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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:

Vol.71 ed.6 de Novembro - Dezembro em 2005 (da página 29 à 32)

Autor: Clarissa L. Komatsu1, Maura C. Neves2, Elder Y. Goto2, Richard L. Voegels3, Ossamu Butugan3

Relato de Caso

 Perfuração septal após cirurgia funcional endoscópica sinusal (FESS) em três pacientes em uso de corticosteróide tópico

INTRODUÇÃO

A prevalência de perfuração septal na clínica otorrinolaringológica é baixa, e na população geral é menor ainda. Porém, não existem estudos na literatura para confirmar a sua prevalência. Um estudo com uma amostra populacional pequena na Suécia (estudo com 1900 indivíduos com 20 anos ou mais) revelou uma prevalência de 0,9%1.

As causas de perfuração septal são variadas, incluindo lesões traumáticas, como o trauma digital, lesões iatrogênicas pós-septoplastias, processos inflamatórios e infecciosos, uso de corticosteróides nasais e outros agentes químicos como cocaína e vasoconstritores locais e idiopática1-7. Pelas estatísticas americanas, a principal causa de perfuração septal é a cirurgia septal, seguida pela inalação de cocaína8.

Não há relatos na literatura de perfuração septal como complicação de cirurgia funcional endoscópica sinusal (FESS - Functional Endoscopic Sinus Surgery) sem manipulação septal8-14.

O objetivo deste estudo é descrever três casos de pacientes atendidos na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (HC-FMUSP) que apresentaram perfuração de septo no seguimento pós-operatório de FESS, sem manipulação do septo e em vigência de uso de corticosteróide nasal tópico no pré e pós-operatório, no período de novembro de 1999 a junho de 2003.

REVISÃO DA LITERATURA

A prevalência de perfuração septal na população em geral é baixa, ao redor de 1%, porém não existem estudos com grandes amostras populacionais para precisar tal prevalência1.

Entre as causas de perfuração septal estão incluídas as cirurgias septais prévias, trauma digital/mecânico, infecções e processos inflamatórios, uso de corticosteróides nasais e idiopáticas1-7. A perfuração septal é uma complicação em potencial, mas rara, do uso de corticosteróide nasal4,5. Ela pode ser considerada possível com uso de qualquer corticosteróide nasal, citada na bula de flunisolida, beclometasona e dexametasona5.

Os efeitos colaterais locais dos corticosteróides tópicos nasais incluem epistaxe, faringite, crostas nasais e secura, rinite atrófica e perfuração septal15.

Cervin (1998), em um estudo envolvendo 32 pacientes com perfuração septal na Suécia, aponta o uso de corticosteróide nasal como principal agente etiológico, seguido de septoplastia prévia, uso de gotas vasoconstritoras, trauma digital e cauterizações septais repetidas7.

Miller (1975) relatou o desenvolvimento de perfuração septal em dois pacientes adultos após o tratamento em longo prazo (um a dois anos) com spray de dexametasona (Turbinaire® - 2 puffs em cada narina 2 vezes ao dia). Ambos os casos apresentaram secura e irritação nasal prévios ao surgimento da perfuração durante o uso da medicação. Não ficou provado que a dexametasona foi a responsável pela perfuração4.

Soderberg (1984) relatou o aparecimento de perfuração septal em uma criança de nove anos após uso de spray de flunisolida (100 mcg/dia por oito meses). A flunisolida é considerada segura para crianças acima de seis anos. Antes do aparecimento da perfuração a criança apresentou ulceração na mucosa septal, porém o tratamento tópico não foi interrompido3.

Não existem casos descritos de perfuração septal decorrente de FESS sem manipulação do septo8-14.

RELATO DE CASOS

Caso 1


MAPSN, sexo feminino, 40 anos, com história de 10 anos de obstrução nasal bilateral, prurido e espirros. Fez uso de corticosteróide nasal (budesonida 400 mcg/dia) por dois anos sem melhora clínica e tinha antecedentes de sinusectomia maxilar prévia (antrostomia maxilar externa, via sublabial) para retirada de pólipos. Apresentava hipertensão arterial sistêmica controlada somente com dieta. Ao exame físico apresentava mucosa pálida com coriza hialina e à endoscopia nasal, polipose difusa ocupando a região de meatos médios bilateralmente. A tomografia computadorizada de seios paranasais mostrava sinais de pansinusopatia, com velamento de todos os seios. A paciente foi submetida à polipectomia endoscópica com retirada de pólipos de fossas nasais e meatos médios, com abertura de seios maxilares, etmoidais e esfenoidais. Foi ainda ressecada uma sinéquia encontrada entre a concha média esquerda e o septo (área de Cottle IV, superior). O septo estava íntegro no intra-operatório. O anatomopatológico evidenciou pólipos inflamatórios.

