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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:

Vol.71 ed.6 de Novembro - Dezembro em 2005 (da página 25 à 28)

Autor: José Antonio Pinto1, Rubens H. da Silva2, Roberto D. P. Ferreira2, Delmer J. P. Perfeito3, Mônica Nóbrega3, Ana Carla Marqui3

Relato de Caso

 Lipoidoproteinose (doença de Urbach-Wiethe): manifestações otorrinolaringológicas: relato de 5 casos

INTRODUÇÃO

A lipoidoproteinose (Doença de Urbach-Wiethe) é uma genodermatose autossômica recessiva rara, multissistêmica, e caracterizada por infiltração de material hialino glicolipoidoproteico na pele, mucosa oral, mucosa laríngea e outras vísceras.1,2

Em 1908, Siebnmann, um otorrinolaringologista, descreveu uma doença caracterizada por alterações hialinas na membrana mucosa da orofaringe e lesões hiperqueratóticas na pele. Em 1922, Lutz, um dermatologista, descreveu um caso similar.3-5

Historicamente, a doença de Urbach-Wiethe foi descrita primeiramente por Camilo Wiethe em 1924, sendo que os achados clínicos e patológicos desta doença foram descritos por Erich Urbach e C. Wiethe em 1929 e, em 1932, Urbach usou o termo lipoidoproteinose (LP), pois ocorriam depósitos de lipídeos e proteínas na pele, sendo o termo mais usado atualmente. Outros termos também usados são hialinose, glicolipoidoproteinose, lipoproteinose e doença de Urbach-Wiethe.1,3,5,6 O primeiro caso na literatura otorrinolaringológica foi descrito em 1936 por Tripp.5

Aproximadamente 300 casos de lipoidoproteinose foram relatados na literatura mundial, predominantemente em pessoas de descendência européia. A transmissão ocorre através de um gene autossômico recessivo com alta incidência de consangüinidade.1,2,7-9

As lesões de pele são compostas por pápulas levemente amareladas e amarfinadas, principalmente em cotovelos, joelhos, axilas e região genital.7 A mucosa faríngea, lingual e labial também é afetada por este depósito de substância hialina glicoproteica.7,8

O envolvimento da laringe por áreas de infiltração e lesões nodulares leva ao aparecimento de disfonia desde o nascimento ou no início da infância, sendo geralmente o primeiro e mais proeminente sintoma.7-9 Em uma série de 20 casos na África do Sul em 1963, Heyl encontrou em 75% de seus pacientes rouquidão desde a infância.3,5

Alguns defeitos congênitos metabólicos e ectodérmicos podem estar associados com a doença de Urbach-Wiethe, como anormalidades ortodônticas, distúrbios pigmentares, diabetes mellitus e porfiria.6 O diagnóstico diferencial deve ser feito com amiloidose, sarcoidose, xantomatoses, mixedema e o mais importante é com a protoporfiria eritropoiética.9-11 Um grande número de casos de LP com envolvimento laríngeo podem ser incorretamente diagnosticados como tumores laríngeos e/ou papilomatose.6

Os otorrinolaringologistas devem estar atentos às manifestações otorrinolaringológicas dessa doença e de sua possível necessidade de intervenção cirúrgica.1,2,9

Os autores apresentam 5 casos, sendo 4 irmãos de uma família de 13 irmãos.

RELATO DE CASOS

Caso 1


R.M.P., 25 anos, fem., branca, solteira. Rouquidão há 25 anos, a qual se iniciou aos 3 meses de idade, juntamente com lesões ulceradas da pele que drenavam secreção escura e depois formavam cistos que, ao caírem, deixavam uma depressão na pele. Referia ainda secura nasal com obstrução bilateral e dificuldade à deglutição.

O exame otorrinolaringológico mostrou: orofaringe - lábios espessos, ressecados e fissurados, mucosa esbranquiçada difusamente, com a língua infiltrada, rígida, e com motilidade diminuída. Dentes em precária condição, palato mole infiltrado e pouco móvel. Nariz - pele do vestíbulo nasal espessada e fissurada, mucosa nasal discretamente pálida.

