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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:

Vol.71 ed.6 de Novembro - Dezembro em 2005 (da página 33 à 36)

Autor: Wanessa D. Oliveira1, Gabriela A. N. M. Teixeira1, Érika S. B. Pires1, Celso G. Becker2, Roberto E. S. Guimarães2, Helena M. G. Becker2

Relato de Caso

 Paralisia facial secundária a mergulho: relato de caso e revisão das complicações relacionadas ao barotrauma

INTRODUÇÃO

Nota-se um crescente número de adeptos à prática do mergulho no Brasil e no mundo. As complicações médicas que mais freqüentemente decorrem da prática deste esporte estão associadas à região da cabeça e pescoço, principalmente às orelhas1. O barotrauma é a principal delas, especialmente na descensão. Relatamos um caso incomum de barotrauma por mergulho, durante a ascensão, que produziu paralisia facial periférica transitória. É importante ressaltar que os aviadores também estão sujeitos a estas complicações pelo mesmo mecanismo2,3,9.

RELATO DE CASO

Trata-se de paciente de 29 anos, masculino, leucodérmico, previamente hígido, praticante de mergulho há vários anos. Apresentou em janeiro de 2004, durante a ascensão de uma profundidade de aproximadamente 15 metros até a superfície, um quadro de plenitude auricular, hipoacusia e otalgia à esquerda, associados à tonteira não-rotatória e paralisia facial periférica (PFP) ipsilateral. O paciente foi imediatamente atendido ainda no barco com oxigenioterapia a 100%, evoluindo com melhora progressiva e total em vinte minutos. Oito dias após o episódio, procurou atendimento otorrinolaringológico não sendo identificadas alterações ao exame clínico. Realizada fibronasolaringoscopia que se encontrava dentro dos padrões da normalidade. A audiometria tonal mostrava normoacusia bilateral, com discriminação de 100% e Weber indiferente. A tomografia computadorizada (TC) em cortes axial e coronal sem contraste não evidenciou alterações, nem deiscência do canal de Falópio. O paciente vem sendo reavaliado periodicamente não tendo apresentado alterações ao exame otorrinolaringológico até hoje.

DISCUSSÃO

O barotrauma decorre da falha em equalizar a pressão dentro de cavidades aéreas (pulmões, seios paranasais, orelhas médias) tanto durante a descensão (compressão aérea) quanto na ascensão (descompressão ou expansão aérea)1.

O mais freqüente é o barotrauma otológico causado por falha na abertura da tuba auditiva, durante a descensão, impedindo a equalização entre pressão da orelha média e pressão atmosférica. Seu mecanismo de instalação pode ser explicado fisicamente pela lei de Boyle aplicada à orelha média (pressão e volume são inversamente proporcionais) 1,3,5.

No nível do mar, a pressão atmosférica é de 760mmHg, correspondente a uma atmosfera (1 ATM). Durante a descensão, o ar contido nos pulmões, orelhas médias e seios paranasais têm seu volume reduzido pelo progressivo aumento de pressão do ambiente aquático. A cada 10 metros de profundidade acrescenta-se uma ATM à pressão da água, com correspondente redução à metade do volume aéreo.

Nos pulmões, o ar inspirado do cilindro de mergulho autônomo (com pressão igual ao ambiente aquático) rapidamente ocupa o espaço livre decorrente da redução volumétrica do ar previamente existente. Nas orelhas médias, entretanto, a pressão negativa gerada pela compressão do ar promove o colabamento das paredes da tuba auditiva, exigindo as manobras de Valsalva, Frenzel ou de Toynbee para a entrada de ar e equalização da pressão1,3-5.

Os barotraumas otológicos ocorrem com maior freqüência na descensão pela necessidade de um mecanismo ativo de abertura tubária5. As alterações nas orelhas médias e dos seios paranasais decorrem da pressão negativa (não equalizada) promovendo edemas, transudatos, equimoses ou sangramentos, formando o hemotímpano ou sangramento sinusal.

A ruptura da membrana timpânica pode se instalar a partir de uma diferença de pressão de 200 mmHg entre orelha média e ambiente aquático (aproximadamente 5 metros, sem equalização). Pode ocorrer ainda crise de tonteira alternobárica por retração timpânica com deslocamento da cadeia ossicular e compressão do estribo na janela oval1.

A manobra de Valsalva, da qual se lança mão para equalizar a pressão, quando realizada bruscamente ou com pressão excessiva, pode levar a uma brusca entrada de ar na orelha média, resultando numa súbita equalização de pressão, com tração lateral do estribo. Isso pode provocar desde uma onda líquida intralabiríntica até fístulas perilinfáticas e/ou intralabirínticas1,7.