No 14º dia pós-operatório foram introduzidos roxitromicina sistêmica (300 mg/dia por 14 dias) e corticosteróide nasal tópico (budesonida 400 mcg/dia), pois a paciente apresentou quadro de sinusite, com rinorréia purulenta em ambas as fossas nasais. No 21º dia pós-operatório identificou-se perfuração septal ântero-inferior (aproximadamente 2cm de diâmetro em área de Cottle III/IV) sem relação com o local da ressecção da sinéquia. Na ocasião o corticosteróide tópico foi mantido na mesma dose. No 40º pós-operatório, como apresentava crostas recobrindo os bordos da perfuração, foi realizada biópsia. O anatomopatológico revelou processo inflamatório crônico ulcerado com tecido de granulação e tampão fibrino-leucocitário, sendo a pesquisa de micobactérias e fungos negativa. Tanto a imunofluorescência indireta para leishmaniose e reação de Montenegro quanto à reação sorológica para sífilis foram negativas. Após quatro anos de pós-operatório, apresenta recidiva da polipose bilateral, sem queixas quanto à perfuração septal.

Caso 2

MLSS, sexo feminino, 51 anos, com história de 15 anos de obstrução nasal bilateral, pior à direita, associada à anosmia, sem prurido ou espirros. Fazia uso esporádico de Decadron® - colírio (dexametasona e neomicina) em fossas nasais por vários anos. Negava história de trauma nasal ou asma. Apresentava hipertensão arterial sistêmica em uso de enalapril 10 mg/dia e clortalidona 50 mg/dia. Ao exame físico apresentava pólipos exteriorizando pelo vestíbulo nasal direito e à endoscopia nasal, polipose preenchendo ambas as fossas nasais. A tomografia computadorizada de seios paranasais mostrava velamento de densidade de partes moles ocupando todos os seios paranasais e fossas nasais. Diante desses achados, a paciente foi submetida à polipectomia endoscópica com retirada de pólipos de fossas nasais e meatos médios e sinusotomia dos seios maxilares, etmoidais e esfenoidais, sem manipulação septal. No intra-operatório o septo encontrava-se íntegro. O anatomopatológico evidenciou pólipos inflamatórios.

No pós-operatório foi orientada a usar corticosteróide tópico nasal budesonida (800 mcg/dia), sendo que no segundo mês de seguimento pós-operatório desenvolveu perfuração septal ântero-inferior (aproximadamente 1,5cm de diâmetro em área de Cottle III/IV) sem formação de crostas ou outros sinais de lesão em atividade. Realizada biópsia que evidenciou processo inflamatório crônico inespecífico, com pesquisa de bacilos álcool-ácido resistentes e de fungos negativa. ANCA-C (anticorpo anti-citoplasma de neutrófilo) e reação sorológica para sífilis também foram negativas. O corticosteróide tópico foi mantido, sendo a paciente orientada a direcionar o jato para a parede lateral do nariz, prática que ela já realizava. Atualmente, com um ano e seis meses de pós-operatório, a paciente apresenta recidiva da polipose em meatos médios e não tem queixas em relação à presença da perfuração septal, como crostas ou assobio.

Caso 3

RAR, sexo masculino, 37 anos, com história de 4 anos de obstrução nasal bilateral, pior à direita, associada à hiposmia, sem outras queixas. Fez vários tratamentos com corticosteróide nasal, sendo o último budesonida (400 mcg/dia), sem melhora. Negava asma e cirurgias nasais prévias. Apresentava hipertensão arterial sistêmica leve, não necessitando de tratamento medicamentoso. Ao exame físico, apresentava pólipos em ambas as fossas nasais e à endoscopia nasal, polipose extensa bilateral ocupando toda fossa nasal. A tomografia computadorizada de seios paranasais apresentava sinais de pansinusopatia com velamento de todos os seios. O paciente foi então submetido à polipectomia endoscópica com retirada de pólipos de fossas nasais, meatos médios e meatos superiores e de degeneração polipóide de conchas médias, com abertura de seio maxilar, células etmoidais anteriores e posteriores e seio esfenoidal, bilateralmente. O septo encontrava-se íntegro no intra-operatório. O anatomopatológico evidenciou pólipo inflamatório. No pós-operatório foi mantido corticosteróide tópico (budesonida 800 mcg/dia) e no 30º dia pós-operatório apresentou área de ulceração septal, que evoluiu no 70º dia para perfuração septal inferior (aproximadamente 2cm de diâmetro em área de Cottle IV), sendo o corticosteróide tópico mantido. Realizada biópsia de fragmento da perfuração septal, cujo anatomopatológico foi processo inflamatório crônico inespecífico ulcerado com hiperplasia epitelial reativa e ausência de granulomas, fungos ou malignidade. Com oito meses de pós-operatório, o paciente não apresenta recidiva de polipose, a perfuração apresenta-se com bordas regulares e sem crostas e ele se encontra assintomático.

DISCUSSÃO

A prevalência de perfuração septal na população em geral é baixa, ao redor de 1%1.

