a doses consideradas significativas e médias de benzocaína (86.8mg/kg e 50mg/kg, respectivamente)8.
APRESENTAÇÃO DE CASO
A.C.S., 4 anos, branco, natural de Piracicaba. O paciente veio encaminhado do pronto socorro à UTI com cianose generalizada,de aparecimento abrupto, há cerca de 3 horas. Há três dias, com história de dor de garganta, inapetência, febre baixa e obstrução nasal, estava sob tratamento com anestésico tópico oral (benzocaína), paracetamol, vitamina C e soro fisiológico nasal. Houve um episódio de vômito em casa. O paciente não tinha história de inalação ou ingestão de agentes químicos que levassem ao raciocínio de intoxicação, sem antecedentes pessoais de internação ou outros tratamentos pregressos.
No exame físico de entrada apresentou regular estado geral, alternando nível de consciência, Glasgow 8-9, cianose +++/4, afebril, desidratado em grau moderado, normotenso, com freqüência respiratória de 35 impulsos por minuto e freqüência cardíaca de 128 batimentos por minuto. Ausculta torácica sem ruídos adventícios ou sopros, ausculta abdominal normal, sem alterações da marcha ou sinais meníngeos. Saturação em ar ambiente de 75%.
Foram inicialmente tomadas medidas gerais de ventilação do paciente, sendo realizado intubação orotraqueal, pelas condições neurológicas, e medidas de hidratação endovenosa. Na ventilação mecânica para manter saturação de 75% foi necessário FiO2 em 100%.
Exames:
· Hemograma com discreta linfocitose, sem anemia ou atipias celulares.
· Gasometria arterial: pH = 7,32; pCO2 = 25 mmHg; HCO3-= 20 mEq/L; Saturação de Oxigênio = 100%
· RX de tórax normal
· Urina I normal
· Líquor normal
Diante desse quadro de estabilidade ventilatória e hemodinâmica, com saturação normal de oxigênio à gasometria arterial incompatível com a clínica de cianose e da história do uso abusivo da benzocaína foi feito diagnóstico diferencial de metemoglobinemia. Paciente reverteu o quadro de cianose, prontamente ao tratamento com azul de metileno.
DISCUSSÃO
A me temoglobinemia consiste no ineficaz transporte de oxigênio causado pela oxidação do ferro da hemoglobina em seu estado ferroso (Fe2+) para o estado férrico (Fe3+), a metemoglobina. O estado ferroso permite o transporte adequado do oxigênio formando a deoxihemoglobina.1,2,9 Existem três mecanismos que podem explicar essa alteração: uma mutação na cadeia globina alfa ou beta que resulta no aumento da formação da metemoglobina (maior incidência entre esquimós, espanhóis e americanos nativos, com homozigoze letal); a deficiência da metemoglobina redutase (transmissão autossômica dominante sendo que sua heterozigose geralmente não está associada à cianose)10 e a presença da metemoglobina adquirida formada a partir do uso de substâncias que alteram hemoglobinas previamente normais.11,12
Crianças, principalmente as menores de 3 anos, são mais suscetíveis quando expostas à medicação pela imaturidade dos mecanismos antioxidantes, mas qualquer pessoa tem o risco de desenvolver o quadro.
Nesse caso o paciente apresentava uma cianose inexplicável, diante de uma saturação de oxigênio normal (100%) à gasometria arterial, contradizendo a sua aparência clínica. Segundo a mãe, foram espirrados incontáveis jatos da medicação em orofaringe devido queixa da criança de dor e conseqüente odinofagia, com pouquíssima ingesta alimentar.
O quadro clínico habitual consiste em náusea, dor de cabeça, dispnéia, podendo levar a crises convulsivas. A severidade dos sintomas depende da quantidade de hemoglobina oxidada. Mesmo em níveis baixos, ao redor de 15 a 20%, o paciente já pode apresentar a aparência de cianose, pela coloração "marrom chocolate" da metemoglobina ao ser exposta ao oxigênio, diferentemente da hemoglobina, que possui coloração avermelhada.1,12 Em geral até 30% de metemoglobina causa apenas uma "cianose cosmética", sem outras repercussões clínicas. Ao exceder esse valor desencadeiam-se os sintomas de privação do oxigênio como cansaço, mal-estar e confusão mental. Uma intoxicação importante apresenta níveis de metemoglobina maiores que 40-50%. A partir daí o paciente tem rebaixamento do nível de consciência, podendo evoluir para coma e morte.
Normalmente a metemoglobina constitui cerca de até 3% da hemoglobina total. Arbitrariamente, níveis menores que 1%, in vivo, estimulam a atividade da metemoglobina redutase convertendo o ferro do estado férrico para o ferroso.1,12
A gasometria demonstra níveis de saturação de oxigênio normais, podendo apresentar acidose metabólica severa.1 Pode ocorrer hemólise especialmente se o paciente for suscetível à oxidação, como os portadores da deficiência de glicose-6-fosfato-desidrogenase (G6PD).
Laboratorialmente a presença da hemoglobina M é detectável pela alteração da mobilidade eletroforética11,12 e em caso de deficiência da enzima metemoglobina redutase pode-se aferi-la diretamente em análise sanguínea direta.
Estudo em macacos com 56mg de benzocaína em traquéia provocaram aumento sérico de metemoglobina de 4 para 19,4% em cerca de 30 minutos.13
Nesse caso a mãe relatou que foi utilizado mais da metade do frasco de 50 ml de benzocaína, o equivalente a no mínimo 120mg de benzocaína total em três dias.
O tratamento vai depender do quadro apresentado pelo paciente. Ser portador da hemoglobina M geralmente não requer tratamento nem traz sintomatologia a não ser a coloração marrom-azulada do paciente.
