Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:
Vol.68 ed.6 de Novembro - Dezembro em 2002 (da página 27 à 31)
Autor: CADERNO DE DEBATES (CD)
Entrevista
OTORRINOLARINGOLOGIA E CIRURGIA PLÁSTICA: ÁREAS LIMÍTROFES
ENTREVISTA com DR. JOSÉ EDUARDO DOLCI (JED)

Caderno de Debates - Como se relacionam as áreas de atuação dos profissionais especialistas em ORL e em Cirurgia Plástica, em termos de Cirurgia Plástica da Face?

José Eduardo Dolci - Antes vamos fazer um breve histórico sobre o assunto. Há muitas décadas, a Sociedade Americana de Otorrinolaringologia determinou como prática obrigatória na residência médica, de cinco anos, a inclusão de Cirurgia Plástica dentro da Especialidade de Otorrinolaringologia. Ou seja, os otorrinos seriam treinados para praticar a Cirurgia Plástica de orelha, nariz, e face . Estas são áreas de atuação da ORL, do ponto de vista funcional. Este conceito, de que o otorrino pode trabalhar na face do paciente como um todo, já vem de muito tempo. Em alguns países da América Central, que estão mais próximos da América do Norte, são os otorrinos que realizam a cirurgia plástica de face. De 20 anos para cá, a Otorrinolaringologia brasileira deu um salto neste sentido. Os médicos que fizeram residência nos ELZA, como João Maniglia, de Curitiba, passaram a incentivar esta prática no Brasil, já naquela época. Hoje, temos vários centros de ORL que ensinam a Cirurgia Plástica na face.

CD - O que parece mais lógico: que um especialista em Rinologia ou Otologia também realize a parte plástica de nariz e orelha, ou que apenas o profissional especializado em Cirurgia Plástica realize cirurgias desta natureza?

JED - Esta é uma boa comparação para deixar claro que o otorrino não realiza a Cirurgia Plástica porque é curioso. Ele é um profissional que está habilitado a fazer isso. Um ginecologista, por exemplo, que extraia um seio com câncer, também está apto a fazer uma cirurgia de reconstituição mamária. Isto é extremamente lógico. Cada profissional deve realizar a cirurgia plástica de sua Especialidade. Se partirmos deste princípio, muitos problemas pós operatórios deixarão de acontecer. Temos inúmeros exemplos que comprovam este argumento. A mídia, recentemente, divulgou o caso de uma paciente que se submeteu a uma lipoaspiração e teve o abdome perfurado. O cirurgião responsável pelo caso nem soube diagnosticar o quadro. Se ele fosse um cirurgião especialista em abdome, estaria apto a fazer isso. Por que um único especialista deve ser responsável pela Cirurgia Plástica, em todo o corpo? Se a Cirurgia Plástica for dividida por áreas de Especialidades, será possível obter muito mais sucesso.

CD - Poderíamos então dizer que a tendência mundial, é que cada especialista, faça a parte estética e funcional de sua área?

JED - Isto mesmo. A tendência mundial, hoje, é que cada especialista realize a Cirurgia Plástica de sua área. Ele está muito melhor treinado para isso. A SBORL tem trabalhado muito neste aspecto. Nossa Sociedade lutou muito para que na residência em Otorrinolaringologia, a partir do terceiro ano, o interessado já possa dar início à sua formação em Cirurgia Plástica da Face, e possa complementar esta formação estudando por um ou dois anos em Centros especializados. Esta é uma das metas da próxima diretoria da SBORL, criar um estágio de especialização, onde o residente que termina o terceiro ano possa se dedicar à Cirurgia Plástica, a uma cirurgia especifica. A idéia é criar o "fellow" em Centros específicos para cada Especialidade.

CD - A partir da vinda de otorrinos que se especializaram nos EUA, qual é o histórico da Cirurgia Plástica realizada por otorrinolaringologistas no Brasil, e o que temos hoje em termos de formação?

JED - Em décadas passadas, Dr. Roberto Neves Pinto, um rinologista do Rio de janeiro, realizava Rinosseptoplastias. Ele foi uma das pessoas que incentivou, e muito, o desenvolvimento da Cirurgia Plástica de Nariz. Tivemos um espaçamento de tempo muito grande entre eles e o trabalho realizado por João Maniglia. O grande boom da Cirurgia Plástica na Face realizada pelo otorrinolaringologista ocorreu nos anos 90. Tivemos uma participação muito importante do Dr. Perboyre Sampaio, ministrando cursos, juntamente comigo e com Ivo Bussolotti e Carlos Caropreso. Hoje no Brasil, temos quatro grandes centros em São Paulo que realizam Cirurgiá Plástica da Face: o Hospital das Clínicas, A Santa Casa de Misericórdia, o Hospital do Servidor Público Estadual e o Instituto Fellipu. Em Uberlândia, temos o grupo do Dr. José Antonio Patrocínio; em Curitiba, o Dr. Marcos Mocelin e João Maniglia; no Rio Grande do Sul, o Dr. Júlio Stedile; em Salvador, o Dr. Washington de Almeida, que é o presidente da Sociedade Brasileira de Rinologia e Plástica da Face. A idéia é implantar um núcleo em cada Centro, onde seja possível desenvolver Especialidades de Cirurgia Plástica. Temos cursos itinerantes de Cirurgia Plástica para otorrinolaringologistas, pelo país. São dois professores que ministram o curso em 2 ou 3 dias. E isso é patrocinado pela SBORL e Sociedade Brasileira de Rinologia e Plástica da Face. O projeto é que isto aconteça em praticamente todos os grandes Centros, e em várias áreas da ORL. Outra coisa importante que a SBORL vem realizando é a oferta de estágios para médicos que queiram passar por um aprendizado em trauma e cirurgia reconstrutiva da face. Em alguns Centros, como em Botucatu, São José do Rio Preto e Curitiba, existem professores que recebem alunos pelo período máximo de três meses, com bolsa subsidiada pela SBORL e Sociedade de Rinologia.

