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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:

Vol.69 ed.4 de Julho-Agosto em 2003 (da página 07 à 13)

Autor: Dra. Cláudia Alessandra Eckley

Artigo

 Refluxo Laringofaríngeo: Uma barreira para os profissionais da voz


Dra. Cláudia Alessandra Eckley*


A voz é o principal instrumento de trabalho do cantor. Para que ele consiga sucesso na carreira, o som deve ser emitido com perfeição. O cuidado com a voz depende das condições do próprio aparelho fonador. Essa preocupação fez com que aumentasse, hoje em dia, a freqüência de cantores nas salas de espera de consultórios de otorrinolaringologia. Eles chega geralmente com queixas de dor de garganta, rouquidão crônica ou até com reclamações mais específicas, como a perda de agudos. Há cerca de 15 anos, se um médico relatasse que o problema de garganta de seu paciente tinha origem no estômago, arrancaria risos dos colegas. O episódio é verídico e ocorreu nos Estados Unidos com o pesquisador James Kaufman. No início da década de 80, ele enfatizou que o refluxo era uma das principais causas das irritações e de outros problemas que surgem nas cordas vocais. Na época, não conseguiu, porém, nem publicar seus trabalhos.

Hoje as pesquisas nessa área estão bem avançadas, até mesmo no Brasil. Estatísticas mundiais provam que o doutor Kaufman estava certo: cerca de 80% das queixas de garganta têm refluxo associado. Apesar disso, são poucos os otorrinolaringologistas que aplicam as "novas idéias" no consultório. Isso ocorre porque o refluxo gastroesofágico, forma clássica da doença, sempre foi diagnosticado sem dificuldades, mas nunca relacionado á garganta. A patologia clássica costuma se manifestar com dores no estômago e queimação freqüente na altura do esôfago, principalmente após as refeições. No entanto, estudos realizados nos últimos dez anos mostram a incidência de uma forma atípica de manifestação da doença, chamada de refluxo laringofaríngeo, patologia que está chamando a atenção dos especialistas que trabalham com cantores. O ácido, no novo formato da anomalia, associado ao refluxo de conteúdo gastroduodenal, está ultrapassando o esôfago, chegando perigosamente na laringe e faringe, podendo causar graves problemas na garganta e afetando assim diretamente a voz. No caso dos cantores, se não houver um tratamento adequado, o problema pode apressar o fim de sua carreira.

A dificuldade para o otorrinolaringologista no diagnóstico da doença em cantores ocorre porque, na maioria dos casos, eles não possuem os sintomas gástricos característicos. São pessoas, inclusive, que não apresentam queimação no estômago. "Não tem pigarro, não tem dor, mas tem a região queimada", diz a otorrinolaringologista Cláudia Eckley, que estuda o assunto em sua tese de doutorado, desenvolvida na Irmandade Santa Casa de Misericórdia, em São Paulo.

Por causa da ausência dos sintomas clássicos, demorou-se muito tempo para que os médicos conseguissem identificar quem eram esses doentes e quais manifestações apresentavam. "São sintomas que nada tem a ver com o refluxo clássico, mas sim com o fato de o ácido ter subido na garganta e queimar aquela região", afirma a especialista. A garganta fica vermelha, inchada e isso causa, na região de transição entre o esôfago e a faringe, "uma sensação de pigarro ou algo parado na garganta". Para o refluxo laringofaríngeo, as manifestações mais comuns são tosse seca, pigarro e rouquidão, principalmente pela manhã, ou após as refeições. "Se alguém falasse isso há alguns anos, ninguém atribuiria esses sintomas à doença do refluxo", enfatiza Cláudia.

A mudança na forma de enfrentar a patologia ocorreu após o acesso às fibras óticas na prática clínica, utilizada como um instrumento de diagnóstico para detectar partes queimadas na garganta, principalmente na entrada do esôfago. "No início, até suspeitávamos do refluxo, mas íamos olhar o estômago e estava normal. 'Então não é o refluxo!'. E o paciente continuava com o problema." A partir daí, começaram a ser desenvolvidos exames que verificam o nível de acidez da garganta, o que facilitou a descoberta da causa da doença.

Segundo Cláudia Eckley, 70% dos pacientes cantores que são tratados em sua clínica otorrinolaringológica têm a forma exclusiva do refluxo laringofaríngeo. Os outros 30% podem ter a associação com a forma clássica da doença "Ocorre que queima tanto no estômago que termina chegando na garganta." Existe também uma grande associação de lesões benignas e malignas ligadas ao refluxo. Por exemplo, o câncer de laringe. "A laringe
é muito sensível ao ácido. Com o refluxo, principalmente associado ao álcool e ao cigarro, você tem uma agressão de dentro para fora e de fora para dentro."

