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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:
Vol.68 ed.5 de Setembro - Outubro em 2002 (da página 03 à 11)
Autor: Dr. Domingos Tsuji (DT)
Entrevista
ENTREVISTA com Dr. Nédio Steffen (NS)
DT - Dr. Nédio, nós temos vivido nos últimos anos um grande avanço na laringologia mundial e nacional. A que você atribui este desenvolvimento? Quais são, na sua opinião, os fatores responsáveis?
NS - No final dos anos 80, com o uso de fibras ópticas, iniciou se uma nova era. A década de 90 notabilizou se pela popularização da videodocumentação das imagens obtidas com estas ópticas rígidas, e flexíveis, anguladas e de contato, propiciando uma rápida troca de informações. Universalizou se o conceito de Hirano de "corpo/cobertura", pela prática da estroboscopia. Passamos para a era da interação entre o "ver" e o "ouvir"; evoluímos do diagnóstico anátomotopográfico para o fisiopatológico. Chegamos à fonoscopia. Também o aprimoramento da tecnologia Laser, associado ao de diagnóstico, permitiu avanços no tratamento conservador do câncer glótico. A videokimolaringografia (1996) consolidou os conhecimentos do ciclo vibratório. Este avanço tecnológico, associado à videodocumentação, permitiu a discussão e trocas de informações entre os profissionais da voz, e, a meu juízo, foram os grandes fatores responsáveis pelo aprimoramento e desenvolvimento da laringologia.
DT - Entre esses fatores, você considera o estroboscópio essencial para a prática da laringologia?
NS - Apesar ele considerar o estroboscópio como o mais útil dos instrumentos no diagnóstico das disfonias, não o considero "essencial" na prática laringológica diária. O uso da estroboscopia permite entender melhor os achados laringoscópicos tradicionais.
DT - Do ponto de vista da fonocirurgia, como era sua prática há 15 anos e como isso mudou até os dias atuais?
NS - O conceito de Fonocirurgia, como a "cirurgia para melhorar ou restabelecer a voz", introduzido por Von Leden muitos anos antes, restringia se à Microcirurgia de Laringe para lesões de cobertura que se projetavam para o espaço glótico, especialfente os nódulos, alguns cistos mucosos, pólipos, granulomas, papilomas e edema de Reinke. Este último, ainda sob a forma de decorticação, ignorando se os preceitos de ondulação mucosa. As alterações estruturais mínimas não faziam parte da rotina diagnóstica. Hoje, com um material de microcrocirugia mais sofisticado e com melhores conhecimentos fisiopatológicos, a Microcirurgia Endolaríngea tornou se mais efetiva. As cirurgias do arcabouço laríngeo, as Tireoplastias, publicadas por Isshiki desde 1976, tiveram popularização no final da década de 1980, graças aos cursos da Academia Norte Americana. Nossa iniciação nestas técnicas se fez em 1990 e hoje fazem parte do arsenal fonocirúrgico. Quanto ao restabelecimento da voz, para laringectomizados, as cirurgias que praticávamos eram as laringectomias totais reconstrutivas de Staffieri e a reconstrução em dois tempos pela técnica de Azai.
Em 18 de outubro de 1982, colocavamos a primeira prótese fonatória, do tipo Blom Singer (duckbill). Iniciávamos a era das próteses fonatórias.
DT - Um dos avanços mais contundentes, além de todo desenvolvimento na área da microcirurgia de laringe, foi, como você citou, as cirurgias do arcabouço laríngeo, ou, tireoplastias. Antes dessa "era", como você tratava, por exemplo, a disfonia na paralisia unilateral de prega vocal? E agora, como mudou?
NS - A disfonia, moderada ou severa, devido à paralisia de prega vocal (PPV), para nós, até 1990, era tratada quase que exclusivamente por Injeção Intracordal de Teflon, com a pistola de Arnold Brüning. A prática de fonoterapia não era tão difundida como nos dias atuais, embora o Rio Grande do Sul tenha sido o pioneiro em Curso de Fonoaudiologia, e era indicada para alguns casos de disfonia leve. Hoje, os pacientes com disfonia por paralisia unilateral de prega vocal são tratados ou com fonoterapia, ou com medialização por Tireoplastia do tipo I de Isshiki, com ou sem rotação de aritenóide, ou por Injeção Intracordal de Teflon. A tireoplastia do tipo I é uma excelente técnica.
