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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:

Vol.71 ed.5 de Setembro - Outubro em 2005 (da página 21 à 25)

Autor: José Ricardo G. Testa1, Daniela Gil2, Karin N. Ziliotto3, Leandro O. de Souza4

Relato de Caso

 Síndrome do aqueduto vestibular alargado: relato de caso

Introdução

O aqueduto vestibular (AV) é um canal ósseo dentro da cápsula ótica que contém o ducto e parte do saco endolinfático. Esta estrutura estende-se da parede medial do vestíbulo em direção à superfície posterior da pirâmide petrosa do osso temporal. O ducto endolinfático atravessa este canal.

Valvassori foi o primeiro a descrever alterações auditivas associadas a anormalidades do aqueduto vestibular em 1967. Este estudo apresentou o maior número de pacientes com evidências radiográficas da presença de um alargamento do aqueduto vestibular. Este autor relatou 160 casos com aqueduto vestibular alargado em 7000 casos encaminhados consecutivamente para a realização de tomografia. É importante observar que destes 160 casos, 61 apresentavam alargamento do aqueduto vestibular como uma alteração isolada1.

A síndrome do aqueduto vestibular alargado foi definida radiologicamente por Valvassori & Clemis2 e é a anomalia congênita isolada da orelha interna mais comum3. O aqueduto vestibular pode crescer até os quatro anos de idade e seu alargamento é definido na tomografia computadorizada (TC) como um diâmetro superior ou igual a 1,5mm2,4. A estrutura e a conFiguração da parte membranácea somente são estudadas por meio da ressonância nuclear magnética (RNM).

O aqueduto vestibular alargado (AVA) geralmente está associado à perda auditiva congênita ou adquirida precocemente, a qual pode ser puramente neurossensorial ou mista. Geralmente, a perda auditiva é progressiva e bilateral5. A conFiguração audiométrica mais comum é a descendente, acometendo mais as freqüências altas. Pode haver componente condutivo nas freqüências mais baixas6. As queixas vestibulares são raras.

O tratamento conservador que inclui evitar a prática de esportes de contato e a ocorrência de traumas cranianos é o mais indicado, uma vez que a oclusão cirúrgica do AVA não demonstrou benefício significativo na preservação da audição7.

O objetivo deste estudo é apresentar o caso de uma paciente do sexo feminino com diagnóstico de síndrome do aqueduto vestibular alargado bilateralmente e que apresenta perda auditiva neurossensorial de grau leve a moderadamente severa unilateral, à esquerda. Os dados de seguimento audiológico serão descritos.

Apresentação de Caso Clínico

R.M.C.B., do sexo feminino, com 6 anos de idade.

Esta paciente foi submetida ao programa de triagem auditiva neonatal, ao nascimento, em maio de 1997, cujo resultado revelou emissões otoacústicas transitórias presentes bilateralmente.

No início do ano de 2000, a paciente foi avaliada pelo médico otorrinolaringologista e à anamnese foi constatada história pregressa de otite média aguda de repetição (OMAR) dos 6 meses aos 3 anos e 5 meses. Não apresentou atraso quanto ao desenvolvimento neuropsicomotor, de fala e de linguagem. Não foram referidos episódios de trauma craniano ou outras doenças. Na época, à avaliação otorrinolaringológica observou-se respiração bucal de suplência, com roncos noturnos. Ao exame físico, foi diagnosticada hipertrofia adenoamigdaliana e otite média serosa (OMS). A paciente foi submetida à timpanotomia bilateral para colocação de tubo de ventilação, tipo Shepard e adenoamigdalectomia. Este procedimento ocorreu sem intercorrências, com melhora das queixas respiratórias.

Seis meses após o procedimento cirúrgico, ocorreu um novo episódio de infecção de vias aéreas superiores (IVAS), acompanhado de otalgia. À audiometria tonal liminar, verificou-se limiares auditivos tonais normais na orelha direita e perda auditiva condutiva na esquerda (Figura 1). Foi realizado tratamento clínico com descongestionantes sistêmicos. Após o tratamento clínico, a avaliação audiológica demonstrou resultados compatíveis com os critérios de normalidade estabelecidos, em ambas as orelhas.

