Caderno de Debates (Suplementos)

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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:

Vol.71 ed.4 de Julho - Agosto em 2005 (da página 46 à 48)

Autor: Fábio M. Gil1, Juparethan T. Ribeiro1, Mariana L. Fávero2, José Francisco F. R. Figueiredo3, Lupércio O. do Valle4

Relato de Caso

 Paralisia facial periférica e gravidez: relato de caso e revisão bibliográfica

Introdução

A primeira associação entre gravidez e paralisia facial periférica foi feita por Charles Bell que, em 1830, fez a descrição de 7 casos1-3. Desde então, têm-se descritos alguns casos de paralisia facial em mulheres gestantes, preferencialmente no terceiro trimestre gestacional ou no puerpério.

Estima-se que mulheres grávidas têm cerca de 3 vezes mais chances de desenvolver paralisia facial periférica que as outras mulheres na mesma faixa etária, ou seja, 45,1 casos em 100.000, por ano, no primeiro grupo, contra 17,4 casos em 100.000 no segundo grupo. Quando se analisa somente mulheres no terceiro trimestre de gestação, esse índice alcança 118,3 casos em 100.000 por ano.4

Muitas teorias têm sido levantadas para se justificar essa maior incidência de paralisia facial na gestação, principalmente no terceiro trimestre, entre elas aumento dos líquidos intersticiais e edema perineural, imunossupressão relacionada com a gestação, e fatores hormonais1; além disso, muitos autores correlacionam um alto índice de complicações gestacionais como pré-eclâmpsias e eclâmpsias com o aparecimento da paralisia facial.5-7

Caso Clínico

A paciente C.M., 38 anos, procurou o serviço de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo com história de 4 meses de Paralisia Facial Periférica total bilateral que se iniciou no quinto pós-parto de gestação gemelar, acompanhada de dor intensa em região facial, auricular bilateral e occipital, que perdurou por uma semana. Nega zumbido, hipoacusia, tonturas e lesões de pele acompanhando o quadro. A gestação ocorreu sem problemas. Como antecedentes obstétricos, refere gestação anterior, há 15 anos, sem intercorrências. Antecedentes familiares: irmã apresentou paralisia facial periférica à esquerda, dois dias antes do primeiro parto, que evoluiu em 1 semana, sem deixar seqüelas. No início da paralisia, a paciente informa que foi tratada somente com carbamazepina e analgésicos em função da dor intensa e com cuidados oculares.

Ao exame físico evidenciou-se paralisia facial periférica bilateral, simétrica, classe IV de House-Brackmann, lacrimejamento excessivo bilateral, otoscopia normal. Trazia tomografia computadorizada e ressonância nuclear magnética normais, mapeamento cerebral e eletroencefalograma normais, exame do líquido cefalorraquidiano normal, audiometria tonal e vocal normais, imitanciometria com reflexos do estapédio ausentes bilateralmente. Pedimos sorologias para doença de Lyme, herpes simples e herpes-zoster, todas negativas, e eletromiografia que mostrou fibrilação muscular indicativa de degeneração valeriana.

Devido ao tempo de evolução e em função dos exames, optamos pelo acompanhamento clínico, estimulando exercícios faciais.

Discussão

A verdadeira razão para a maior incidência de casos de paralisia facial periférica durante a gestação ainda é desconhecida, mas sabe-se que a maioria delas ocorre no terceiro trimestre, próximo ao parto ou no puerpério, principalmente até 2 semanas após o fim da gestação3,7,8, sugerindo haver fatores relacionados não só simplesmente com a gestação, mas com mecanismos que surgem com o avançar desta.7

Durante a gravidez, um aumento da incidência das alterações neurológicas, dentre elas a paralisia facial periférica, e as mudanças hormonais, principalmente os altos níveis de estrógeno, podem ser consideradas o fator etiológico. No fim da gestação há um pico sérico nas concentrações de estrógeno e de progesterona; após o parto há uma queda nas concentrações de progesterona, mas os níveis de estrógeno continuam altos, o que pode explicar a alta incidência de paralisia facial periférica também nesse período9. Hilsinger et al.4 descrevem também uma maior incidência de paralisia facial periférica em mulheres na primeira metade do ciclo menstrual, fase esta onde também os níveis de estrógenos são mais altos. Esse dado vai contra a outra hipótese de que o edema generalizado, no final da gestação, inclusive perineural, poderia ser o fator etiológico para a paralisia facial, já que durante o ciclo menstrual a maior taxa de edema ocorre na segunda metade do ciclo.