CD - Existe alguma limitação em relação à atuação do otorrinolaringologista como cirurgião plástico da face?

JED - Existe uma questão legal. Para alguns juízes, o único profissional capacitado a fazer Cirurgia Plástica da Face é o especialista em Cirurgia Plástica. É necessário criar uma jurisprudência sobre o assunto para que o juiz entenda que o otorrino também é habilitado para isso, desde que em seu currículo conste um mínimo de horas de aprendizado para Cirurgia Plástica da Face. Este é um dado importantíssimo, que certamente fará diferença num eventual julgamento. O otorrino precisa mostrar que está habilitado a exercer a função. A garantia de que não haverá problema na cirurgia realizada pelo otorrino é a competência necessária e o treinamento adequado para tal. Ocorre que, no Brasil, ainda se acredita, que apenas o cirurgião plástico está habilitado a fazer uma cirurgia de nariz, por exemplo. Se errar, o perdão é mais fácil. Existem casos em que o aspecto estético fica perfeito, mas o paciente passa a não respirar mais pelo nariz. Então, quem deve operar o nariz? Aquele que estiver habilitado. Seja otorrino, seja cirurgião plástico. Quanto maior o número de profissionais habilitados e competentes para realizar um ótimo trabalho, melhor. Não há disputa por competências.

CD - Podemos dizer que a fronteira entre o aspecto funcional e o aspecto estético é muito tênue no trabalho de cirurgia plástica?

JED - Na verdade, quando falamos em cirurgia plástica, a questão funcional está atrelada. Se eu realizar uma cirurgia de pálpebras por excesso de pele e remover mais do que o necessário, o paciente vai ter problemas funcionais. O mesmo com uma cirurgia no nariz. Não podemos desvincular a função do órgão da parte estética. As duas coisas estão extremamente ligadas. Por isso, acho fundamental que o profissional saiba fazer as duas coisas. É muito dificil que um cirurgião plástico conheça todas as áreas. A tendência é que, cada vez mais, haja a especialização e que através dela se trabalhe com a parte funcional e com a .estética. É a grande tendência mundial.

CD - A Cirurgia Plástica não está prevista na grande parte dos planos de saúde e convênios médicos. Isto é um incentivo a mais ou prejudica o campo de trabalho?

JED - Este é um assunto delicado que não deve ser evitado. Eu imagino que o fato da Cirurgia Plástica da Face, assim como a Traumatologia da Face, não serem abordadas ou cobertas pelos planos de saúde, torne se um atrativo a mais. Desde a implantação do Plano Real, há 8 anos, os médicos não recebem um centavo de aumento do CH coeficiente de honorários. A grande maioria dos convênios médicos ainda paga 23 ou 24 reais, por consulta, o valor de 1984. Então, eu acho que a não cobertura da Cirurgia Plástica por planos de saúde e convênios médicos é um atrativo muito grande para a área de ORL. O que eu advogo, o que eu preconizo, é que este seja um campo, o da Cirurgia Plástica, onde o otorrino esteja lutando para atu ar. A nossa visão é de que a cirurgia funcional e a cirurgia estética sejam realizadas por um único profissional capacitado e habilitado, e não apenas por que esta atividade tenha um referendo a mais em termos financeiros.

CD - Existe alguma perspectiva de que a lei que regulamenta a prática de Cirurgia Plástica no Brasil seja revista?

JED - Hoje, existe uma discussão legal, junto ao Conselho Federal de Medicina, para que seja revogada uma portaria, que a meu ver, é muito infeliz pois preconiza que um único profissional faça todas as cirurgias plásticas do corpo. A AMB se propõe a discutir junto aos conselheiros do Conselho Federal de Medicina a revogação desta portaria, porque ela vai contra o princípio básico do médico, de que ele possa exercer a Medicina em todas as áreas, desde que seja habilitado para isso. Existe uma perspectiva para que essa portaria seja revogada, até mesmo porque o Presidente do CFM, o Dr. Edson Bastos, em conversa com membros da SBORL, se prontificou a ser o mediador junto a estes conselheiros. Quero sempre deixar bem claro, que não existe, por parte dos otorrinos, assim como em outras áreas, nenhuma guerra com os cirurgiões plásticos. Acredito que com conversa e com bom senso, chegaremos a um denominador comum. Há espaço para todos. O bom profissional não tem o que temer.

DR. JOSÉ EDUARDO DOLCI - PROFESSOR ADJUNTO DO DEPTO DE ORL DA SANTA CASA DE SÃO PAULO.MESTRE E DOUTOR PELA UNIFESP ESCOLA PAULISTA DE MEDICINA
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