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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:
Vol.71 ed.5 de Setembro - Outubro em 2005 (da página 11 à 13)
Autor: Carlos E. M. Barcelos1, Dafne P. Cerchiari1, Renata D. de Moricz2, Ronaldo A. Giusti3, Fernando Veiga Angélico Junior4, Priscila B. Rapoport5
Relato de Caso
INTRODUÇÃO
A síndrome de Bernard-Soulier (SBS) figura entre as coagulopatias, com prevalência de 0,2 -2% dentre as desordens qualitativas plaquetárias. A apresentação habitual pode ser de sangramento cutâneo, mucoso ou visceral. Assim, na presença de epistaxe recorrente, geralmente grave, a qual necessita da intervenção do otorrinolaringologista, nota-se a importância da síndrome. O relato de caso visa descrever a SBS e destacar aspectos relacionados à etiologia da epistaxe recorrente na infância.
REVISÃO DE LITERATURA
A Síndrome de Bernard-Soulier (SBS), descrita por Bernard et al. (1948) é uma desordem sanguínea familiar caracterizada pela presença não habitual de plaquetas gigantes, trombocitopenia discreta e sangramento desproporcional à redução do número de plaquetas. Clinicamente, apresenta-se como sangramento moderado a severo, hematoma espontâneo, epistaxe e menorragia. Trata-se de um distúrbio hereditário autossômico recessivo com relato de consangüinidade entre as famílias acometidas.
A definição encontrada na literatura para epistaxe recorrente (ER) não é unânime, sendo a mais aceita a ocorrência de 3 ou mais episódios de sangramento nasal ao ano em 2 anos consecutivos1.
Segundo Beram e Petruson1, cerca de 4% da população geral apresenta ER, sendo a maior taxa encontrada em indivíduos menores de 20 anos (8%), observando-se queda da prevalência com aumento da faixa etária. Dados populacionais mostram que, durante a infância, 56% das crianças apresentam epistaxe recorrente e 83% têm epistaxes esporádicas até os 10 anos de idade2. Nestes casos, a epistaxe cessa dentro de 10 minutos em 76% das vezes.
Os fatores causais classicamente descritos incluem: rinite alérgica, infecção, trauma, anormalidades anatômicas, medicações, neoplasias e coagulopatias. Observa-se que crianças com rinite alérgica apresentam maior prevalência de ER que outras crianças3. Infecções do trato respiratório alto figuram entre os principais desencadeantes de epistaxe, sobretudo na infância. Muitos dos pacientes com ER notam relação entre sangramento e frio, trauma digital e stress físico.
Embora descrita como clássica, a relação entre epistaxe e uso de salicilatos, bem como níveis pressóricos mais elevados, não foi notada em estudo realizado por Beran e Petruson1. Apesar da diversidade dos fatores associados à ER, em dois terços dos casos não se identifica o fator causal4. Assim, dentre os fatores causais, ganham destaque aqueles relacionados às discrasias hematológicas.
Segundo Bachmann5, um terço dos pacientes com ER na infância eram portadores de discrasias sanguíneas. Sandoval et al.6, em análise retrospectiva, evidenciaram coagulopatia em um terço dos pacientes com discrasias sangüíneas, corroborando achados de Kiley et al.7.
Achados clínico-laboratoriais no estudo de Sandoval et al.6, mostraram que existe maior probabilidade de haver coagulopatia não-identificada em crianças com história familiar de sangramento nasal, prolongamento do tempo de tromboplastina parcial ativada maior que 33 segundos, níveis de hemoglobina abaixo de 12 g/dl e de plaquetas em número menor que 273.000 mm4.
Dentre as coagulopatias, a Doença de von Willebrand corresponde a 56% dos diagnósticos firmados. A SBS apresentou prevalência estimada de 3% nos casos de ER.
RELATO DE CASO
L.M., feminino, 8 meses, apresentando epistaxe unilateral por fossa nasal direita, de leve intensidade, espontânea, controlada com tamponamento anterior. Permaneceu por 48h com o tampão, não havendo sangramento na retirada do mesmo.
Com um ano e seis meses de idade, a paciente apresentou epistaxe intensa com repercussão hemodinâmica, necessitando de hemotransfusão. Apresentava hemoglobina 4,8 mg/dl e plaquetas 40.000 mm3. Em investigação laboratorial, evidenciou-se dosagem normal de fator de von Willebrand e macroplaquetas. O coagulograma apresentava tempo de sangramento alterado. Não havia história familiar de sangramento. Ao exame físico, observou-se presença de hematomas e equimoses disseminadas pelo corpo. Nasofibrolaringoscopia e tomografia de seios paranasais eram normais.
