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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:
Vol.68 ed.5 de Setembro-Outubro em 2002 (da página 20 à 23)
Autor: Evaristo Kuhnen
Diretrizes
Frente a acusações de má-prática profissional imputadas a médicos residentes, uma das questões freqüentemente suscitadas diz respeito à responsabilidade do seu preceptor nas conseqüências do ato.
Para compreensão do tema é necessário, primeiramente, precisar quem é o médico residente e o seu preceptor.
E a resposta pode ser obtida do Decreto n.° 80.281, de 05 de setembro de 1977, que regulamentou a Residência Médica e criou a Comissão Nacional de Residência Médica - CNRM.
Referido Decreto estabelece, em seu art. 1°: "A Residência em Medicina constitui modalidade do ensino de pós-graduação destinada a médicos sob a forma de curso de especialização, caracterizada por treinamento em serviço em regime de dedicação exclusiva, funcionando em Instituições de saúde, universitárias ou não, sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional." Logo, a residência médica constitui-se de curso de aprimoramento profissional, destinado a médicos, isto é, de profissionais legalmente habilitados ao exercício da medicina em virtude dos diplomas que lhes foram conferidos pelas Faculdades de Medicina oficiais ou reconhecidas do país e que se acham inscritos nos Conselhos Regionais de Medicina que jurisdicionarem a área de sua atividade profissional, nos termos do art. 1° do Regulamento aprovado pelo Decreto 44.045/58.
O médico residente não é, pois, mero aspirante ao exercício da Medicina. Já é médico, com direito ao pleno exercício do ato médico.
Assim, também, o preceptor do médico residente: deve ele ser médico, nos termos do Decreto 80.281/77 antes apontado.
Portanto, pode-se estabelecer, como conclusão primeira, que, sendo ambos - o residente e seu preceptor - médicos com direito ao pleno exercício profissional, a eles aplicam-se, também, todas as disposições de ordem civil, penal e ética aos quais estão submetidos todos os profissionais da Medicina.
Como conseqüência, tem-se que sendo imputado ao médico residente a prática de um erro médico, responderá ele por tal ato como qualquer outro profissional da Medicina, na medida em que houver concorrido com culpa ou dolo para seu surgimento.
Já no que respeita à responsabilidade do mestre ou preceptor pelo erro do médico residente, pode-se vislumbrar duas distintas hipóteses:
1ª hipótese: O erro médico é decorrência de ato omissivo ou comissivo no qual concorrem o médico residente e seu preceptor.
É sabido que, ordinariamente, o processo ensino-aprendizagem do médico residente se faz acompanhado da prestação de serviços médicos a terceiros, aproveitando-se os recursos humanos disponíveis em tal processo para atender, principalmente, às populações menos assistidas pelos sistemas públicos e privados de saúde.
A hipótese ora aventada considera a possibilidade do erro médico decorrer de serviços médicos prestados conjuntamente pelo médico residente e seu preceptor.
Nesta hipótese a responsabilidade civil pelos danos decorrentes da má-prática profissional será compartilhada entre o médico residente e seu preceptor, na medida que houverem concorrido com culpa ou dolo para o seu surgimento.
Aplicar-se-á ao caso, ainda, a regra da solidariedade dos fornecedores na reparação dos danos causados aos consumidores. Tal regra está consignada no código de defesa do consumidor, norma protetiva que inclui a relação médico-paciente nas relações de consumo por ela disciplinadas.
Já no que respeita às responsabilidades éticas e penais, tanto o médico residente quanto o seu preceptor poderão sofrer sanções na medida em que suas condutas puderem ser tipificadas com transgressões a preceitos ético-disciplinares e/ou criminais.
É este entendimento que exsurge claro de parecer do Conselho Federal de Medicina proferido Processo-Consulta CFM N° 3.426/2001 PC/CFM/N° 13/2002, relatado pelo Conselheiro Silo Tadeu Silveira de Holanda Cavalcanti, cuja ementa tem a seguinte redação:
"A relação entre o médico residente e seu preceptor deve ser respeitosa, exigindo qualidade ética e profissional do preceptor no exercício de sua atividade, que tem responsabilidade compartida com o residente, na prática do ato médico durante o treinamento do PRM."
Merece ser considerado aqui que tanto os tribunais judiciais quanto os conselhos de ética tendem a apenar mais severamente o médico preceptor que o residente, ante a diferença de grau de responsabilidade entre ambos.
