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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:
Vol.68 ed.2 de Março-Abril em 2002 (da página 20 à 27)
Autor: DR. HUMBERTO GUIMARÃES
Entrevista
DR. HUMBERTO GUIMARÃES (HG)
ENTREVISTA
DR. HÉLIO LESSA (HL)
HG - Qual o conceito sobre otite média e qual a classificação que você usa quando lida com um paciente de otite média?
HL - Considero otite média o processo inflamatório da fenda timpânica, no conceito mais amplo, anatomofisiológico, de qualquer alteração que ocorra no nível da caixa do tímpano em decorrência de disfunção da trompa de Eustáquio e do funcionamento inadequado da apófise mastóidea. Quando falamos de otite média crônica entendemos que não se caracteriza pela duração do processo. Na conceituação de Schwanban são aquelas alterações que ocorrem no revestimento do corpo mucoso desta fenda timpânica na caixa do tímpano propriamente dita.
HG - Sabemos que a otite ocorre desde recém-nascidos até pessoas idosas. Gostaria que você falasse de sua experiência nas otites conhecidas como otite média latente do lactente.
HL - Este processo era comum, nas décadas de 60 e 70, quando fiz residência na Santa Casa, nos prematuros de baixo peso e desnutridos. O que nos preocupava nesses pacientes é que observávamos uma otoscopia normal. Era, na época, premente a necessidade de tratamento dessas otites com o uso de paracentese. Não dispúnhamos ainda do grande arsenal terapêutico que hoje temos e que se diminuísse a incidência de indicações de paracentese. Esses pacientes com otoscopia normal eram levados a fazer uma paracentese do tímpano, uma miringotomia. Após essa aplicação, observa-se que os pacientes passavam a eliminar uma secreção mucóide espessa e, a partir daí, a condição de equilíbrio desse paciente, no sentido de seu quadro gastroentérico se revertia completamente. O problema da otite média aguda latente do lactente é um diagnóstico que não encontramos na literatura médica atual. Hoje, o nosso paciente pediátrico, prematuro de peso e idade, tem uma assistência por parte do neonatologista de melhor qualidade e temos uma antibióticoterapia adequada. Aquele pneumococo mucoso, que era responsável por esta patologia, praticamente desapareceu. Na clínica privada, esta patologia também não é mais encontrada. Este é um diagnóstico do qual se ouve falar nas reuniões, nos congressos médicos, mas ao se consultar a literatura atual, não se encontram mais ocorrências.
HG - Hoje sabemos que quase 100% das prematuras e desnutridas crianças sofrem de refluxo gastro-intestinal e problemas imunológicos. Até que ponto o refluxo e os problemas imunológicos influenciariam essas crianças? Gostaria também de fazer uma ressalva: não sei se a bactéria que provocava o quadro de otite era o pneumococo. Eu pensaria em outras formas de infecção, por estafilococo, por exemplo.
HL - Hoje se sabe que o recém-nascido, mesmo os que não são prematuros, por uma condição própria de desenvolvimento, imunologicamente têm suas vias aéreas despreparadas para o processo de infecção. Esta é a razão pela qual a amamentação destas crianças deve ser estimulada por um período mínimo de seis meses, o que nem sempre se consegue. Estas crianças passam a receber o protetor de suas vias aéreas, que é a IgA secretora, transmitida através do leite materno. Gradativamente o recém-nascido vai adquirindo suas próprias defesas, que só se tornam qualificadas aos quatro anos de idade, quando a IgA secretora já alcançou níveis satisfatórios e, principalmente dos oito aos 12 anos de idade, quando teremos uma nova faixa nesses pacientes em que esta condição imunológica praticamente se equilibra e o indivíduo passa a ter as resistências naturais de um adulto. Hoje os pacientes prematuros/desnutridos estão aos cuidados dos neonatologistas, especialidade que se firmou nos últimos 20 anos, e o aporte a estes pacientes, quando do tratamento destas infecções, mudou completamente. Quanto ao conhecimento do refluxo gasoesofágico destes pacientes como geradores de irritação na rinofaringe, possibilitando desenvolvimento de infecções nesta área e, conseqüentemente, envolvendo a trompa de Eustáquio, sabemos que o refluxo gasoesofágico, principalmente nos casos de otites médias agudas recidivantes, é uma coisa que deve ser pesquisada e deve ser olhada com responsabilidade como uma causadora do processo inflamatório da rinofaringe, levando a um quadro de otite.