Em investigação hematológica, apresentava hemograma com tempo de sangramento prolongado, retração de coágulo e agregação plaquetária pelo ADP e colágeno normais. O achado característico foi a diminuição da glicoproteína 1b por método ELISA, fechando diagnóstico de Síndrome de Bernard-Soulier.
Até os seis anos, idade atual, a criança cursou com ER (30 episódios/ano), de intensidade variável. Necessitou de várias internações em UTI, nas quais recebeu hemotransfusão, por epistaxe e hemorragia digestiva alta. O manejo das epistaxes variou de acordo com a intensidade das mesmas, sendo utilizadas desde cauterizações com ácido tricloroacético até tamponamento nasal anterior e ântero-posterior.
Atualmente a paciente encontra-se com os sangramentos controlados, apresentando epistaxes mais leves e esporádicas, mantendo 80.000 plaquetas e hemoglobina de 10 mg/dl.
DISCUSSÃO
A epistaxe é um sintoma comum na infância, habitualmente assistida por otorrinolaringologistas em conjunto com os hematologistas.
Na SBS, os heterozigotos são assintomáticos, podendo apresentar níveis reduzidos de glicoproteína 1b na membrana plaquetária. Essa glicoproteína está envolvida na interação entre o fator de von Willebrand (vWF) com a membrana, essencial na adesão plaquetária durante as fases iniciais da hemostasia primária. Esse dado é confirmado por estudos funcionais nos quais o desnudamento vascular mostra a ausência de adesão plaquetária. As plaquetas dos pacientes com SBS ligam-se anormalmente aos fatores V, IX e XI e apresentam menor número de sítios de ligação à trombina. Os achados laboratoriais da SBS são característicos: trombocitopenia variável e flutuante, tempo de sangramento prolongado, porém a retração do coágulo e agregação plaquetária pelo ADP e colágeno são normais.
A agregação plaquetária pela trombina, vWF e ristocetina são deficientes, não sendo corrigida pela adição de vWF normal. A determinação de níveis da glicoproteína 1b nas plaquetas por método de ELISA constitui o diagnóstico preciso do distúrbio.
O diagnóstico diferencial da síndrome é feito com desordens plaquetárias congênitas com morfologia e função anormais, sendo o principal a púrpura trombocitopênica auto-imune. A transfusão plaquetária deve ser resguardada para casos extremos uma vez que múltiplas transfusões determinam risco aumentado de aloimunização. Esplenectomia e corticoterapia são controversos e a tendência atual é a administração de acetato de desmopressina, bem como a transfusão de fator VIIa recombinante. O prognóstico é considerado reservado, pois hemorragias fatais podem ocorrer. Por razões desconhecidas, a doença tende a melhorar com a idade8.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de casos com manifestação recorrente de epistaxe, torna-se imperioso a busca do fator causal, em especial as coagulopatias, permitindo o seguimento adequado do paciente.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Beran M, Petruson B. Ocurrence of epistaxis in habitual nose bleeders an analysis of some etiological factors. ORL 1986; 48: 297-303.
2. Guarisco JL, Graham HD. Epistaxis in children: causes, diagnosis and treatment. Ear nose throat J 1989; 68: 522-38.
3. Girsch LS. Allergic rhinitis, a common cause of recurrent epistaxis in children. AMA J Dis Child 1960; 99: 819-21.
4. Petruson B. Epistaxis clinical study with special reference to fibrinolysis. Acta Oto-Lar Suppl 1974: 317.
5. Bachman F. Diagnostic approach to mild bleeding disorders. Semin Hematol 1980; 17: 292-305.
6. Sandoval C, Dong S, Visintainer P, Fevzin M, Jayabose S. Clinical and laboratory features of 178 children with recurrent epistaxis. Journal of Pediatric Hematology Oncology 2002; 24: 47-9.
7. Kiley V, Stuart JJ, Johnson CA. Coagulation studies in children with isolated recurrent epistaxis. J Pediatr 1982; 100: 579-81.
8. Weiss HJ. In Wintrobe Hematology. Second Edition, Ed. Mc Grawhill 1998; 2: 1368-70.
1 Médicos residentes de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC.
2 Médica colaboradora da Disciplina de Otorrinolaringologista da Faculdade de Medicina do ABC.
3 Médico Otorrinolaringologista do Hospital Brasil, Santo André SP.
4 Médico auxiliar de ensino da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC.
Pós-graduando (doutorado) da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
5 Professora Titular da Disciplina de Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina do ABC.
Endereço para correspondência: Dafne Cerchiari - Rua Tuiuti 120 Jd. Bela Vista 09041-420 Santo André SP.
Tel (0xx11) 4438-9058 - E-mail: dafne.ch@ig.com.br
Apresentado no III Congresso Triológico Rio de Janeiro, RJ, 2003.
Artigo recebido em 13 de março de 2004. Artigo aceito em 14 de abril de 2004.