Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:
Vol.71 ed.3 de Maio - Junho em 2005 (da página 20 à 23)
Autor: José Antonio Pinto1, Henrique C. F. Pinto2, Delmer J.P. Perfeito3, Roberto D. P. Ferreira3, Rubens H. da Silva3, Ana Carla S. Marqui3
Relato de Caso
Complicação pós-colocação de válvula fonatória em paciente laringectomizado associado à radioterapia: relato de caso
INTRODUÇÃO

Um dos aspectos mais angustiantes da laringectomia total é a perda da capacidade fonatória, levando os pacientes a importantes limitações sociais e repercussões psicológicas. A restauração da fala após a laringectomia total é considerada primordial para a reabilitação do laringectomizado. Desde a primeira laringectomia realizada por Billroth (1873), muitos métodos para restaurar a fala foram usados.1,2

A reabilitação vocal por aprendizado da fala esofágica permanece como o método mais utilizado para recuperação da voz.1 A produção da fala sem laringe requer o estabelecimento de uma fonte vibratória alternativa na região faringoesofágica reconstruída, sendo que isto pode ser alcançado por técnicas de "shunt" esofágico ou por colocação de laringe artificial com um vibrador elétrico de fala faríngea externamente no pescoço.2

A punção traqueoesofagiana representa um grande avanço técnico para a restauração da voz no seguimento da laringectomia total, utilizando próteses vocais que comunicam a traquéia com o esôfago.3 O método da fala do "shunt" esofágico por meio de uma válvula de silicone traqueoesofágica foi mais bem desenvolvida após o surgimento da prótese de Blom-Singer em 1979.2

Comparando a fala esofágica com a voz da eletrolaringe, um alto número de pacientes apresentou melhores resultados vocais com as próteses.4 Segundo Hilgers, a prótese vocal de silicone mais usada é a PROVOXTM, que pode ser removida e recolocada pelo paciente, sendo trocada após o vencimento de sua validade.4

O mecanismo vibratório para a prótese vocal está localizado no esôfago cervical, sendo utilizado o ar dos pulmões e não o ar deglutido, como na voz esofágica.1

As complicações precoces pela inserção de próteses vocais incluem as celulites regionais, e as tardias são formação de granuloma, estenose do traqueostoma, dificuldade de deglutição, fístulas faringocutâneas e esofagotraqueais. A fístula esofagotraqueal é uma complicação que pode ocorrer em pacientes laringectomizados, principalmente naqueles previamente irradiados na região cérvico-facial, podendo estar relacionada também à colocação de prótese vocal pós-operatória.5

Os autores apresentam um caso de fístula esofagotraqueal em paciente laringectomizado e irradiado, como complicação pós-operatória de colocação de prótese vocal.

RELATO DE CASO

F.A.S., 73 anos, encanador, natural de Sergipe e procedente de São Paulo, tabagista de 20 cigarros por dia durante 50 anos, não-etilista, com história clínica de cardiopatia isquêmica prévia. Foi submetido em Fortaleza-CE, em janeiro de 2000, à laringectomia total por carcinoma epidermóide de laringe e em seguida a 20 sessões de radioterapia pós-operatória.

Após 1 ano (janeiro de 2001) foi colocada uma prótese fonatória do tipo Blom-Singer que não se ajustou pela formação de ampla fístula esofagotraqueal, cuja tentativa de fechamento foi ineficiente. Chegou ao nosso serviço em maio de 2001 com uma ampla fístula esofagotraqueal com cerca de 6cm de diâmetro (Figura 1). No mesmo mês foi submetido ao fechamento da fístula através da rotação de retalho dos músculos peitorais maiores e sutura dos mesmos sobre as bordas da fístula. (Figuras 2 e 3)

Após 15 dias do procedimento cirúrgico, apresentou sangramento de moderada quantidade pela traqueostomia sendo controlado através de endoscopia digestiva alta, que diagnosticou úlcera esofágica. Em junho de 2001 houve recidiva da fístula (+/- 2mm de diâmetro). O paciente foi mantido em tratamento clínico para doença do refluxo gastroesofágico com inibidor de bomba de prótons e controle rigoroso da dieta, porém após cerca de 1 mês de acompanhamento clínico, evidenciou-se aumento da fístula para cerca de 1,5cm de diâmetro. Foi então realizado outro procedimento cirúrgico para fechamento da fístula com recolocação do retalho do músculo peitoral maior sobre a rafia. Houve novamente recidiva da fístula e após 15 dias já se encontrava com cerca de 5cm de diâmetro.(Figura 4)

Em agosto de 2001 apresentou sangramento ativo perifístula por tecido de granulação, de moderada quantidade, sendo controlado com colocação de sonda orotraqueal nº 8 com "cuff" insuflado em traqueostoma para proteção de via aérea inferior. Novos métodos de reconstrução do trânsito alimentar não puderam ser utilizados pelas más condições locais e gerais do paciente. Em dezembro de 2001 o paciente foi a óbito por infarto agudo do miocárdio.


Figura 1. Fístula traqueoesofágica inicial (6cm de diâmetro).


Figura 2. Retalhos musculares pré-cirúrgico.


Figura 3. Resultado imediato após a primeira cirurgia para a correção da fístula.

Figura 4. Ampliação da fístula traqueoesofágica (5cm de diâmetro), 8o mês pós-operatório.