A existência de graduação na responsabilidade entre o preceptor e o médico residente se revela, por exemplo, de um julgado muito recente do Superior Tribunal de justiça, cujo relator foi o Min. Ruy Rosado, com o seguinte teor:
RESPONSABILIDADE CIVIL. Médico. Médico-residente. Acórdão. Falta de fundamentação. Embargos de declaração. Suficiente fundamentação do acórdão que estabeleceu a relação causal entre a atividade dos réus e o resultado morte da paciente. Responsabilização do médico-residente pelos atos que estava habilitado a praticarem razão de sua graduação. Diferença do grau de responsabilidade entre a dos residentes e a do médico orientador, que não se leva em conta porque já fixada a condenação no mínimo. Embargos de declaração rejeitados, com aplicação de multa. Recurso especial não conhecido. (RESP 3162 83/PA, publicado no DJ do dia 18.03.2002)
2.ª hipótese: O erro médico ocorre por ato omissivo ou comissivo só do médico residente, dentro do processo ensino-apredizagem. Lembrando que, ordinariamente, o processo ensino-aprendizagem do médico residente se faz acompanhado da prestação de serviços médicos a terceiros, a hipótese considera a possibilidade de que tal prestação de serviços tenha sido levada a efeito só pelo médico residente, sem a supervisão do seu preceptor. E mais: que desta prestação de serviços tenha surgido queixa de má prática profissional. Neste caso o médico preceptor responderá pelo ato do seu discípulo na medida da sua culpa "in vigilando", isto é, no seu dever de vigiar o residente nas condutas médicas que este tomar.
De fato, como se extrai do estatuto básico da Residência médica no Brasil (Decreto n.° 80.281, de 05 de setembro de 1977), a Residência em Medicina constitui modalidade do ensino de pós-graduação sob a orientação de profissionais médicos de elevada qualificação ética e profissional.
Assim, o profissional médico que assume a responsabilidade da preceptoria de um médico residente obriga-se por orientá-lo no seu proceder médico. Daí decorre, indubitavelmente, também o dever de vigiar, fiscalizar, controlar sua conduta.
Este dever de vigiar encontra eco, ainda, em outras normas, como os artigos 19, 31, 85 e 107 do Código de Ética médica, que prescrevem:
Art. 19 - "O médico deve ter, para com os seus colegas, respeito, consideração e solidariedade, sem, todavia, eximir-se de denunciar atos que contrariem os postulados éticos à Comissão de Ética da instituição em que exerce seu trabalho profissional e, se necessário, ao Conselho Regional de Medicina".
Art. 31 - "Deixar de assumir responsabilidades sobre procedimento médico que indicou ou do qual participou, mesmo quando vários médicos tenham assistido o paciente".
Art. 85 - "Utilizar-se de sua posição hierárquica para impedir que seus subordinados atuem dentro dos princípios éticos".
Art. 107 - "Deixar de orientar seus auxiliares e de zelar para que respeitem o segredo profissional a que estão obrigados por lei".
Muito ilustrativo aqui um julgado do Tribunal de justiça do Rio Grande do Sul que inacolheu pedido para que determinado médico preceptor fosse incluído entre as partes de um processo - a chamada denunciação à lide-, pois entendeu que o erro do medico residente se deu em ato cirúrgico para o qual o seu preceptor não fora convocado a comparecer:
Responsabilidade dos médicos preceptores por omissão - Ausentes da sala de cirurgia. Denunciação da lide. Divergência entre os juízes componentes de câmara cível especial. Prova da atribuída responsabilidade aos médicos preceptores, denunciados à lide. Dever têm, sob pena de responsabilidade, os médicos preceptores, ou orientadores dos médicos residentes, em acompanhar passo a passo as atividades inerentes por eles desenvolvidas durante o aprendizado. Em caso de cirurgias, presentes se devem fazer para orientar e supervisionar, evitando eventuais erros possam pelos residentes ser cometidos. Para tanto, previamente cientificados devem ser os médicos preceptores ou orientadores, eis que responsabilidade por omissão não se lhes pode pretender atribuir, se ciência não lhes tenha sido dado do ato cirúrgico que viria a ser praticado. Responsabilidade do hospital e do médico-residente que realizou a cirurgia. Afastada a denunciação da lide dos médicos preceptores. (Embargos Infringentes n° 70002326569, terceiro grupo de câmaras cíveis, tribunal de justiça do RS. relator: Des. Osvaldo Stefanello, julgado em 23/11/01)
Evaristo Kuhnen - Advogado Assessor do Departamento de Defesa Profissional da SBORL