David et al.9 estudaram o efeito dos hormônios ovarianos sobre a condução nervosa no nervo auditivo e concluíram que concentrações elevadas de estrógeno acarretam alargamento significativo da onda III na audiometria de tronco cerebral, principalmente quando se aumenta a freqüência de estímulos auditivos, sugerindo uma queda do fluxo sanguíneo, induzida pelo estrógeno, na região da ponte, onde se localiza além do complexo olivar superior, onde é gerado, o pico da onda III, o núcleo do nervo facial.

Uma outra teoria seria uma imunossupressão, que ocorre durante a gestação, induzida pelos níveis altos de cortisol, que poderiam predispor paralisias faciais induzidas por infecções virais como o herpes simples, o herpes-zoster, pelo HTLV-1 ou por outros agentes, como pela Borrelia burgdorferi, causadora da doença de Lyme1,3,10. No caso apresentado, as sorologias foram colhidas no quarto mês pós-paralisia facial, e os resultados foram negativos. Deve-se lembrar sempre que sorologias falso positivas podem ocorrer por reações cruzadas de outras infecções e em reações autoimunidade. No caso de suspeita clínica e sorologia positiva para doença de Lyme deve-se realizar punção liquórica para diagnóstico de neuroborreliose, presente em cerca de 28% dos casos de paralisia facial por Lyme11, e cuja abordagem terapêutica deve ser especial1. O líquor da nossa paciente, colhido no início do quadro de paralisia, não apresentou indícios de infecção.

Não encontramos nenhuma citação se haveria uma maior relação entre partos gemelares e paralisia facial, mas Shapiro et al.7 descrevem outras duas pacientes que, como a nossa, estavam grávidas de gêmeos e desenvolveram paralisias faciais no final de gestação, além de uma terceira paciente que desenvolveu zumbidos também no terceiro trimestre. Nesse artigo, os autores discutem se o aparecimento desses fatores seria predisponente para o desenvolvimento de pré-eclâmpsia, já que as três pacientes citadas tiveram essa complicação posteriormente ao surgimento da paralisia facial e do zumbido. Especialmente em relação ao zumbido, este parece estar mais relacionado com o aumento das taxas de progesterona12 do que com o aumento do estrógeno, como foi discutido anteriormente.

O prognóstico da paralisia facial na gestação com recuperação total da função motora é de uma forma geral bom5 e está relacionado com o momento de aparecimento mais próximo do parto3 e com a intensidade da paralisia. Aparentemente a paralisia facial na gestante tende a progredir para paralisia total após seu início mais freqüentemente que na população em geral e, quando isso ocorre, o prognóstico de recuperação é significativamente pior2. A presença de dor, o acometimento bilateral da face e a recorrência da paralisia também estão relacionados com um pior resultado funcional6; no entanto, Gbolade13 descreve o caso de uma mulher que desenvolveu paralisia facial em quatro gestações consecutivas e recobrou a função facial em todos os episódios. Aparentemente, a taxa de recorrência não é maior que na população em geral2. A nossa paciente apresentou, além de paralisia total, atingindo os dois lados da face, muita dor que perdurou por uma semana após o início e não teve um bom prognóstico. Em função da bilateralidade, não há grandes assimetrias faciais no repouso, mas a mobilidade e função facial estão muito comprometidas.

O tratamento da paralisia facial na gestante é um tema controverso6. Muitos preferem não usar corticoesteróides, mesmo no final da gestação7, por acreditarem que o seu uso não influenciaria o curso da paralisia, além dos possíveis efeitos colaterais. O uso de antivirais, como o acyclovir, só é autorizado se houverem evidências clínicas de infecção herpética. A cirurgia de descompressão do nervo facial é sugerida por alguns autores quando a evolução não é boa e a data prevista para o parto não é próxima5.

A paciente descrita chegou até nós com quatro meses de história de paralisia, o que nos reduziu bastante as possibilidades terapêuticas. Apesar da paralisia ter se iniciado no pós-parto, o que a paciente nos conta é que em função do grande edema generalizado que se formou no final da gestação, optou-se por não entrar com corticoesteróides. O uso de carbamazepina e de analgésicos se deu em função da intensa dor no início do quadro clínico.