Quanto à predominância de infecções por pneumococo, partimos de um aspecto muito prático: a rinofaringe é a casa do pneumococo. É óbvio que outros germes aí se encontram porque o nosso pequeno paciente, imunologicamente despreparado, está em contato com uma população adulta e as infecções que se associam por hemófilos influenza, estreptococos, estafilococos, por moraxela catarralis, que hoje é trazido nas estatísticas mundiais como um elemento causador de otite média aguda numa incidência muito alta, e o pneumococo mucoso era o responsável maior. Sabemos, inclusive que em crianças abaixo de um ano de idade, a clamídea é um patógeno que deve ser levado em consideração e, até os dois anos, o hemófilos influenza.
HG - Partimos da otite média do lactente e já estamos na otite de repetição. Você disse que valoriza o refluxo gástrico, mas nos pacientes com otite média de repetição, penso, sobretudo, na terapia antibacteriana. Não existe uma adesão da mãe nem do pequeno paciente em tomar o antibiótico em dose certa. Eu avalio isso muito bem. E desde que se tenha uma terapêutica antibiótica adequada, daquelas bactérias mais comuns que você já citou e, esta criança continua a apresentar otite média de repetição, a gente pensa naqueles seis meses de amamentação. Hoje já se admite que há mães que não têm IgA, e são essas crianças que, apesar de amamentadas no tempo correto, apresentam o problema. Queria chamar a atenção para a pesquisa de fatores imunológicos. Tenho visto crianças com alteração de IgA, de IgG e de complemento, trazendo síndromes de imunodeficiência importantes no desenvolvimento. Hoje, é importante que se frise, que nos casos de crianças que apresentam quadro de hipotireoidismos, pode-se fazer uma pesquisa imunológica e pode-se ter certeza de que vão encontrar alterações imunológicas sérias, propiciando a manutenção daquelas infecções das vias aéreas superiores.
Outro fator que precisa ser levado em conta são as condições de vida desta criança na creche, em casa, muitas vezes em contato com pais fumantes, os estados alérgicos destes pacientes. Acho que isso é uma somatória de vários fatores para uma otite média de repetição.
HG - Gostaria de saber se você tem o hábito de fazer pesquisas imunológicas e corrigir fatores ambientais no tratamento destas crianças?
HL - Com certeza. Por partes. Sem dúvida, a hipoglobulinemia seletiva de IgA foi tema de uma pesquisa publicada por nós na revista da Fundação do Hospital das Clínicas da USP em conjunto com o Dr. Edson Bastos Freitas, na qual tivemos dois casos documentados de hipoimunoglobulinemia seletiva de IgA. Mas também é preciso estar atento ao IgG, a frações de IgG, principalmente da IgG 3.
Outro aspecto de suma importância é a higienização do meio em que o nosso paciente vive, um fato que, muitas vezes, passa despercebido do médico ao questionar seu paciente. Muitos, mesmo de classe mais elevada, vivem em casas com carpete, que não são mantidos da maneira correta; crianças que freqüentam o mesmo espaço de cães e gatos, e nós ficamos preocupados indevidamente com o pêlo desses animais como gerador da alergia da criança, mas esquecemos da saliva e das fezes desses animais, cujas proteínas, quando decompostas, são alérgenos muito importantes. Também é preciso observar a incidência dos casos de crianças que vivem em ambientes de fumantes e se tornam fumantes passivos, expostos às mais de duas mil substâncias encontradas na fumaça do cigarro (alguns autores falam em até quatro mil), como irritante natural da mucosa das vias aéreas superiores.
Faço, também, observação de meus pacientes através de um gastroenteorologista qualificado para a possibilidade de refluxo. A mim parece que está havendo até um certo exagero de referência em considerar o refluxo gastroesofágico como o causador de uma série muito grande de patologias em nossa área (ORL), mas, sem dúvida, a pesquisa do refluxo gastroesofágico por um profissional qualificado deve se um aspecto levantado.
HG - Veja que estamos num contínuo. Coçamos na otite do lactente, passamos para o pequeno paciente e vamos dar um passo. Desde que não conseguimos resolver os problemas de crise de otite de repetição, sabe que o paciente entra num quadro de otite média crônica. Otite média crônica também não significa só uma otite que se apresenta por tempo indeterminado. Uma otite média aguda necrotizante, a meu modo de ver, já nasce crônica, porque traz uma destruição da membrana do tímpano e um afetamento da cadeia de occipte. Gostaria d saber se você admite uma otite média cônica sem perfuração de membrana d tímpano?