Há várias causas de perfuração septal, entre elas cirurgias septais, trauma digital, infecções e uso de corticosteróides tópicos.1-7 A perfuração septal é uma complicação em potencial, mas rara, do uso de corticosteróide nasal4,5.

A fisiopatologia da perfuração septal decorrente do uso de corticosteróide tópico não é totalmente conhecida. Um dos possíveis mecanismos é que o corticosteróide nasal tópico cause vasoconstrição quando aplicado diretamente no septo, levando à isquemia, necrose e perda de tecido septal, semelhante ao ocorrido com o uso de cocaína. Além disso, o aplicador do spray também pode ter ação irritativa mecânica sob o septo, sendo que os pacientes devem ser orientados a direcionar o aplicador para parede lateral do nariz, afastando-o do septo5,7. Possivelmente, também o uso do spray ou de pó de corticosteróide leve à formação de crostas nasais, predispondo o trauma digital7.

O risco maior de aparecimento da perfuração septal relacionada ao uso de corticosteróide nasal parece ser nos primeiros 12 meses de tratamento, sendo interessante o acompanhamento mensal no início para evitar esta complicação7. Os pacientes que apresentam secura e irritação nasal com uso dos sprays devem ser orientados a interromper seu uso4,5,7.

Benninger (2004) elaborou uma revisão sobre o melhor método de aplicação dos corticosteróides nasais, no intuito de maximizar a eficácia e diminuir os efeitos colaterais e complicações. A efetividade depende não só das propriedades farmacológicas, mas também da deposição promovida pelo aparelho de instilação, do tamanho e da massa das partículas, da anatomia intranasal e do transporte mucociliar. Este estudo não mostrou de forma conclusiva que a eficácia ou a segurança do uso dos corticosteróides tópicos nasais é afetada pela posição da cabeça ou método de instilação. Porém existem evidências que é melhor usar o jato direcionado para a parede lateral do nariz, afastando-se do septo, pois ocorre aumento da concentração do agente nos tecidos mais provavelmente afetados pela resposta inflamatória, como as conchas médias e inferiores e o meato médio e há maior quantidade de células ciliadas na parede lateral auxilia a maior disseminação do produto dentro do nariz. Parece também reduzir a freqüência de epistaxe e trauma. Porém há técnicas recomendadas para o seu uso: 1) manter a cabeça em posição neutra vertical; 2) assoar levemente o nariz na presença de muco espesso ou excessivo; 3) inserir o aplicador na narina; 4) direcionar o jato lateralmente, afastando-se do septo, se possível utilizando a mão esquerda para o uso na narina direita e vice-versa; 5) inspirar suavemente durante a aplicação15.

Não existem casos descritos de perfuração septal decorrente de FESS sem manipulação do septo8-14. No nosso serviço já foram realizadas cerca de 2000 cirurgias endoscópicas sinusais, sendo que somente os três casos relatados acima desenvolveram perfuração septal no pós-operatório, sem manipulação cirúrgica septal. Durante a cirurgia é utilizada solução de lidocaína 2% com adrenalina na concentração de 1:2000. Esta solução é embebida em algodão e é usada em contato com as mucosas do septo, dos cornetos e dos meatos, não sendo infiltrada no septo. Na literatura médica também não há estudos sobre os efeitos locais do uso de vasoconstritores utilizados em FESS. Nos pacientes relatados, antes do aparecimento da perfuração septal, foram utilizados corticosteróides tópicos nasais, que podem estar relacionados com a ocorrência da perfuração. Pacientes em uso dessa medicação nasal devem ser bem orientados quanto à sua correta utilização e devem ter seguimentos próximos na tentativa de evitar o aparecimento de perfuração septal. Porém, nestes casos não se pode afirmar que o corticosteróide tópico nasal foi o responsável pelas perfurações septais.

COMENTÁRIOS FINAIS

A prevalência de perfuração septal é rara. Existe associação do uso de corticosteróide nasal e a sua ocorrência, mas a incidência também é pequena, apesar de não existirem estudos elucidatórios. Na literatura médica não há relatos de perfuração septal no pós-operatório de FESS sem manipulação septal. Neste estudo, relatamos casos que desenvolveram perfuração septal no pós-operatório de FESS, em vigência do uso de corticosteróide tópico nasal. Não podemos afirmar qual o causador dessas lesões, talvez seja o uso do corticosteróide nasal, cuja associação já é provada na literatura, ou uma somatória de fatores, incluindo o uso de corticosteróide nasal, o estresse cirúrgico e o uso de anestésicos com vasoconstritores no intra-operatório de FESS.

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1 Médica Residente da Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
2 Médico Pós-Graduando da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
3 Professor Associado da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Clarissa Lumi Komatsu - Rua Correia de Lemos 543 - ap. 103 Chácara Inglesa São Paulo SP 04140-000.
Tel (0xx11) 5072-4626- E-mail: clakomatsu@yahoo.com.br
Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Artigo recebido em 01 de setembro de 2004. Artigo aceito em 11 de novembro de 2004.

 

 

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