Caderno de Debates (Suplementos)

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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:

Vol.71 ed.3 de Maio - Junho em 2005 (da página 41 à 44)

Autor: Wanessa Dornela de Oliveira1, Jorge Andrade Pinto2, Celso Gonçalves Becker3, Helena Maria Gonçalves Becker3, Roberto Eustáquio Santos Guimarães3, Antônio Lobo de Rezende4

Relato de Caso

 Hipoacusia neurossensorial súbita imunomediada: relato de caso

INTRODUÇÃO

A hipoacusia neurossensorial súbita se caracteriza por queda da via óssea acima de trinta decibéis (dBNA) em pelo menos três freqüências audiométricas contíguas, aparecimento abrupto em no máximo três dias, sendo geralmente unilateral, sem fator etiológico bem definido, podendo estar acompanhada de zumbidos em 80% dos casos e de tonteira em 30%1,2.

Mulheres adultas jovens são preferencialmente afetadas3,4.

Sua etiopatogenia é desconhecida sendo aventadas algumas hipóteses: vascular, viral, ruptura de membranas (teoria da fístula) e auto-imune5,6.

Sua causa só é definida em 10 a 15% dos pacientes7.

Schiff e Brown8 (1974) postularam que a melhora da surdez súbita com o uso de hormônio adrenocorticotrópico e terapia heparínica seria evidência de vasculite de etiologia auto-imune. McCabe9 (1979) relatou diversos casos de hipoacusia neurossensorial (HNS) que foram tratados com sucesso através de terapia imunossupressora, introduzindo a hipoacusia neurossensorial de origem auto-imune (HNSAI) como entidade clínica.

Quando há suspeita diagnóstica de HNSAI, terapia com corticóide deve ser iniciada precocemente na tentativa de se evitar seqüelas audiológicas ou mesmo recuperá-las4,10.

A confirmação diagnóstica envolve uma avaliação laboratorial, estudo por imagem e, eventualmente, teste com prednisona ou prednisolona4.

RELATO DE CASO

Paciente do sexo feminino, 19 anos, leucoderma, natural de Ipatinga-MG, procurou o serviço de otorrinolaringologia do Núcleo de Otorrino-BH com história de zumbido intermitente há aproximadamente sete dias e hipoacusia há um dia em orelha esquerda (OE); sem tonteira ou plenitude auricular. Não apresentava sintomas nasais, orofaríngeos ou laríngeos. Negava uso de medicamentos, história familiar de perda auditiva ou episódios semelhantes prévios.

O exame físico otorrinolaringológico encontrava-se dentro da normalidade.

O primeiro exame audiométrico revelou em OE presença de HNS moderada em freqüências graves e HNS leve em agudas. A imitanciometria evidenciou curva tipo A bilateralmente com ausência de reflexo contralateral em OD.

Foi aventada hipótese diagnóstica de Surdez Súbita e iniciado uso de pentoxifilina 600mg BID, prednisolona 60mg MID e ranitidina 150mg BID.

Houve boa evolução, com ausência de queixas e recuperação da hipoacusia no 10o dia de tratamento, exceto em freqüências agudas. Iniciamos então redução progressiva do corticóide.

No 28o dia de tratamento a paciente encontrava-se em uso de 10mg de prednisolona quando apresentou hipoacusia, zumbido e plenitude em OE acompanhados de tonteira. A audiometria revelou HNS moderada em OE nas freqüências graves e agudas. Foi solicitado audiometria de tronco encefálico (ABR) e "screening" hematológico, aumentado dose de corticóide para 60mg/dia e iniciado dimenidrato. ABR não evidenciou alterações retrococleares e o "screening" constando de hemograma, leucograma, velocidade de hemossedimentação, fator reumatóide, proteína C reativa, glicemia, VDRL e FTA-abs, função tireoidiana estavam dentro dos limites da normalidade e o FAN era reagente (1:640). Houve nova melhora da perda auditiva, mas com a persistência de tonteira foi acrescentado uso de flunarizina. Realizados ressonância nuclear (RNM) magnética do encéfalo e de orelha interna que não evidenciaram alterações e eletrococleografia que não mostrou sinais de hidropsia.

Foi também solicitado avaliação com imunologista, sendo realizados pesquisas de auto-anticorpo RNP, SM, SSA/RO, DNA; p e c-ANCA; anticoagulante lúpico, cardiolipina; C4, C3 e CH50; HBsAg e Anti-HCV; exame de urina rotina; função renal e hepática; glicemia e colesterol total: todos sem alterações. Repetido o FAN: não reagente.

Cogitou-se a hipótese diagnóstica de hipoacusia neurossensorial auto-imune e foi feita substituição da corticoterapia em uso (com suspensão gradual) por metotrexate na dose de 7,5 mg uma vez por semana.

A paciente tem feito controle bimestral nos últimos seis meses com boa evolução (recuperação da perda auditiva inclusive em freqüências agudas) e sem apresentar novas recaídas.

DISCUSSÃO

A HNSAI é uma disacusia neurossensorial tardia adquirida (não-genética).

A doença auto-imune (DAI) caracteriza-se pela possibilidade do sistema imunológico reagir contra antígenos autólogos ocasionando lesão tecidual. Quando os anticorpos são dirigidos a antígenos de apenas um órgão temos uma DAI órgão-específica, já quando são para antígenos disseminados em vários órgãos desenvolvendo lesões que caracterizam doença sistêmica (como é o caso do Lúpus eritematoso sistêmico) temos uma DAI não órgão-específica4.