HL - Admito, sim, esta possibilidade. É aquele tipo de otite média crônica muda e que é responsável, muitas vezes, por encontrarmos um indivíduo em fase adulta, que nunca teve uma perfuração timpânica, não te otoesclerose nem outros fatores que possam ser responsáveis por uma queda auditiva de tipo condutivo, que eventualmente encontramos no nosso paciente, afastando à possibilidade de junção de cadeia circular. Estes pacientes são seqüelas e (Michel) Paparella tem um estudo muito interessante deste aspecto, de sentido anatomopatológico, e ele trouxe à tona esta informação: pacientes que tiveram otite média crônica durante o seu desenvolvimento, sem perfuração da membrana, mas que deixam uma fibrose que sequelam a cadeia osteocular e determina desvios condutivos que podem passar despercebidos na idade adulta, principalmente se forem unilaterais.
HG - Gostaria que você tecesse considerações a respeito do porquê a gente tem que ter cuidado com uma otite. Muitas vezes uma pessoa está tratando a otite exaustivamente sem saber porque está tratando aquilo e desconhece as complicações que aparecem na otite.
HL - Voltando aos nossos prematuros de peso e idade... Não encontramos, hoje, na literatura médica, as complicações endocranianas que esses pequenos pacientes apresentavam, como meningite, uma das principais causa mortis em berçário desses pacientes. Sabemos que no recém-nascido, principalmente nos prematuros, dois fenômenos de ordem anatômica devem ser observados: o primeiro é lembrarmos que durante a fase embrionária de desenvolvimento, existiam vasos que levavam a irrigação da caixa do tímpano e se comunicava com o endocrânio ao nível da fosseta subarquata, e que são vias pré-formadas. Quando do estabelecimento de uma otite média aguda, principalmente em pacientes com problemas imunológicos e de nutrição, estas vias pré-formadas podiam se tornar permeáveis e podia ocorrer a passagem do pro cesso de infecção diretamente, não via translabiríntica. Quando era feita uma radiografia desses pacientes era possível observar a esqueletização da cápsula ótica e você ia olhar lá a zona da iminência arquata, as fossetas subarquata flúor-esbranquiçadas, e lá estava o processo de meningite instalado, causa mortis detectadas nos exames post-morrem desses pequenos pacientes.
Não devemos esquecer das antromastoidites que esses pacientes apresentavam e que mesmo hoje, com a moderna andbioticoterapia, ainda nos obrigam à necessidade de uma antrotomia de urgência. No corticular, gostaríamos de chamar a atenção, principalmente porque isto vai ser publicado numa revista para a sociedade científica, de um aspecto importante no diagnóstico diferencial da mastoidite aguda e do paciente que tem uma simples adenite retroauricular por infecção da orelha externa. Em processos infecciosos pega a parede posterior do meato acústico externo. E quando da drenagem desses processos, devemos ficar atentos para o aspecto anatômico de que o nervo facial se encontra situado atrás da parede posterior do meato acústico externo do recém-nascido e a clássica incisão de Wild para drenagem desses abscessos deve ser evitada sob pena de grave dano ao nervo facial, com paralisia facial. As incisões devem ser feitas ao longo da linha zigomática.
Deveríamos complementar que as outras possibilidades de complicação, de abscessos extradurais, de abscessos subdurais e de abscessos cerebrais ou cerebelares, ou até mesmo trombose de sino lateral podem ser complicações atinentes destes quadros de otite média.
HG - Então a gente deduz que a otite causa não apenas problemas, mas também nas vizinhanças e, inclusive, problemas gerais como septicemia, entre outras. Deixando de lado as complicações, gostaria de saber qual a sua forma de tratamento para as otites médias não só agudas, mas crônicas, perfuradas e não perfuradas?
HL - Veja bem, temos que avaliar se se trata de um paciente infantil ou adulto. Como a maior incidência de otite média aguda é na infância, precisamos estar preparados para avaliar corretamente o tratamento clínico e, eventualmente, o tratamento cirúrgico. No tratamento da fase aguda, devemos escolher um antibiótico com uma ação específica sobre aquela flora bacteriana que, habitualmente, infecta a rinofaringe de nosso paciente. Principalmente por uma condição que é muito particular da otite média aguda e que a difere da crônica. A aguda é uma infecção monobacteriana, que representa o prolongamento do quadro infeccioso da rinofaringe. Às vezes, de natureza viral também. A escolha, que é compartilhada por colegas de todo mundo, é pela amoxacilina, numa dosagem, às vezes muito alta, de 50 a 100 mg. Eu particularmente tenho aplicado a amoxacilina por um período de 10 a 15 dias, no máximo. Existem escolas que propõem o tratamento da otite média aguda com antibioticoterapia por até 21 dias. Preocupo-me, sim, em fazer uma otoscopia em nossos pacientes e ver se o conteúdo do ouvido médio foi esvaziado, se ele voltou a ter um ouvido médio normal, sem líquido residual na caixa, que pode ser um fator básico causal para que novas otites se instalem, no menor processo de infecção respiratória que esse paciente apresentar.