LESÕES

A otorrinolaringologista lembra que o profissional que pretende se especializar no tratamento de cantores terá de se aprofundar no conhecimento da fisiologia do canto e conhecer um pouco dos estilos musicais. "Saber de que forma os músculos são utilizados é fundamental para qualquer profissional que deseja tratar de um cantor." Por isso, perceber o problema requer observação e muita conversa com os cantores. Pigarro, acordar rouco de manhã, tosse seca, são sinais que devem alertar o otorrinolaringologista sobre a doença do refluxo. Os cantores costumam se queixar muito da rouquidão. Ela dá um inchaço nas cordas vocais, fazendo com que aumente seu volume. Essa manifestação deixa a voz mais grave. Cláudia alerta que a chance de o profissional lesar as cordas vocais quando estão queimadas é muito maior. "Qualquer doença que cause uma alteração crônica nas cordas vocais para um profissional da voe é extremamente grave".

Na maioria dos casos, antes de ter uma lesão nas cordas vocal, o cantor passa por um processo inflamatório muito intenso na região de transição entre a entrada do esôfago e a laringe. Se o indivíduo não abusar da voz, não terá uma lesão. Apenas um inchaço. "Agora, se ele abusar, no caso do profissional da voz, e não ter uma técnica adequada, vai agredir a prega vocal. Com isso pode desenvolver uma gama de lesões. Ele estará mais suscetível a uma lesão traumática do que um indivíduo que não tem a corda inflamada."

As lesões são divididas em organofuncionais e orgânicas. As organofuncionais são os nódulos de corda vocal, popularmente conhecido como calos vocais. Eles estão ligados ao uso inadequado da musculatura da laringe. Um nódulo pode regredir com uma técnica vocal adequada. Já na lesão orgânica, existe um risco maior de uma intervenção cirúrgica. Mas essa cirurgia produz um risco grande, se o refluxo não for detectado previamente. "Imagine o risco de cicatriz dessa corda vocal. Eu tiro uma lesão benigna da superfície da corda e jogo ácido na cicatriz. Na hora de cicatrizar o epitélio da prega vocal, ela adere ao músculo vocal, e aquela prega que teria de vibrar para ficar um canto bonito se transformará em um som rouco, pior do que antes", explica Cláudia Eckley.

Se não houver uma lesão orgânica (um pólipo, cisto ou cicatriz) não haverá indicação de cirurgia. O que pode ocorrer, em menos de 5% dos pacientes, é uma intervenção no estômago, para o controle da acidez. Cerca de 70% dos pacientes, porém, resolvem o problema com tratamento químico.

CONTROVÉRSIAS

Por ser uma linha de pesquisa recente na medicina, existem ainda muitas controvérsias na forma de diagnóstico do refluxo laringofaríngeo, por causa da ausência de manifestações no tubo digestivo. Os exames que são utilizados para detectar a forma clássica da doença já não servem para a "nova" patologia. A endoscopia digestiva não vai ter uma alteração sugestiva, pois os vídeos de deglutogramas contrastados não chegam a observar o refluxo que alcança a laringe. A controvérsia maior tem sido ainda em relação a Phmetria esofágica de 24 horas. O exame laringofaríngeo deve ser realizado com dois canais, um cateter posicionado no esôfago e outro na garganta. O objetivo é ver se o refluxo distal chegou no refluxo proximal. Esse exame é considerado padrão ouro de diagnóstico da forma clássica da doença. Se for transferido para a forma atípica da patologia, o exame poderá ter uma sensibilidade baixa. "Apenas um paciente, em quatro que tenha o refluxo, será acusado no exame", aponta a otorrinolaringologista. De acordo com Cláudia, isso ocorre porque não há refluxo todos os dias. "Um indivíduo com uma sonda enfiada no nariz, acoplada atrás da orelha e presa na cintura, não terá os hábitos normais, mudando assim, o padrão do refluxo."

Por causa disso, alguns trabalhos científicos apontam que não existe ainda um exame padrão para essa especialidade patológica. O diagnóstico deverá ser feito com base numa história clínica sugestiva e um exame laringoscópico. "Quando nós suspeitamos que é refluxo, fazemos o tratamento. Se ele melhorar, era refluxo. Isso ainda é uma grande controvérsia."

MULTIDISCIPLINARIDADE

No atendimento de cantores, o otorrinolaringologista convive a todo momento com á multidisciplinaridade. É necessária a atuação conjunta de vários profissionais de diferentes especialidades, como fonoaudiólogos e professores de canto para se chegar a resultados satisfatórios com o paciente.

Para a fonoaudióloga Adriana de Almeida Bezerra, que se especializou no atendimento de cantores, a interação entre as três áreas é fundamental. "Nunca atendo ninguém com problema de voz sem um exame otorrinolaringológico. Você pode atender achando que não passa de um nódulo e, na verdade, é um câncer. Só o médico pode responder o que está acontecendo lá dentro", afirma. A fonoaudióloga costuma receber pacientes que foram encaminhados pelos professores de canto. Esses docentes conseguem detectar mínimos detalhes de alteração vocal. "É difícil eles errarem."