DT - Você considera realmente que a tireoplàstia tipo I é melhor, em termos de resultado, do que, por exemplo, a injeção de teflon, gordura etc.?
NS - Sim. Considero a Tireoplastia tipo I superior à Injeção de Teflon ou de outras substâncias, por várias razões. A medialização com Teflon é uma técnica eficiente e tem ainda hoje suas indicações. Gosto muito dela é a utilizo com freqüência, em casos selecionados de (PPV). Vejo a especialmente indicada em casos de prognóstico etiológico reservado, estado geral debilitado, co morbidade, reduzida expectativa de vida e a vontade do paciente, entre outros fatores. E uma técnica simples e rápida. Quanto à competência glótica, a mesma restaura se de maneira admirável; entretanto, a qualidade vocal nem sempre é a ideal, devido ao efeito peso e, principalmente, pelo fato de não termos o domínio da direção que tomará o teflon na intimidade do músculo tireoaritenóideo, sem falar nas eventuais complicações, como o granuloma e a migração. Em levantamento que efetuamos, entre 1990 e 2000, comparamos grupos de pacientes portadores de PPV que foram tratados cirurgicamente por ambas as técnicas (Teion 25 e Tireoplasda 20 ). A competência glótica foi obtida, sem que uma técnica se mostrasse superior à outra.
Quanto à gordura, sua indicação é para casos com expectativa de retorno à função, uma vez que haverá absorção; é de indicação de medialização cirúrgica temporária. Já a Tireoplastia tipo I, esta sim, não atuando diretamente sobre a mucosa da prega vocal, tem um resultado superior no que tange à qualidade vocal. E mais, é uma técnica que pode ser indicada de imediato ao diagnóstico de PPV, pois mesmo que a prega vocal retorne à mobilidade, não haverá nenhum impacto prejudicial à voz. Esta indicação cirúrgica imediata, sem aguardar resultado de fonoterapia, é restrita a pacientes com "gap" glótico muito acentuado e com tempos máximos de fonação muito curtos, e que, clinicamente, se apresentam com voz extremamente soprosa. É bom lembrar que outros sintomas, como a disfagia, a tosse aspirativa, a necessidade de limpar constantemente a garganta, a astenia, e mesmo a aspiração laringotraqueal, ocorrem na PPV e, por vezes, são mais expressivos e significativos do que a disfonia. Veja, Domingos, que, nessas circunstâncias, não se tem por que esperar: A Tireoplastia tipo I é perfeita para ser indicada.
DT - Você provavelmente é uma das pessoas que mais experiência tem com a tireoplastia tipo III. Você poderia explicar o que vem a ser esta cirurgia?
NS - Na Tireoplastia do tipo III, Isshiki propõe um relaxamento das pregas vocais (PPVV), por meio da remoção de franjas verticais de cartilagem tireóidea, uni ou bilateralmente, projetando assim, posteriormente, a comissura anterior. Em 1985, Tucker publicou uma variante desta técnica, sepultando a comissura anterior. Em ambas, obtém se o relaxamento das PPVV, o que determina uma voz mais grave. No linguajar gaúcho, mais grossa!!!
DT - Eu entendi que é uma cirurgia feita para diminuir a freqüência fundamental da voz. Quais são as condições que geram essa situação?
NS - Sim. A Tireoplastia do tipo IIl serve para tornar a voz do indivíduo mais grave. As condições clínicas que levam os homens a apresentarem voz muito aguda (segun do os pacientes "muito fina") são diversas. A mais freqüente é a puberfonia (falsete mutacional) e suas variantes de distúrbios da maturação. Ocorre em adultos e jovens que não fizeram a muda vocal de forma adequada. Também observamos em pacientes com alterações na configuração anatômica do estojo cartilagíneo laríngeo: laringes mais elevadas e com ângulo obtuso entre as lâminas das cartilagens tireóideas. Em nenhum destes casos encontramos alterações hormonais. Igualmente, podemos encontrar freqüência fundamental (FO) elevada em pacientes com distúrbios neurológicos de origem central. Encontramos, ainda, casos de "sulcus vocalis", nos quais a predominância pejorativa na qualidade vocal é a voz com freqüência fundamental muito elevada. Nestes casos, o "pitch" agudo é mais forte; na percepção psicoacústica, do que a aspereza, a tensão e a soprosidade. Esta sensação negativa ao nosso ouvido exacerba se na conversa ao telefone. O falseto paralítico é outra condição clínica (de difícil tratamento), que tem freqüência fundamental elevada.