Tomo também outras medidas, que são discutíveis, mas que faço no dia-a-dia da minha clínica. Aplico o descongestionamento nasal intermitente a cada sete dias e, se preciso, quando uso o antibiótico por 14 dias repito o processo depois de uma semana de intervalo. Tenho o cuidado de escolher um vasoconstritor que seja compatível com nosso pequeno paciente.
Se o paciente apresentar febre, mesmo sob o efeito de antibiótico, tenho o cuidado de não aplicar corticóide, mas, passado o período de 48 horas sem febre, associo outra coisa que é muito discutida: o emprego concomitante de anti-histamínicos com corticóide. O antihistamínico cria um questionamento muito grande por parte de alguns especialistas porque, em relação à pneumologia, sabe-se que os anti-histamínicos tendem a ressecar a secreção que nós queremos esvaziar do ouvido médio. O corticóide associado, nessas circunstâncias, como o antiinflamatório potente que é, combate esse efeito indesejado. O que não fazemos é o uso de anti-histamínicos associados a descongestiantes sistêmicos, porque esta combinação não traz benefícios aos nossos pacientes.
HG - Estou totalmente de acordo e gostaria de saber qual a sua conduta no tratamento de um paciente com otite média crônica e também tecesse considerações sobre a otite média de repetição, se você coloca tubinho neste paciente, desde que ele apresente secreção no ouvido médio, ou mesmo aquele paciente que tem otite média de repetição, mas cuja membrana do tímpano se recupera integralmente.
HL - Eu acho que o advento do tubo de ventilação na otologia para o tratamento das otites médias crônicas secretoras e, eventualmente, das otites médias agudas que não respondem a antibioticoterapia precisa ser avaliada, contudo temos que fazer a ressalva de que não costumamos implantar tubo de ventilação em pacientes que tenham o ouvido médio estável, sem secreção, que respondeu à nossa terapêutica.
Só aplicamos o tubo de ventilação em pacientes que persistem com o líquido residual dentro da caixa. Ou em otite média, aguda que não respondeu à terapêutica adequada, ou em otite média crônica, depois de três meses de tratamento com antibióticos, sem resposta. HG - Para encerrar, quais seriam as complicações mais comuns em cirurgias de otite média crônica?
HL - Precisamos dividir isto em duas áreas. As complicações graves, da qual a mais comum é o trauma do nervo facial. Preocupa-me muito que no momento atual da formação do residente especialistas em ORL não haja um treinamento adequado e a incidência de traumatismo do nervo facial hoje se faz presente como no passado, quando não havia uma abordagem com conhecimento detalhado da anatomia do osso temporal. Há também as lesões labirínticas, as mobilizações inadequados do estribo, deixando nos pacientes lesões neurosensoriais.
Se partimos para as complicações não tão graves, mas que devem ser levadas em consideração, temos a escolha inadequada e a confecção técnica, tática pior ainda, das reperfurações de membranas timpânicas, com não cicatrização e, principalmente, as estenoses cicatriciais de conduto pelo uso inadequado de técnicas de tratamento cirúrgico.
HUMBERTO AFONSO GUIMARÃES - Médico Otorrinolaringologista, Presidente da Sociedade Brasileira de Otologia (2000-2002), Coordenador da Clínica Otorrinolaringologia do Hospital Universitário São José, Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital Mater Dei, Professor Colaborador da Faculdade de Ciências Médicas de Belo Horizonte
HÉLIO ANDRADE LESSA - Médico, otorrinolaringologista, Professor Regente da Disciplina de ORL e chefe da Clínica de ORL do Hospital Prof. Edgard Santos da Universidade Federal da Bahia. Doutorado em Cirurgia pela Faculdade de Medicina da Universidade Federal da Bahia
Entrevista conduzida pela jornalista Sra. ELIANA ANTIQUEIRA