O trabalho do fonoaudiólogo no tratamento é muito importante, pois terá um contato maior com o paciente (cerca de duas vezes por semana), acompanhando assim mais de perto o percurso da patologia. No caso do refluxo laringofaríngeo, o tratamento passado pelo otorrinolaringologista é baseado em uma dieta rigorosa e em remédios para baixar a acidez gástrica. No entanto, cantores são pacientes diferenciados. Tem um estilo de vida muito particular, vivem à noite, sempre em ambientes cheios de fumaça e alimentam-se em horários variados. Ou seja, é necessária uma mudança de hábito para que os resultados aconteçam. Por causa disso, o fonoaudiólogo funciona como um terapeuta. "Tento sensibilizar o cantor sobre a importância dele cuidar da voz. Somos mais terapeutas do que um técnico."

Por isso o fonoaudiólogo, além dos exercícios específicos que trabalha com o cantor, vai acompanhar seus hábitos. "Com o tratamento contra o refluxo, a qualidade de vida do cantor melhora tanto que ele muda a sua percepção de ser. Ele passa a cuidar de si mesmo", comemora Adriana.

Foi justamente isso que ocorreu com a cantora Juliana Moraes, backing vocal da banda da artista Wanessa Camargo. Juliana sentia dor de garganta constantemente. De forma equivocada, ela tomava vários remédios antiinflamatórios com a intenção de ver seu problema resolvido. "O som da minha voz tinha perdido o brilho. Mas não fazia idéia do que era", comenta. Após conversas com sua professora de canto, Juliana resolveu procurar uma fonoaudióloga, que logo a encaminhou para o otorrinolaringologista. No exame, foi constatado que a cantora estava com a laringe queimada. A médica elaborou um tratamento que fazia alusão ao refluxo laringofaringeo.

Juliana cortou café, chocolate, chá e doce, além ele outros alimentos ácidos. Ela passou também a tomar um medicamento, durante seis meses. Depois desse período, a cantora não mais sentiu problemas na voz. "Fizemos um exame recentemente que mostrou que já não há problema, apesar de eu não ter me afastado do trabalho." A artista deixou claro que seu desempenho, após o tratamento, melhorou muito. "O brilho da minha voz voltou. Atinjo os agudos com facilidade. Agora tenho controle total", comemora.

AVANÇOS

Existe um estudo científico original sendo desenvolvido no Brasil que analisa os fatores que podem proteger a laringe do refluxo. Pesquisadores do setor de otorrinolaringologia da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, liderados pela otorrinolaringologista Cláudia Eckley, estudam uma proteína produzida pela saliva, que é capaz de regenerar rapidamente o epitélio, tanto da cavidade oral como da laringe e do tubo digestivo. Até agora foi constatado, em um estudo preliminar, que os indivíduos com refluxo laringofaríngeo têm uma deficiência na produção salivar dessa proteína.

Foi descoberta nesta pesquisa uma sugestão de que não apenas o ácido que sobe até a laringe faz o estrago, mas o fato de que alguns indivíduos não sejam capazes de se defender do ácido. "Se no futuro conseguirmos estabelecer que existe uma correlação entre deficiências de fatores de proteção da laringe e do tubo digestivo, não vamos mais precisar medicar os pacientes para diminuir a acidez do estômago", diz Cláudia. Este é justamente o tema de sua tese de doutorado. "Temos ainda mais três anos de estudos e muitas perguntas a serem respondidas".

SANTA CASA

A Santa Casa de São Paulo possui um atendimento específico para pessoas com problemas de voz. O grupo de laringe da otorrinolaringologia da entidade começou a desenvolver esse trabalho a partir de 1994. Cerca de 5 mil pacientes por ano são atendidos no local. Desses, de 20D%o a 30% são profissionais da voz. Nos ambulatórios, existe uma equipe multidisciplinar, formada em sua maioria, por fonoaudiólogas, que dão o suporte necessário aos médicos. Há ambulatórios específicos que examinam profissionais da voz. Eles passam por um protocolo de avaliação com um fonoaudiólogo, que elabora grupos de trabalho, de acordo com a especialidade de cada profissional. Os cantores, por exemplo, pertencem a uma categoria bastante abrangente como os líricos, gospel e populares. Faz-se uma triagem para saber o estilo de canto para formar os grupos. Cada conjunto de profissionais será trabalhado em cerca de 10 seções, durante dois meses. No início, é feita uma avaliação otorrinolaringológica. No final haverá outra, que demonstrará o avanço do tratamento. Aqueles que não obtiveram resultados satisfatórios serão encaminhados para um trabalho individualizado.

* DRA. CLÁUDIA ALESSANDRA ECKLEY - PROFA. ASSISTENTE DO DEPARTAMENTO DE OTORRINOLARINGOLOGIA DA SANTA CASA-SP

 

 

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