DT - Nesses casos, em que momento você indica esta cirurgia para o paciente. Ele veio ao consultório, você nota que se trata de falsete mutacional ou muda incompleta e já indica a cirurgia ou realiza algum outro tratamento antes.
NS - Os casos que nos são encaminhados, são de pacientes que já se submeteram a tratamento fonoterápico de longa data, mais de dois anos, e que não obtiveram sucesso. Infelizmente, estes casos, muito embora raros, existem. São chamados de "refratários" a tratamento clínico e estão descritos na literatura. Antes de operá los, os mesmos são submetidos a provas terapêuticas de manipulação externa (Teste de Brodnitz) e fonoterápicas. A muda incompleta é de fácil e rápido tratamento fonoterápico. O bloqueio anestésico dos músculos cricotireóide, quando beneficia o rebaixamento do "pitch", pode ser seguido de in filtração com Botox e tratamento fonoterápico, intensivo. Se, assim mesmo, houver recidiva da voz aguda, indicamos tratamento cirúrgico com Tireoplastia do tipo III.
DT - Como tem sido esses resultados? Qual o grau de satisfação do paciente? Pouco, moderada ou muito?
NS - Nossa experiência data de 199$, quando apresentaínos, em Salvador Ba - no Congresso Latino Europeu de ORL e VCongresso Norte Nordeste de ORL, os nossos primeiros 3 casos. Hoje, temos 11 casos de Tireoplastia tipo III, assim distribuídos: 2 Sulcus Vocalis; 1 Distrofia Neuromuscular Hereditária, 1 pós Radioterapia com sinéquia anterior em Carcinoma glótico, 1 Falseto Paralítico, 2 Falsetos Mutacionais, e os demais, em número de 4 Distúrbios da Maturação. Quanto aos resultados, foram nulos em dois casos. No do carcinoma glótico irradiado e com sinéquia anterior e em um dos casos de sulcus vocalis. No outro caso de Sulcus vocalis, houve melhora, com satisfação do paciente, pois deixou de ser confundido com mulher, ao telefone, o que, conforme seu relato verbal gravado, há mais de 39 anos não acontecia. No caso da Distrofia Neuromuscular, houve uma queda acentuadíssima da FO, ficando o paciente com uma voz crepitante (voz em fry), pois além de termos atuado na cartilagem, o paciente desejava uma voz mais grave e, então, seccionamos os músculos CT. Nos demais casos, obtivemos os nossos melhores resultados, com vozes muito boas e foram os mais gratificantes. Especialmente nos casos de puberfonia, a qualidade vocal é excelente. A voz fica maravilhosa e a satisfação do paciente, da família e de todos nós da equipe cirúrgica, chega ser contagiante e emocionante. Poucas cirurgias gratificam tanto.
DT - Você poderia exemplificar falando sobre algum caso interessante que você vivenciou?
NS - Cada um destes pacientes tinham uma da comissura anterior, história peculiar e uma razão muito forte para não gostarem de suas vozes e quererem , mudá la. Lembro me de várias. Em comum, todos sentiam se marcados por constrangimentos e humilhações diárias eram motivo de chacota e senti am se envergonhados. Alguns, mais tímidos, até mesmo com dificuldade nos relacionamentos inter pessoais, sem coragem para partirem para um relacionamento amoroso. Meses depois da cirurgia, orgulhosos, falavam de seus namoros. Dois pacientes suspenderam o curso universitário, por vergonha dos colegas. Um deles, aos 21 anos, passou por uma difícil experiência: enquanto apresentava trabalho para os colegas, foi motivo de risadas e gargalhadas. O rapaz deixou a sala, abandonou o curso e tranco-se no seu quarto por vários meses, em profunda depressão. Não falava com estranhos e, receoso de se expressar em público, ficou totalmente dependente dos pais para sair. No quarto dia de pós operatório, com uma voz firme e adaptada, voltou à universidade. Segundo os pais, o estado emocional melhorou e houve um giro de 180 graus na vida do jovem.
DT - Você teve algum paciente que melhorou na hora da cirurgia, mas que ao acordar voltou a apresentar os padrões vocais anteriores?