À laringoscopia indireta observamos mucosa espessada, com placas amarelo-esbranquiçadas envolvendo epiglote, ligamentos e bandas ventriculares, pregas vocais espessadas com aspecto granuloso, principalmente na comissura posterior, com a motilidade discretamente diminuída e ausência de movimento ondulatório.

Pele com lesões papulosas branco-amareladas de 1 a 5mm de diâmetro, confluentes, coalescentes ou não, localizadas na região orbital, orifícios nasais, pavilhões auriculares e dorso das mãos. Placas verrucóides nas regiões posteriores dos cotovelos, anterior e posterior dos punhos, superfície extensora das articulações interfalangeanas dos quirodáctilos e pododáctilos, dobra interglútea, região anal, bordas anteriores e posteriores das plantas dos pés e região periungueal dos pododáctilos,com espessamento difuso da pele da face, pescoço e região vertebral inferior. Cicatrizes arredondadas, deprimidas, cor da pele normal ou hipocrômica na região superior do tronco, braços e antebraços e região anterior dos joelhos.

Todas as lesões se distribuem de maneira mais ou menos simétrica. Exames radiológicos e hematológicos não mostraram alterações. Submetida à microlaringoscopia de suspensão foi removido tecido de laringe para estudo histológico, revelando tratar-se de hialinose.

Caso 2

M.B.P., 17 anos, fem., branca, solteira. Disfonia e lesões bolhosas na pele que se iniciaram aos 4 meses de idade, com choro rouco e aparecimento de lesões cutâneas ao nível das articulações. Houve evolução do quadro com a piora das lesões e da disfonia. O exame otorrinolaringológico e dermatológico foram idênticos ao caso 1.

Caso 3

J.B.P., 11 anos, masc., branco, apresentando lesões de pele e disfonia desde os 3 meses de idade. Aos 3 anos de idade apareceram lesões periungueais e labiais com ressecamento, endurecimento e posteriormente rachaduras, demonstrando caráter evolutivo. Exame otorrinolaringológico e dermatológico semelhantes aos casos 1 e 2.

Caso 4

D.B.P., 6 anos, fem., branca, choro rouco desde os 3 meses de idade, aos 6 meses apareceram várias lesões na língua que depois também acometeram aos braços e joelhos, com exame otorrinolaringológico semelhante aos demais.

Caso 5

N.S.C., 5 anos, fem., branca, disfonia desde o nascimento, com choro rouco e lesões tipo placas hiperemiadas que evoluem para bolhas e lesões varioliformes em todo corpo. A disfonia era constante, piorando após abuso vocal, sem dispnéia e afonia. O exame de videolaringoscopia mostrava lesões nodulares em 1/3 médio-anterior de pregas vocais. O restante do exame otorrinolaringológico e dermatológico era semelhante aos demais casos.

DISCUSSÃO

A disfonia normalmente é o primeiro sintoma, percebido já ao nascimento ou precocemente na infância, ocorrendo por presença de infiltração de substância hialina glicoproteica e formação de nódulos nas pregas vocais.1,2,11-13 Todos os pacientes relatados cursavam com este quadro característico. Outras manifestações otorrinolaringológicas são: infiltrações amarelo-esbranquiçadas de lábios, língua, faringe e parotidite recorrente.1,2

A língua encontra-se endurecida e com diminuição da mobilidade; a epiglote e bandas ventriculares também estão infiltradas pelos depósitos hialinos1,7,13,14, como evidenciado em todos os pacientes relatados. Este depósito glicolipoproteico na laringe pode progredir e atingir a supraglote causando obstrução de vias aéreas, resultando em dispnéia e podendo necessitar de traqueotomia. A mucosa palatal, faríngea e gengival quando infiltrada pode levar ao aparecimento de xerostomia.3,4,7,8,14

A pele apresenta uma coloração amarelada, amarfinada e cerea, principalmente em face, pescoço, mãos, joelhos e cotovelos, com lesões em vários estágios evolutivos, desde pápulas até pústulas, que levam à formação de cicatrizes varioliformes.3,5,12,14 Os 5 pacientes apresentavam lesões dermatológicas semelhantes às relatadas acima.