Já nos pacientes que foram expostos a alguma medicação suspeita, se apresentarem apenas a "cianose" sem qualquer outro sintoma associado, pode ser administrada via oral 100 a 300mg de azul de metileno por dia ou 500mg de ácido ascórbico por dia. Outra medicação que pode ser utilizada é a riboflavina na dose de 20mg por dia. Uma vantagem desta última é a não produção de urina azul que o azul de metileno produz e nem a indução na formação de cálculos de oxalato de sódio pelo uso de ácido ascórbico.
Nos casos de emergência deve se administrar oxigênio em alto fluxo. Se eventualmente a substância suspeita foi ingerida recentemente, pode ser feita uma lavagem gástrica e ou dar ao paciente carvão ativado via oral.
A administração de azul de metileno deve ser de 1-2 mg/kg de peso, diluído a 1% em solução salina, em 15 minutos aproximadamente, por via endovenosa. Repetir se necessário em 15 a 20 minutos, já que a recidiva do quadro poderá ocorrer principalmente se o paciente já for deficiente da metemoglobina redutase ou ser portador da hemoglobina M. A reversão quadro em geral é rápida. O azul de metileno atua na via NADPH redutase elevando a atividade da G6PD, em outras palavras, acelera a atividade enzimática da metemoglobina redutase, convertendo a oxidação1,9.
Em casos extremos, em que o paciente não melhora com o tratamento, deve ser realizada transfusão sanguínea. O ácido ascórbico é ineficaz nesse momento por ser uma medicação que atua lentamente.
Controlado o quadro, o paciente deve ser monitorado a cada dois ou três dias.
COMENTÁRIOS FINAIS
Embora a anestesia tópica seja um recurso de conforto para o paciente, sempre devemos levar em consideração que o seu uso deve ser criterioso e sem abusos, já que pode evoluir rapidamente para metemoglobinemia. E devemos estar atentos que em caso de intoxicação pelo uso da benzocaína devemos ter esse diagnóstico diferencial em mente principalmente se houver cianose inexplicável, associado a uma saturação de oxigênio normal à gasometria arterial incompatível com a clínica apresentada, estabelecendo-se assim prontamente o tratamento adequado.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Cooper HA. Methemoglobinemia caused by benzocaine topical spray. South Med J 1997; 4(10): 946-8.
2. Abdallah HY, Shah SA. Methemoglobinemia induced by topical benzocaine: a warning for endoscopist. Endoscopy 2002; 34(9): 730-4.
3. Kuschner WG, Chiktara RK, Canfield J. Benzocaine-associated methmoglobinemia following bronchoscopy in a healthy research participant; Respir Care 2000; 45(8): 953-6.
4. Ho RT, Nanevicz T, Yee R, Figueredo VM. Benzocaine-induced methemoglobinemia - two case reports related to transesophageal echocardiography premedication. Cardiovasc Drugs Ther 1998; 12(3): 331-2.
5. Adachi T, Fukumoto M, Uetsuki N. Suspected severe methemoglobinemia caused by topical application of ointment containing benzocaine around enterostomy. Anesth Analg 1999; 88(5): 1190-1.
6. Kern K, Langevin PB, Dunn BM. Methemoglobinemia after topical anesthesia with lidocaine and benzocaine for a difficult intubation. J Clin Anesth 2000; 12(2):167-72.
7. Novaro GM, Aronow HD, Militello MA, Garcia MJ, Sabik EM. Benzocaine induced methemoglobinemia: experience from a high volume transesophageal echocardiography laboratory. J Am Soc Echocardiogr 2003; 16(2); 170-5.
8. Spiller HA, Revolinski DH, Winter ML, Weber JA, Gorman SE. Multi-center retrospective evaluation of oral benzocaine exposure in children. Vet Hum Toxicol 2000; 42(4): 228-31.
9. Olson ML, McEvoy GK. Methemoglobinemia induced by local anesthestics. Am J Hosp Pharm 1981; 140 (11): 1508-9.
10. Hall AH, Kullig KW, Rumack BH. Drug and Chemical induced methemoglobinemia - Clinical features and management. Med Toxicol 1986; 4: 253-60.
11. Mansouri A. Methemoglobinemia. Am J Med Sci 1985; 289-90.
12. Bunn HF, Forget BG. Various forms of Methemoglobinemia In: Hemoglobin: Molecular Genetic and Clinical aspects. Saunders; 1986.
13. Martin DG, Watson CE, Gold MB. Topical anesthesic-induced methemoglobinemia and sulfhemoglobinemia in macaques: a comparison of benzocaine and lidocaine. J Appl Toxicol 1995; 15(3): 153-8.
1 Residente em Otorrinolaringologia do Hospital Nossa Senhora de Lourdes. 2 Intensivista Pediátrico formado pela UNESP. 3 Médica formada pela Faculdade de Medicina do ABC. 4 Chefe do serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Nossa Senhora de Lourdes. Instituição: Hospital Nossa Senhora de Lourdes Endereço para correspondência: Elaine Miwa Watanabe - R. Matilde Dièz 338 ap. 23 Jd. Consórcio 04438-030 São Paulo SP. Tel: 9779-1404 / (0xx11) 5563-0116 -Fax (0xx11) 5012-1145 - E-mail: elainemiwa@ig.com.br Este trabalho foi apresentado no III Congresso Triológico, Rio de Janeiro, 8 a 11 de outubro de 2003. Artigo recebido em 18 de dezembro de 2003. Artigo aceito em 05 de fevereiro de 2004.
|
|
|
|
Todos os direitos reservados © Associação Brasileira de Otorrinolaringologia e Cirurgia Cérvico Facial
Av. Indianópolis, 740 - Moema - São Paulo - SP - Brasil - Fone: (11) 5052.9515 |
|
|
|