NS - Logo após, ao acordar da sedação anestésica, não tive nenhum caso. Entretanto, um paciente com distúrbio da maturação, 23 anos, 1 m e 88 cm, no 3° pós-operatório, começou a claudicar. Entramos com fonoterapia imediata e intensivamente e, com mais "uns joelhaços da namorada", o rapaz aprumou se!!!
DT - Você teve algum paciente que se arrependeu de ter feito essa cirurgia? Ou seja, que não se identificou com a nova voz?
NS - Felizmente, não tivemos nenhum caso. Costumo avisar no pré operatório que, na fase de pós cirurgia, haverá necessidade de uma adaptação, identificação e aceitação da "nova voz". Em casos onde há maneirismos e trejeitos associados à voz aguda, o fonoaudiólogo é chamado a intervir no pós operatório,imediato. Isto já fica estabelecido no pré operatório.
DT - Essa cirurgia é difícil? Você já teve alguma complicação ou resultado indesejável?
NS - Não diria que seja difícil. Há necessidade de ter se o cuidado de não remover cartilagem em demasia, pois estreitas porções de cartilagem removidas podem baixar drasticamente o "pitch". É preferível ser parcimonioso e ir testando. Há variação, também, conforme o tipo do ângulo, na junção anterior entre as lâminas tireóideas.Arcabouço cartilagíneo obtuso exige retiradas maiores e cartilagens ossificadas dão mais trabalho. Não tivemos nenhuma complicação. Quanto aos resultados, já falamos anteriormente
DT - E em relação aos pacientes que desejam afinar a voz. Você tem alguma experiência? Como você os tratou?
NS - A cirurgia para tornar a voz mais aguda, mais "fina" e mais feminina, no caso de transexualidade masculina feminina, é possível ser obtida de diferentes formas: a técnica de Tireoplastia de Isshiki tipo IV aumenta o "pitch" pela aproximação cricotireóidea; as técnicas de LeJeune (1983) e Tucker (1985), com avançamento pediculado da comissura anterior, aumenta a tensão das pregas vocais. Há ainda a possibilidade de obtermos uma voz mais feminina encurtando as pregas vocais ou diminuindo a massa do músculo tireoaritenóideo, por meio da vaporização com Laser. A nossa experiência é, até agora, de apenas um caso. Como o(a) paciente (com nome feminino judicialmente autorizado) já havia sido submetido(a) à cirurgia estética para diminuir a proeminência laríngea, ficaram inviabilizadas as técnicas de avançamento com pedículo. Realizamos, então, a combinação de aproximação cricotireóidea e encurtamento das pregas vocais. O resultado imediato (4 meses) foi muito bom, conse guindo se uma voz muito feminina; entretanto, é muito pouco tempo para sabermos os resultados a longo prazo.
DT - Como um colega deveria agir para aprender essas cirurgias. Você poderia passar a sua experiência nesse sentido?
NS - Acredito que a curva de aprendizado será mais rápida, se a iniciação se der em laringes excisadas, com observação direta dos fenômenos mecânicos e mioelásticos que ocorrem na endolaringe. A observação simultânea com endoscópios e a videodocumentação facilitam o domínio da técnica. Foi assim que iniciamos.
DT - Nédio muito obrigado. Acredito que muitos colegas serão beneficiados com sua dicas.
NS - Obrigado, digo eu. Sinto me profundamente honrado pela distinção em ser entrevistado por um colega de renome internacional e de relevantes servidos prestados à laringologia. Especialmente sendo você, Domingos, autor, em companhia do Prof. Isshiki e outros, do livro Tireoplastias.
DR. DOMINGOS TSUJI - OTORRINOLARINGOLOGISTA, PROFESSOR COLABORADOR DA DISCIPLINA DE OTORRINOLARINGOLOGIA DA FMUSP DOUTOR EM OTORRINOLARINGOLOGIA PELA FMUSP
DR. NÉDIO STEFFEN - PROFESSOR DA DISCIPLINA DE OTORRINOLARINGOLOGIA DO DEPARTAMENTO DE CIRURGIA DA FACULDADE DE MEDICINA DA PUCRS - PORTO ALEGRE. MESTRE PELA PUCRS - EX-PRESIDENTE DA SOCIEDADE BRASILEIRA DE LARINGOLOGIA E VOZ 1997 1999.