Sintomas neurológicos incluem convulsões e comportamentos paranóides, sendo muitas vezes rotulados de portadores de esquizofrenia.10,11 Além do envolvimento da pele, da mucosa das vias aero-digestivas e do sistema nervoso central, os vasos sanguíneos e glândulas sudoríparas podem apresentar depósitos anormais de glicolipoproteínas.1,7,9,10 Nenhum paciente apresentou este tipo de evolução.

Os achados histopatológicos incluem moderada acantose, hiperqueratose em lesões papilomatosas nas pálpebras, com substituição de tecido conjuntivo por material hialino glicoproteico.1,2 Esta degeneração hialina é corada fortemente com PAS e fracamente com ferro coloidal, sendo a coloração com vermelho Congo negativa para substâncias amilóides.1 As paredes dos vasos sanguíneos encontram-se espessadas por deposição de material hialino, sem deposição em glândulas salivares e folículos pilosos.1,8,9 A coloração de Verhoeff-un Greson mostra aumento de fibras elásticas na camada profunda dos lábios.8,9,11,12

O diagnóstico é confirmado por biópsias das lesões de pele, que mostram degeneração hialina e lipídios positivo ao redor de vasos e apêndices cutâneos (figuras tipo candelabro), e estudo histopatológico de lesões de cavidade oral e laringe, mostrando processos hialinos difusos.5,9,11,14 Nos 5 pacientes foi realizado exame laringoscópico direto com estudo histopatológico, sendo que as biópsias realizadas ao nível da epiglote e aritenóides revelou acantose no epitélio de revestimento com hialinização difusa do corium, confirmando o diagnóstico.

Não há tratamento efetivo conhecido para a Doença de Urbach-Wiethe, sendo sua evolução geralmente benigna. O tratamento oral com etinetrato e corticosteróides tem dado bons resultados; a dermabrasão, peeling químico e blefaroplastias para as lesões de pele e pálpebras apresentam sucesso limitado. Utiliza-se a microlaringoscopia com remoção de granulações e nodulações da laringe para melhora da rouquidão e da dispnéia, sendo necessária traqueotomia quando ocorre obstrução da via aérea por grande infiltração laríngea.1,5,9,11,12


Figura 1. Lábios espessos, ressecados e fissurados, língua rígida, firme.




Figura 2 e 3. Microfotografia de lesões laríngeas, mostrando processo hialino difuso.


Figura 4. Laringe normal, após tratamento.


CONCLUSÃO

O otorrinolaringologista deve estar atento e suspeitar de lipoidoproteinose (Doença de Urbach-Wiethe) em pacientes com história de disfonia desde o nascimento com lesões de pele e problemas respiratórios associados ou não ao quadro.

O tratamento clínico e cirúrgico utilizado na atualidade apresenta resultados satisfatórios para o controle da sintomatologia dermatológica e otorrinolaringológica, sendo então a melhor conduta o acompanhamento regular destes pacientes, para prevenir piora do quadro otorrinolaringológico, principalmente o padrão respiratório e evitar uma possível traqueotomia, já que ainda não temos um tratamento efetivo e curativo.

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1 Diretor do Núcleo de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço de São Paulo, e do serviço de otorrinolaringologia do Hospital e Maternidade São Camilo.
2 Médicos assistentes do Núcleo de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço de São Paulo.
3 Residentes do Núcleo de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço de São Paulo.
Trabalho realizado no Núcleo de Otorrinolaringologia e Cirurgia de Cabeça e Pescoço de São Paulo.
Endereço para correspondência: José Antonio Pinto - Alameda dos Nhambiquaras 159 Moema 04090-010 São Paulo SP.
Tel./Fax: (0xx11) 5573-1970 - E-mail: delmerjonas@uol.com.br/ japorl@cepa.com.br
Artigo recebido em 25 de agosto de 2004. Artigo aceito em 30 de setembro de 2004.

 

 

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