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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:
Vol.71 ed.6 de Novembro - Dezembro em 2005 (da página 3 à 6)
Autor: Sílvio A. M. Marone1, José A M. Silveira2, Oswaldo Martucci Jr3, Karla P. Portes4, Maria Renata F. Jorge4, Luís Cláudio do Carmo4
Relato de Caso
Introdução
A doença de Madelung foi descrita pela primeira vez em 1846, e desde então, estima-se que foram descritos 200 casos na literatura¹. É uma enfermidade pouco freqüente, caracterizada por depósitos de tecido adiposo no pescoço, ombros e extremidades superiores². A moléstia é considerada uma doença benigna, entretanto, a compressão de vias aéreas e do trato digestivo superior, em fases adiantadas da doença, pode levar a sintomas como disfonia e dispnéia, simulando, muitas vezes, a ação de tumores que acometem a região, sendo necessário estabelecer precocemente um diagnóstico diferencial.³
A etiologia ainda é obscura, porém há uma nítida relação com a ingestão crônica de álcool4 e com alterações do metabolismo lipídico, com prevalência maior em famílias oriundas da região do Mediterrâneo2,6. Relatos de doença de Madelung com apresentação familiar são raros e ainda não se conseguiu correlacionar alterações citogenéticas e mitocondriais com a patologia, permanecendo pouco clara a etiologia.7
Diversas alternativas terapêuticas foram propostas visando principalmente alívio dos sintomas compressivos e correção estética, contudo, todas são consideradas opções paliativas, graças ao alto índice de recorrência ocasionada pela lipodistrofia2,8,9.
Descrição do caso
J.D.M., 59 anos, branco, procedente de São Paulo, descendente de italianos, comerciante. Procurou o Serviço de Otorrinolaringologia da Casa de Saúde Santa Marcelina com queixa de disfonia, dispnéia e disfagia progressiva há cerca de seis meses, que coincidiam com o aparecimento de tumorações que comprometiam toda a região cervical. A dispnéia ocorria aos esforços e principalmente à noite, relatando inclusive episódios de apnéia noturna.
Referia ingestão crônica de álcool em grande quantidade (cerca de um litro de aguardente por dia) e tabagismo, 2 maços/ dia por cerca de trinta anos. O paciente ainda relatava ter cessado tabagismo e etilismo há cerca de dois anos. Negava emagrecimento ou tosse com escarro hemoptóico. Informava antecedentes de dislipidemia e hipertensão arterial.
Ao exame físico geral apresentava-se em bom estado, corado, acianótico, eupnéico em repouso, PA:140X90 mmHg e afebril. No exame físico especial, da região cervical, apresentava aumento do volume do pescoço, com aspecto de "horse collar" ou "buffalo hump". A palpação cervical revelava nódulos com diâmetros variáveis distribuídos por toda região cervical. Os nódulos apresentavam-se como estruturas endurecidas pouco móveis, sem sinais flogísticos e limites pouco precisos em relação às estruturas subcutâneas cervicais.
Em virtude da disfonia foi submetido à nasofibrolaringoscopia onde encontramos fossas nasais e rinofaringe dentro dos padrões de normalidade. A base da língua, as cartilagens aritenóides, as regiões interaritenoídeas e retroaritenoídeas também não apresentavam alterações. Notamos hipertrofia das bandas ventriculares, mais acentuada à esquerda, limitando a inspeção total da prega vocal esquerda. À fonação, observamos paralisia da hemilaringe esquerda. Houve impossibilidade de visualização da subglote.
Para uma avaliação mais criteriosa da origem da paralisia da prega vocal esquerda, foram realizadas tomografias computadorizadas da base do crânio, tórax e região cervical, e endoscopia digestiva alta. As tomografias de tórax e base de crânio e a endoscopia digestiva alta apresentaram-se dentro dos limites da normalidade, entretanto, a tomografia cervical revelou imagens sugestivas de comprometimento erosivo das cartilagens cricóide e tireóide, além de imagens hipodensas em região cervical, não-infiltrativas, sob o platisma não havendo sinais de comprometimento dos linfonodos cervicais.
As tentativas de biopsiar a prega vocal esquerda por laringoscopia direta não obtiveram sucesso, devido às dificuldades em se obter tecido da prega vocal verdadeira, cujo acesso era prejudicado pelo espessamento das bandas ventriculares, infiltradas por tecido gorduroso.
Em virtude da significativa dispnéia, principalmente noturna, optou-se pela traqueostomia eletiva para preservação das vias aéreas superiores até que se concluísse o diagnóstico e o tratamento mais adequado fosse instituído. Para a realização da traqueostomia, foi necessária a remoção dos lipomas localizados na região anterior do pescoço.
Uma nova biópsia, agora por laringoscopia de suspensão, encontrou as mesmas dificuldades em obter material suficiente para o estudo histopatológico do tecido da prega vocal esquerda.
Nova biópsia foi realizada por broncoscopia retrógrada através da cânula de traqueostomia. Desta vez, o exame histopatológico revelou que a prega vocal paralisada apresentava-se comprometida por neoplasia maligna, classificada como carcinoma espinocelular pouco diferenciado.
O tratamento proposto foi laringectomia radical, retirada dos lipomas cervicais e radioterapia adjuvante.
Discussão
A literatura descreve várias manifestações associadas à doença de Madelung, sendo comum as polineuropatias e até encefalopatia de Wernick, geralmente associadas ao etilismo crônico10,11.