Em fevereiro de 2003, tendo a paciente 6 anos e 9 meses de idade, foi solicitada avaliação audiológica de rotina para ingresso na primeira série do ensino fundamental. Até esse momento, a mãe e a criança não referiam dificuldades auditivas. Esta avaliação audiológica revelou limiares auditivos normais na orelha direita para as freqüências sonoras de 250Hz a 8000Hz. Na orelha esquerda, verificou-se perda auditiva neurossensorial de grau leve a moderadamente severo, com configuração descendente com entalhe na freqüência sonora de 2000Hz e melhora dos limiares nas freqüências sonoras de 6000Hz e 8000Hz (Figura 2). As medidas de logoaudiometria apresentaram-se compatíveis com os achados da audiometria tonal bilateralmente.

As medidas de imitância acústica evidenciaram curva timpanométrica tipo A, bilateralmente e reflexos acústicos presentes no modo contralateral direito e no modo contralateral esquerdo presentes para as freqüências sonoras de 500 e 1000Hz e ausentes, em 2000Hz e 4000Hz.

Após esta avaliação inicial, a criança foi novamente encaminhada ao médico otorrinolaringologista que solicitou Eletrococleografia (ECochG), Exame de Emissões Otoacústicas (EOA) e Tomografia Computadorizada (TC) dos Ossos Temporais, como exames complementares.

A ECochG revelou resultados normais à direita e hidropsia endolinfática à esquerda.

Ao exame de EOA evocadas transitórias e por produto de distorção, observou-se presença de respostas na orelha direita e respostas ausentes na orelha esquerda. Estes dados sugerem função coclear normal (células ciliadas externas) na orelha direita e disfunção coclear na orelha esquerda.

A tomografia computadorizada dos ossos temporais revelou alargamento bilateral dos aquedutos vestibulares (Figuras 3 e 4).

Com base nos exames realizados, a hipótese diagnóstica de síndrome do aqueduto vestibular alargado foi confirmada.

Optou-se por não realizar a ressonância nuclear magnética, pois este procedimento não contribuiria efetivamente para as medidas diagnósticas e terapêuticas.

A conduta otorrinolaringológica foi o acompanhamento audiológico trimestral. A família foi orientada quanto à necessidade de evitar a prática de esportes de contato e traumas cranianos, ainda que leves. A escola foi orientada quanto ao posicionamento da criança em sala de aula e observação do comportamento auditivo da mesma.

O acompanhamento audiológico foi realizado em junho de 2003 e em setembro de 2003, quatro e sete meses, respectivamente, após o diagnóstico. Estas avaliações audiológicas revelaram estabilidade da perda auditiva, quanto aos limiares auditivos tonais, logoaudiometria e quanto às medidas de imitância acústica (Figuras 5 e 6). Importante ressaltar que as medidas de logoaudiometria da orelha esquerda que aparecem nas Figuras 2, 5 e 6 foram obtidas com a utilização de mascaramento (speech noise) na orelha direita.

Em setembro de 2003, a criança também foi submetida à avaliação de processamento auditivo, priorizando testes de escuta diótica e monótica à orelha direita, e os resultados obtidos apresentaram-se dentro dos critérios de normalidade esperados para a faixa etária.



Figura 1. Resultados da audiometria tonal liminar e logoaudiometria em julho de 2000


Figura 2. Resultados da audiometria tonal liminar e logoaudiometria em fevereiro de 2003


Figura 3. Resultados da tomografia computadorizada de ossos temporais (orelha esquerda)


Figura 4. Resultados da tomografia computadorizada de ossos temporais (orelha direita)


Figura 5. Resultados da audiometria tonal liminar e logoaudiometria em junho de 2003


Figura 6. Resultados da audiometria tonal liminar e logoaudiometria em setembro de 2003