Comentários Finais

A paralisia facial periférica é mais freqüente em mulheres grávidas e puérperas do que em mulheres em idade fértil. Como parece haver uma relação entre o seu aparecimento e o desenvolvimento de complicações gestacionais, como pré-eclâmpsia e eclâmpsia, o atendimento destas mulheres deve ser cuidadoso e sempre que possível realizado conjuntamente com o obstetra, que também deverá opinar sobre a melhor opção terapêutica. Aparentemente o prognóstico é bom, mas está relacionado com a distância do parto, com o grau de paralisia, com o acometimento bilateral da face e a paciente deve ser orientada corretamente para se evitar falsas expectativas. Deve-se lembrar que, não necessariamente, a paralisia facial na gestante é sempre idiopática; achados e sintomas atípicos podem sugerir outras etiologias que devem ser investigadas e tratadas corretamente.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

1. Grandsaerd MJG, Meulenbroeks A. Lyme borreliosis as a cause of palsy during pregnancy. Eur J of Obstetrics & Gynecology 2000; 91: 99-101.

2. Gillman GS, Schaitkin BM, May M, Klein SR. Bell's palsy in pregnancy: A study of recovery outcomes. Otolaringol Head Neck Surg 2002; 126(1): 26-30.

3. Danielides V, Skevas A, Van Cauwenberge P, Vinck B, Tsanades G, Plachouras N. Facial nerve palsy during pregnancy. Acta Otorrhino-laryngolog Belg 1996; 50: 131-5.

4. Hilsinger RL Jr, Addow KK, Doty HE. Idiopathic facial paralysis pregnancy and the menstrual cycle. Ann Otol Rhinol Laryngol 1975; 84: 433-42.

5. Steiner I, Cohen O. Peripartum Bell's palsy. Lancet 1996; 327: 121-2.

6. Cohen Y, Lavie O, Granovesky-Grisaru S, Diamant YZ. Bell palsy complicating pregnancy: a review. Obstet Gynecol Surv 2000; 55(3): 184-8.

7. Shapiro JL, Yudin MH, Gray JG. Bell's palsy and tinnitus during pregnancy predictors of pre-eclampsia? Acta Otolaryngol 1999 (Stockh) 119: 647-51.

8. Valença MM, Valença LPAA, Lima MCM. Paralisia facial periférica idiopática de Bell. Arq Neuro-Psiquiatr 2001; 59(3b): 1-9.

9. Bem David Y, Tal J, Podoshin L, Fradis M, Sharf M, Pratt H, Faraggi D. Brain stem auditory evoked potentials: Effects of ovarian steroids correlated with increased incidence of Bell's palsy in pregnancy. Otolaringology - Head and Neck Surgery 1995; 113(1): 32-5.

10. Barreto JLP, Galo ALR, Carvalho BCJ. HTLV-I e gestação - Considerações. J Bras Ginecol 1998; 108(9): 311-3.

11. Smouha EE, Coyle DK, Shukri S. Facial nerve palsy in Lyme disease: Evaluation of Clinical Diagnostic Criteria. Am J Otol 1997; 18:257-61.

12. Gurr P, Owen G, Reid A, Canter R. Tinnitus in pregnancy. Clin Otolaryngol 1993; 18: 294-7.

13. Gbolade BA. Recurrent lower motor neurone facial paralysis in four successive pregnancies. J Laryngol Otol 1994; 108(7): 587-9.

1 Residentes do segundo ano do Departamento de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo.
2 Doutoranda de Otorrinolaringologia na FMUSP. Médica Assistente do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo.
3 Médico responsável pelo Serviço de Otoneurologia do Hospital Edmundo Vasconcelos e Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo.
4 Médico Chefe do Serviço de Otorrinolaringologia do Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo.
Trabalho realizado no Hospital do Servidor Público Municipal de São Paulo.
Endereço para correspondência: Rua Apeninos, 336 apto 17 Aclimação 01533-000 São Paulo SP
E-mail: fabiomgil@bol.com.br
Trabalho apresentado no Congresso Brasileiro de Otorrinolaringologia de Florianópolis, em novembro de 2002.
Artigo recebido em 19 de janeiro de 2004. Artigo aceito em 24 de fevereiro de 2004.

 

 

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