A orelha interna é um órgão imunologicamente competente, capaz de apresentar resposta imunológica humoral frente a estímulo antigênico, local ou não, sendo o saco endolinfático reconhecido como a região de maior capacidade de processamento imunológico4,11,12. O saco endolinfático está intimamente envolvido com o processo, pois sua destruição ou obliteração experimental reduz de maneira significativa a resposta antigênica, bem como o dano coclear13.

Histologicamente, a HNSAI é caracterizada por uma degeneração neuronal retrógrada, edema endolinfático, proliferação de tecido fibroso, precipitação e atrofia do ducto endolinfático, presença de macrófagos e precipitados na endolinfa, atrofia do gânglio espiral, do órgão de Corti e da estria vascular2,14,15. Esses achados sugerem a existência de processo inflamatório e vascular isquêmico simultâneos na orelha interna.

Os principais mecanismos fisiopatológicos de caráter auto-imune envolvidos na disfunção da orelha interna incluem: hipersensibilidade imediata, com produção de Imunoglobulinas IgE contra antígenos cocleares, depósitos de imunocomplexos na estria vascular e ligamento espiral, ação direta das células T citotóxicas na cóclea e hipersensibilidade tardia havendo reatividade imunológica medida pelo colágeno tipo II16.

Essas alterações têm sido descritas em diversas doenças auto-imunes, tais como miastenia gravis, lúpus eritematoso sistêmico (LES), Guillain-Barré, doença de Graves, granulomatose de Wegener e síndrome de Cogan15,17,18.

A HNSAI pode ser uma manifestação inicial ou uma complicação secundária de doença sistêmica auto-imune7,19,20, o exame físico otorrinolaringológico normalmente não apresenta alterações e o exame otoneurológico pode haver resposta reduzida. Em 29% dos pacientes com disacusia e sintomas vestibulares há coexistência de manifestações sistêmicas de doença auto-imune21.

A HNSAI súbita tem aparecimento abrupto, acomete preferencialmente mulheres adultas jovens (17-42 anos) e pode estar acompanhada de zumbidos e tonteira1-4. É bilateral em 79% dos casos e, em aproximadamente 1/3 dos casos, não está associada com sintomas vestibulares22, pois o acometimento usual do sistema promove a habituação do organismo. Outra característica da HNSAI é sua rápida progressão4.

Nos exames audiométricos não encontramos nenhuma característica típica.

A avaliação laboratorial deve ser realizada através de testes de antígeno não-específicos (imunocomplexos circulantes, auto-anticorpos - FAN, complemento, VHS, proteína C reativa) e antígeno-específicos (hsp-70)2,4. A hsp-70 representa um antígeno coclear específico, marcador de doença ativa e é indicativo de boa resposta a corticoterapia, mas tem custo elevado2,4,23. Aumento do VHS e ANA estiveram presentes 22% dos casos de HNSAI em crianças24. No LES com manifestação de HNS temos diminuição de C3 e C4 e presença anticorpo anti-DNA18.

Na avaliação por métodos de imagem temos a possibilidade de evidência de processo inflamatório pelo aumento de sinal em T1 após infusão de gadolínio à RNM4,23,24.

Receptores de corticóide foram encontrados em tecidos vestibulares e cóclea em animais25, o que justifica o uso desses no tratamento da HNSAI. A corticoterapia continua sendo a principal opção, sendo a prednisona 60mg MID a primeira escolha2,16. Usualmente após 3-4 semanas atinge-se estabilização do quadro com melhora audiométrica sendo iniciado redução progressiva da prednisona até 10mg/dia, a qual é mantida por pelo menos 3 meses4. O tratamento prolongado pode ocasionar Síndrome de Cushing, necrose asséptica da cabeça do fêmur, entre outros efeitos colaterais.

Quando não se obtém resposta satisfatória com o uso de corticóide, e em casos mais graves está indicada imunossupressão com ciclofosfamida, azatioprina ou metotrexate (MTX)1,4,11,16,26. A terapia prolongada com baixas doses de MTX representa recurso terapêutico eficaz e de baixa toxicidade em pacientes com HNSAI que não respondem ao tratamento usual.

A plasmaférese pode ser usada como medida complementar à corticoterapia e/ou imunossupressão nos casos em que há elevados títulos de imunocomplexos circulantes e auto-anticorpos2,27.

COMENTÁRIOS FINAIS

Quando o paciente chega ao consultório do especialista para avaliar a função auditiva e vestibular e com o diagnóstico de doença auto-imune estabelecido fica fácil associarmos o diagnóstico otológico ao de base. No entanto, quando se trata de processo auto-imune local, nem sempre pensamos de imediato nessa etiologia.

O mecanismo imune envolvido na HNSAI não está completamente esclarecido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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1 Médica-Residente de Otorrinolaringologia do Núcleo de Otorrino-BH.
2 Professor Adjunto-Doutor, Coordenador do Serviço de Alergia e Imunologia do Departamento de Pediatria da Faculdade de Medicina da UFMG.
3 Professor Adjunto do Departamento de Otorrinolaringologia, Oftalmologia e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG e Preceptor do
Serviço de Residência em Otorrinolaringologia do Núcleo de Otorrino-BH.
4 Professor Substituto do Departamento de Otorrinolaringologia, Oftalmologia e Fonoaudiologia da Faculdade de Medicina da UFMG e Preceptor do
Serviço de Residência em Otorrinolaringologia do Núcleo de Otorrino-BH.
Endereço para correspondência: Rua Guajajaras, 771/1701 Bairro Lourdes 30.180-100 Belo Horizonte MG.
E-mail: dornela@yahoo.com
Artigo recebido em 03 de setembro de 2004. Artigo aceito em 14 de outubro de 2004.

 

 

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