Discussão

No período compreendido entre a 4a e a 8a semana de vida intra-uterina, etapa denominada de período embrionário, os três folhetos - ectoderma, mesoderma e endoderma - já presentes, darão início à formação de estruturas primitivas que irão transformar-se em diferentes tecidos, os quais, posteriormente, formarão órgãos específicos. O ectoderma dá origem aos órgãos e estruturas, a saber: sistema nervoso central, sistema nervoso periférico, ouvido, nariz e olhos, pele, incluindo pêlos e unhas, glândulas subcutâneas, glândulas mamárias, hipófise e esmalte dentário. Os esboços da orelha interna aparecem aproximadamente na terceira semana de gestação, em forma de duas placas de epitélio superficial engrossado, os placóides óticos. Cada placóide invagina-se, transformando-se em uma fosseta ótica. Depois, a abertura desta fosseta fecha-se e forma uma vesícula denominada otocisto (vesícula ótica ou auditiva). Uma prega vertical da parede do otocisto forma um divertículo tubular em sua face interna. Este se diferencia e forma o ducto e o saco endolinfático que se comunica com o restante da vesícula denominada câmara utriculossacular. Esta câmara dará origem aos canais semicirculares e à cóclea8.

No início da embriogênese, o ducto endolinfático é curto, retilíneo e proporcionalmente muito mais largo do que na vida adulta. Subseqüentemente, o ducto torna-se mais estreito e alongado e assume a forma típica de "J", aproximadamente aos quatro anos de idade. Alguns autores1,5,9 acreditam que um trauma teratogênico à orelha interna, durante os primeiros estágios de desenvolvimento, faz com que o ducto mantenha a sua forma fetal, isto é, alargado. Teoricamente, o mesmo trauma poderia afetar o desenvolvimento da vesícula ótica e explicar a freqüente coexistência do alargamento do aqueduto vestibular com outras anomalias da orelha interna. Outros autores10 sugerem que a síndrome do aqueduto vestibular alargado resulta de uma falha no desenvolvimento do saco e do aqueduto vestibular no período fetal e pós-natal. De acordo com Pyle11, que realizou medidas do aqueduto vestibular em uma série de embriões humanos, há um crescimento progressivo e não-linear do aqueduto vestibular durante todo o período gestacional. Sabe-se que o labirinto membranáceo está completamente formado com 20 semanas de gestação, à exceção do aqueduto vestibular que continua a crescer durante a vida fetal e postula-se que este crescimento ocorreria até os 3 ou 4 anos de idade. Portanto, falhas no crescimento do aqueduto vestibular após as 20 semanas de gestação explicariam melhor a existência do aqueduto vestibular alargado sem a presença de outras anormalidades da orelha interna.

Há muitas questões sobre a patogênese da perda auditiva associada ao alargamento do aqueduto vestibular. Já foi demonstrado que o grau da perda auditiva não está relacionado ao tamanho do aqueduto vestibular12 e muitas teorias têm sido propostas para explicar a perda auditiva nos casos de síndrome do aqueduto vestibular alargado. Segundo Tan13, normalmente a orelha interna não é afetada por variações súbitas e rápidas na pressão intracraniana, devido ao fato de os aquedutos vestibular e coclear serem estreitos. Quando o aqueduto vestibular é alargado e o aqueduto coclear apresenta tamanho normal, qualquer flutuação na pressão do líquido cefalorraquidiano, por exemplo, em um trauma craniano, poderia provocar desequilíbrios transitórios na cóclea, resultando em lesão ao labirinto membranoso13.

A síndrome do aqueduto vestibular alargado provavelmente é responsável por 1,5% dos casos de perda auditiva neurossensorial em crianças e adolescentes9,11.

Em estudos retrospectivos5,9,12, observou-se que a perda auditiva neurossensorial era predominantemente estável no grupo de pacientes com o diagnóstico de síndrome do aqueduto vestibular alargado. Para que a perda auditiva seja considerada progressiva, há necessidade de observar-se piora da média dos limiares auditivos das freqüências de 500, 1000 e 2000Hz em 15dB ou piora superior a 20dB em freqüências isoladas9.

Vários estudos2,9,14 apontam para maior prevalência da síndrome do aqueduto vestibular alargado em pacientes do sexo feminino, também referindo que o envolvimento bilateral é duas vezes mais comum do que o unilateral. Importante ressaltar que apesar de a síndrome do aqueduto vestibular alargado estar presente em ambas as orelhas desta paciente, apenas a orelha esquerda apresenta perda auditiva. Este fato é citado como raro na literatura especializada5. No entanto, a presença do aqueduto vestibular alargado bilateralmente, mesmo com limiares auditivos normais na orelha direita constitui um fator de risco para instalação de perda auditiva nesta orelha, o que reforça a necessidade de acompanhamento audiológico para esta criança15.