DISCUSSÃO

A reabilitação vocal após laringectomia total tem grande importância para os otorrinolaringologistas desde a primeira laringectomia total feita por Billroth em 1873, podendo esta reabilitação ser alcançada com sucesso utilizando vários métodos e, mais recentemente com as próteses vocais.2,4

O uso das próteses vocais está recomendado em todas as idades, sendo principalmente usada a PROVOXTM, já que esta pode permanecer "in situ" por um período de 6 meses, sem aumentar o risco de complicações, com uma adaptação fonatória mais rápida pelo paciente.1,3,7-9 Em 1982, Maves & Lingeman descreveram a colocação de próteses traqueoesofágicas, do tipo Blom-Singer durante a laringectomia total, com baixo índice de complicações e rápida aquisição da voz, chamadas de fístulas primárias, sendo que a colocação da prótese após a laringectomia total, fístulas secundárias, aumenta o tempo de aquisição da voz.6 Em nosso paciente foi usada uma prótese fonatória do tipo Blom-Singer, através de fístula secundária.

A reabilitação vocal primária tem muitas vantagens, já que na grande maioria dos pacientes, a restauração vocal pós-operatória ocorre tão rápido quanto o início da alimentação oral. Isto significa que o paciente pode deixar o hospital com uma voz social e usual, e com melhor ajuste psicológico. Entretanto, a influência da reabilitação vocal precoce na recuperação psicológica do paciente não está totalmente clara. Além disso, o uso da prótese vocal não contra-indica que o paciente aprenda a usar a voz esofágica.

A incidência de complicações em pacientes tratados com radioterapia pré-operatória tem sido relatada, existindo concordância geral que a radioterapia pré-operatória para carcinoma de células escamosas avançado de laringe aumenta os riscos de fístulas faringocutâneas e esofagotraqueais, complicações relacionadas à ferida operatória e ruptura da carótida.9 Nosso paciente apresentou uma fístula esofagotraqueal pós-laringectomia total por carcinoma epidermóide de laringe, com radioterapia pós-operatória.

A radioterapia é um agravante na formação de fístula esofagotraqueal após colocação de prótese vocal, pois causa degeneração actínica e fibrótica da região irradiada, tornando o controle da fístula difícil e aumentando o risco da piora progressiva do quadro, como em nosso caso.

As complicações que podem ocorrer incluem mediastinite, celulite cervical, abscesso cervical profundo, perfuração esofágica, pneumonia aspirativa, aspiração da prótese, fratura da coluna cervical e deteriorização da prótese por colonização fúngica, principalmente por Candida albicans.1-3,5,10 Outras complicações incluem necrose do trajeto traqueoesofágico, estenose do traqueostoma, dificuldade de deglutição e granuloma vocal.5 Como complicação tardia além da fístula, nosso paciente apresentou alargamento da fístula, transformando-se em um verdadeiro faringoesofagostoma, e sangramento ativo perifístula.

O fechamento cirúrgico é indicado nos casos de alargamento da fístula, ou quando todas as medidas não-cirúrgicas para a redução do tamanho da fístula falharam.11 O tratamento das fístulas traqueoesofágicas complicadas pós-laringectomias totais e pós-radioterapia inicialmente é realizado com o debridamento de tecido necrosado, seguido de fechamento da fístula com retalhos cervicais e da borda da fístula. Na falha deste tipo de tratamento e nos casos de ampliação da fístula, deve-se realizar grandes descolamentos de retalhos dos músculos peitorais e colocá-los sobre a região da fístula, levando assim um bom aporte sangüíneo, facilitando a cicatrização e fechamento da fístula.

Em nosso caso a fístula tornou-se progressivamente maior, até tornar-se um faringoesofagostoma, e refratária a todas as tentativas cirúrgicas de resolução do quadro, já que o paciente apresentava um mau estado geral. Devido ao tamanho do diâmetro da fístula (6cm), a abordagem terapêutica inicial foi o fechamento da fístula por rotação de retalho dos músculos peitorais maiores, com insucesso, pois o paciente apresentou um episódio hemorrágico perifístula e a fístula alargou-se ainda mais, sendo então recolocado um novo retalho muscular, também sem sucesso. Como o sangramento persistia foi colocada uma sonda orotraqueal 8 com "cuff" insuflado no local, para parar o sangramento e proteger a via aérea inferior. Antes que pudéssemos intervir novamente, após melhora das condições clínicas do paciente, ele foi a óbito por um infarto agudo do miocárdio.

CONCLUSÃO

A colocação de prótese vocal em pacientes irradiados é considerado procedimento de risco podendo levar a complicações, devendo ser consideradas as condições clínicas gerais e locais do paciente para se indicar a colocação de prótese vocal.

A incidência de complicações em pacientes submetidos à laringectomia total e radioterapia prévia é mais alta do que naqueles submetidos à radioterapia pós-operatória, segundo a literatura. Neste relato, demonstramos a ocorrência de fístula esofagotraqueal como complicação, de difícil resolução em paciente submetido à radioterapia pós-operatória com colocação de prótese vocal secundária, deixando-nos mais atentos e cuidadosos para a indicação de prótese vocal em pacientes laringectomizados e irradiados, pois a fístula realizada para a colocação da prótese pode tornar-se uma fístula complicada de difícil resolução.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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4. Hilgers FJM, Balm AJM. Long-term results of vocal rehabilitation after total laryngectomy with the low-resistance indwelling PROVOXTM voice prosthesis system. Clin Otolaryngol 1993; 18:517-23.

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11. Rosen A, Scher N, Panje WR. Surgical closure of persisting failed tracheoesophageal voice fistula. Ann Otol Rhinol Laryngol 1997; 106:775-8.

1 Diretor do Núcleo de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço de São Paulo.
2 Médico Assistente do Núcleo de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço de São Paulo.
3 Médicos Residentes do Núcleo de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço de São Paulo.
Trabalho realizado no Núcleo de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço de São Paulo.
Endereço para correspondência: José Antonio Pinto - Alameda dos Nhambiquaras, 159 Moema 04090-010 São Paulo SP.
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Artigo recebido em 15 de agosto de 2003. Artigo aceito em 16 de outubro de 2003.
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