Na ascensão, ao inverso, o ar previamente comprimido sofre expansão, permitindo ao mergulhador liberar ar dos pulmões durante toda a subida e em volume muito superior à sua capacidade vital pulmonar. Nas orelhas médias, a expansão do ar promove a abertura fisiológica da tuba auditiva com saída do excesso de ar progressivamente expandido até a equalização final da pressão, ao alcançar a superfície1,3,5.

O barotrauma ocorrido na ascensão ou barotrauma reverso pode ser explicado por variação anatômica da tuba auditiva formando um mecanismo de válvula de fluxo unidirecional ou por edema tubário decorrente de inadequada equalização na descensão1. Esta disfunção tubária pode impedir a abertura fisiológica da tuba auditiva decorrente da expansão aérea levando ao abaulamento e ruptura da membrana timpânica e até paralisia facial.

O tratamento dos barotraumas otológicos envolve a prevenção, através de manobras de Valsalva, Frenzel e Toynbee, equalizando a pressão entre a orelha média e o meio ambiente.

O mergulhador deve estar previamente hígido, sem alteração nasal, sinusal ou otológica e capaz de realizar manobras de equalização14.

Nos casos de barotraumas em que a efusão ou hemotímpano persiste além do tempo previsto o uso de corticosteróides sistêmicos ou antibioticoterapia profilática podem ser utilizados3,12. O uso de descongestionantes sistêmicos é controverso e deve considerar seus efeitos colaterais como sonolência, taquicardia e excitação.

Nas perfurações de membrana timpânica, pode estar recomendado desde a conduta expectante, o uso de antibiótico sistêmico profilático1, até o reparo cirúrgico nas lesões extensas, desarticulação de cadeia ossicular e suspeita de fístula perilinfática12. Na ocorrência de fístula perilinfática, o tratamento é expectante, com repouso, antivertiginosos e cabeceira elevada ou cirúrgico, com timpanotomia exploradora e fechamento da fístula1,3.

O barotrauma dos seios paranasais é o segundo mais freqüente em mergulhadores, tendo como causas desvios septais, rinossinusites, espessamentos de mucosas ou pólipos. Os seios mais atingidos são, na ordem, frontais, etmoidais e maxilares. Epistaxes, quando presentes, são discretas e habitualmente autolimitadas. O uso de descongestionantes e antibióticos pode estar indicado.

O barotrauma dentário decorre da existência de cavidades aeradas e seladas em tratamentos dentários inadequados. Os gases contidos nestas cavidades sofrem compressão (descensão) e expansão (ascensão) com dor e risco de implosão ou explosão, respectivamente. O tratamento dentário correto impede a existência destas cavidades.

O barotrauma de face ou de máscara ocorre quando o mergulhador se esquece de exalar ar pelo nariz, durante a descensão, para ocupar a redução volumétrica do ar contido na máscara e conseqüente pressão negativa. Os sinais mais observados são edema de face, equimose periorbital e hemorragia subconjuntival que evoluem para melhora espontânea.

O barotrauma pulmonar, entidade clínica grave e felizmente rara, ocorre quando a pressão alveolar excede a pressão ambiental em 50 a 100mmHg, como na ascensão sem expirar (subida em pânico ou com laringoespasmo) ou na ruptura de bolha pulmonar. O ar em progressiva expansão promove microlesões na membrana alveolar, com conseqüente enfisema subcutâneo, mediastinal e pneumotórax hipertensivo. O paciente pode apresentar dor retroesternal, creptação subcutânea, disfonia, tosse e dispnéia. O diagnóstico deve ser precoce e confirmado pela ausculta, percussão e exames de imagem. O tratamento, sob internação, consiste de medidas de suporte, oxigenioterapia e drenagem torácica. Deve ser ressaltado que o enfisema subcutâneo ou mediastinal e o pneumotórax podem coexistir com a embolia gasosa. A embolia gasosa é rara, com sintomas neurológicos súbitos múltiplos e prognóstico reservado1,5,6. O paciente deve ser transportado em posição de Trendelenburg, sob oxigenioterapia, o mais precoce possível para compressão em câmara hiperbárica.

No caso relatado, o paciente apresentou quadro de plenitude auricular, hipoacusia, tonteira e paralisia facial periférica (PFP) durante a ascensão. A literatura apresenta apenas 2 outros casos de PFP transitórias secundárias a mergulho5,14, com sintomas semelhantes ao relatado e também com melhora espontânea rapidamente progressiva. Um dos pacientes relatou barulho de escape de ar através da tuba auditiva precedendo a melhora da plenitude auricular e recuperação progressiva da mímica facial5.