Comentários Finais

Com este relato de caso, pretendemos alertar para a importância de se investigar a síndrome do aqueduto vestibular alargado nos casos de perda auditiva congênita ou adquirida nos primeiros anos de vida.

Referências Bibliográficas

1. Valvassori GE. The large vestibular aqueduct and associated anomalies of the inner ear. Otolaryngol Clin North Am 1983; 16: 95-101.

2. Valvassori GE & Clemis JD. The large vestibular aqueduct syndrome. Laryngoscope 1978; 88: 723-48.

3. Mafee MF, Charletta D, Kumar A & Belmont H. Large vestibular aqueduct and congenital sensorioneural hearing loss. AJNR Am J Neuroradiol 1992; 13: 805-19.

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5. Emmett JR. The large vestibular aqueduct syndrome. Am J Otol 1985; 6: 387-403.

6. Sato E, Nakashima T, Lilly DJ, Fausti SA, Ueda H, Misawa H, Uchida Y, Furuhashi A, Asahi K & Naganawa S. Tympanometric findings in patients with enlarged vestibular aqueducts. Laryngoscope 2002; 112: 1642-6.

7. Welling DB, Martyn MD, Miles BA, Oehler M & Schmalbrock P. Endolymphatic sac occlusion for the enlarged vestibular aqueduct syndrome. Am J Otol 1998; 19: 145-51.

8. Macedo F. Embriologia do conjunto crânio-oro-cervical. In: Campos CAH. & Costa HOO. Tratado de Otorrinolaringologia São Paulo: Editora Roca; 2002. p.3-32.

9. Arcand P, Desrosiers M, Dubé J & Abela A. The large vestibular aqueduct syndrome and sensorioneural hearing loss in the pediatric population. J. Otolaryngol 1991; 20 (4): 247-50.

10. Okomura T, Takahaski H, Honjo I, Takagi A. & Mitamura K. Sensorioneural hearing loss in patients with large vestibular aqueduct. Laryngoscope 1995; 105: 289-94.

11. Pyle GM. Embryological development and large vestibular aqueduct syndrome. Laryngoscope 2000; 110: 1837-42.

12. Zalzal GH, Tomaski SM, Vezina LG, Bjornsti P & Grundfast KM. Enlarged vestibular aqueduct and sensorioneural hearing loss in childhood. Arch Otolaryngol Head Neck Surg 1995; 121: 23-8.

13. Tan TY. Large endolymphatic duct and sac syndrome - A case report. Singapore Med J 1999; 40 (5): 359-61.

14. Schessel DA & Nedzelski JM. Presentation of large vestibular aqueduct syndrome to a dizziness unit. J Otolaryngol 1992; 21 (4): 265- 9.

15. Yetiser S, Kertmen M & Özkaptan Y. Vestibular disturbance in patients with large vestibular aqueduct syndrome (LVAS). Acta Otolaryngol (Stockh) 1999; 119: 641-6.

1 Médico, Professor Adjunto Doutor em Otorrinolaringologia da Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
2 Fonoaudióloga, Pós-Graduanda, nível doutorado, em Ciências dos Distúrbios da Comunicação Humana -
Campo Fonoaudiológico pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
3 Fonoaudióloga, Pós-Graduanda, nível doutorado, em Ciências dos Distúrbios da Comunicação Humana -
Campo Fonoaudiológico pela Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina.
4 Médico Estagiário do 1o ano, nível Latu sensu, em Otorrinolaringologia no Hospital Paulista de Otorrinolaringologia.
Instituição: Universidade Federal de São Paulo - Escola Paulista de Medicina
Endereço para correspondência: Dr. José Ricardo Gurgel Testa - Rua Roma 620 cj. 113 A 11º andar Lapa 05050-000.
Tel (0xx11) 3862-2637/ 3672-8178 - E-mail: DRTESTA13@aol.com
Trabalho aceito para apresentação oral no 19o Encontro Internacional de Audiologia, em Bauru, São Paulo, no período de 29 de abril a 1 de maio de 2004.
Artigo recebido em 24 de março de 2004. Artigo aceito em 20 de maio de 2004.

 

 

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