O tecido gorduroso pode comprimir a faringe, laringe, traquéia e esôfago. A laringe pode estar comprometida não apenas pela compressão externa como também pela infiltração gordurosa do nervo laríngeo recorrente12. Os sintomas causados pela compressão, como disfonia e dispnéia, geralmente acometem pacientes em estágios avançados da doença, cerca de seis a oito anos, e os sintomas coincidem com o aparecimento das massas tumorais no pescoço2. O paciente do presente estudo referia que o início da disfonia e da dispnéia coincidiam com o aparecimento das massas tumorais, porém o aparecimento das tumorações e sintomatologia compressiva e de caráter progressivo iniciaram-se há apenas seis meses da data da primeira consulta, precoce quando comparada à literatura já citada. O aparecimento e a progressão rápida dos sintomas forçam-nos a investigar a existência de doença maligna expansiva associada. Além disso, as imagens tomográficas cervicais sugeriam aumento do tecido adiposo subcutâneo cervical, porém não havia evidências de compressão de estruturas cervicais. Havia sinais de espessamento da prega vocal e banda ventricular esquerdas e comprometimento erosivo das cartilagens cricóide e tireóide, tornando-se imperativa a pesquisa histopatológica da prega vocal afetada.
Este não é o primeiro trabalho a tentar demonstrar que a doença de Madelung pode estar associada ao desenvolvimento de neoplasias de cabeça e pescoço. Tizian et al. afirmam que a degeneração maligna do tecido gorduroso que se deposita na região cervical e regiões superiores do tórax é extremamente rara13. Os trabalhos de Chan E.S8 e Guastella C14 descrevem dois casos de doença de Madelung, em cada trabalho, associada ao desenvolvimento de tumores de laringe. Os paciente apresentados nestes relatos eram tabagistas e etilistas de longa data, assim como o paciente deste estudo. Os autores, porém, não afirmam se a neoplasia de laringe faz parte da evolução da doença de Madelung. Outras séries de estudos realizados em pacientes com doença de Madelung não mostram este tipo de evolução.1,3,5 Acredita-se que este sincronismo esteja correlacionado ao efeito sinérgico entre fatores predisponentes para ambas as moléstias (fumo e álcool).8,14
Os tratamentos propostos nos estudos realizados visam corrigir as deformidades estéticas causadas pelas tumorações cervicais e aliviar os sintomas compressivos. Entre os trabalhos citados encontramos várias técnicas cirúrgicas1, técnicas utilizando lipossucção guiadas por ultra-sonografia2 e até injeções medicamentosas como a enoxiparina7. Todas essas técnicas são consideradas tratamentos paliativos, já que a lipomatose tem alto índice de recorrência.9
Em nosso estudo, preocupamo-nos em remover os lipomas para melhor avaliação do comprometimento neoplásico das cadeias cervicais. A escolha da terapia combinada (laringectomia radical e radioterapia) foi baseada no estadiamento do tumor (estádio III do sistema TNM), de acordo com a literatura mundial, e no seguimento mensal do paciente durante o primeiro ano.15
Figura 1. Visão frontal e perfil do paciente. Observar o acúmulo de tecido gorduroso em região cervical, característicos da S. de Madelung.
Figura 2. Observar a hipertrofia das bandas ventriculares, dificultando a visualização adequada das pregas vocais e da região subglótica.
Figura 3. Cortes tomográficos sugerem aumento do tecido gorduroso subcutâneo, comprometimento da prega vocal esquerda, erosão das cartilagens cricóide e tireóide e ausência de comprometimento das cadeias linfáticas cervicais.
Comentários Finais
A doença de Madelung ainda é uma doença pouco estudada. Embora a literatura descreva casos onde os sintomas disfonia e dispnéia são causados por simples compressão direta do tecido gorduroso sobre as vias respiratórias e digestivas altas, o especialista deve lembrar-se que os fatores de risco para a doença de Madelung e carcinoma de laringe agem de forma sinérgica. Portanto, é fundamental que se estabeleça um diagnóstico diferencial o mais precoce possível, através de um exame otorrinolaringológico completo e complementação por exames de imagens, laringoscopia direta e exames histopatológicos.
Referências Bibliográficas
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15. Fundação Oncocentro. Manual de Oncologia Clínica. Tradução da sexta edição original. 1999; cap 16: 280-81.
1 Professor Doutor em Otorrinolaringologia da FMUSP. Professor titular de Otorrinolaringologia da PUC de Campinas.
Coordenador da Residência de Otorrinolaringologia da Casa de Saúde Santa Marcelina, São Paulo.
2 Professor doutor em Otorrinolaringologia da FMUSP.
3 Responsável clínico pelo Serviço de otorrinolaringologia da Casa de Saúde Santa Marcelina, São Paulo.
4 Médicos Residentes do Serviço de Otorrinolaringologia da Casa de Saúde Santa Marcelina, São Paulo.
Trabalho realizado pelo Serviço de Otorrinolaringologia da Casa de Saúde Santa Marcelina, São Paulo e no Centro de
Estudos Alexandre Médicis da Silveira, Clínica Otorhinus.
Apresentado no 3º Congresso de Otorrinolaringologia da Universidade de São Paulo no dia 09 de agosto de 2003, São Paulo SP.
Endereço para correspondência: Karla Palma Portes - Rua Templários 520 ap.93 03357-000 São Paulo SP.
Tel (0xx11) 6671-0539/ 979 - E-mail: kportes@yahoo.com.br
Artigo recebido em 14 de abril de 2004. Artigo aceito em 06 de agosto de 2004.