Episódios de PFP transitórias de semelhante etiologia barotraumática foram descritos durante a ascensão de aviões2,9,10. Um artigo descreve 4 episódios distintos de PFP transitória e recorrente, em altas altitudes em vôos comerciais, em paciente submetida previamente a petrosectomia subtotal com rerouting facial, selamento tubário e obliteração de cavidade com gordura, devido a fratura temporal transversa10. A tomografia computadorizada de mastóides revelou cavidade de pneumocele temporal devido à absorção de gordura.

Em outro artigo foi descrito o caso de um paciente com seis episódios de PFP transitória e recorrente durante ascensão em vôos comerciais que foi submetido à inserção de tubo de ventilação com remissão dos quadros2. Este procedimento, entretanto, é contra-indicado em mergulhadores. Episódio de PFP transitória, com recuperação total em vinte minutos, desencadeada pela súbita elevação da pressão da orelha média ao assoar o nariz, já foi também observado11.

Em todos os casos, o mecanismo etiopatogênico postulado foi a elevação da pressão da orelha média pela expansão dos gases associada à disfunção/oclusão tubária, com conseqüente compressão pneumática do nervo facial2,5,9,11,14. Uma pressão superior a 60cm de H2O é suficiente para comprimir um nervo facial deiscente, causando compressão e isquemia5.

Em relação ao caso relatado, durante a descensão o ar contido na orelha média foi sendo comprimido até que o paciente realizou a manobra de Valsalva (processo ativo), com entrada de nova quantidade de ar e equalização da pressão. Durante a ascensão, não ocorreu a abertura fisiológica da tuba auditiva (processo passivo) e a expansão da grande quantidade de ar ali contido promoveu um súbito e elevado aumento da pressão da orelha média com compressão pneumática do nervo facial e PFP transitória.

A deiscência congênita do canal de Falópio, mais freqüente no segmento timpânico e presente em até 10% dos indivíduos14, exporia o nervo facial ao súbito aumento de pressão da orelha média5,11,14. Mesmo quando presente, a deiscência ainda poderia não ser detectada e passar despercebida na tomografia computadorizada.

A integridade do canal do facial também não impediria o trauma do nervo, pela possibilidade da compressão pneumática seguir pelos hiatos de emergência dos nervos estapédio, ramos comunicantes do plexo timpânico e corda do tímpano5,11. O trauma neural do caso relatado, assim como dos outros da literatura, correspondeu a uma neuropraxia, pela recuperação rápida e total da função do nervo facial2,11,14. Em caso de PFP transitória secundária a mergulho semelhante ao relatado, os exames clínicos otorrinolaringológico, audiométricos e de imagens podem não mostrar nenhuma alteração5.

Ainda são raros os relatos de casos de PFP alternobárica, ou secundária ao mergulho, apesar do crescente número de praticantes de esportes e profissões subaquáticas. Sua freqüência deve ser ainda subdimensionada por pacientes que não procuram assistência médica devido à melhora rápida e espontânea.

Os pacientes com PFP persistente deverão ser tratados como paralisia de Bell5.

CONCLUSÃO

Ao ingressar na prática do mergulho, as manobras de Valsalva, Frenzel e Toynbee devem ser enfatizadas, com o objetivo de equalizar a pressão da orelha média à pressão atmosférica. As complicações do barotrauma podem ocorrer, principalmente na região da cabeça e pescoço e devem ser evitadas.

Os barotraumas podem ocorrer mesmo em mergulhos superficiais, com lesões mínimas ou até mesmo em casos graves de pneumotórax.

Todo otorrinolaringologista deve estar familiarizado com o protocolo de avaliação de mergulhadores - Guidelines for medical examination of sport scuba divers1 - que apresenta os pré-requisitos, contra-indicações e considerações otológicas, rinossinusais, laríngeas, orais e maxilodentais e pulmonares para um mergulho seguro.

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1 Médica residente em otorrinolaringologia do Núcleo de Otorrino-BH, MG.
2 Médico Otorrinolaringologista, Doutor em Medicina, Professor Adjunto do Departamento de Otorrinolaringologia, Oftalmologia e Fonoaudiologia da
Faculdade de Medicina da UFMG e preceptor do Serviço de Otorrinolaringologia do Núcleo de Otorrino-BH.
Endereço para correspondência: Núcleo de Otorrino-BH - Rua Levindo Lopes 191 Bairro Savassi Belo Horizonte MG 30140-170.
Tel./Fax: (0xx31) 3281-4604 - E-mail: cbecker@medicina.ufmg.br
Artigo recebido em 03 de setembro de 2004. Artigo aceito em 14 de outubro de 2004.

 

 

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