Caderno de Debates (Suplementos)

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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:

Vol.71 ed.3 de Maio - Junho em 2005 (da página 29 à 32)

Autor: Vivian Wiikmann1, E. Y. Goto2, M. C. Neves2, R. L. Voegels3, Ossamu Butugan3

Relato de Caso

 Narinas supranumerárias: relato de caso

Introdução

Narinas supranumerárias são anormalidades nasais congênitas raras1, em geral ocorrendo em pacientes sem outras síndromes genéticas concomitantes e sem história familiar prévia da anomalia. Existem poucos casos reportados na literatura, que diferem entre si quanto às características da deformidade: Lindsay, em 19062, apresentou caso de paciente com dois pares de narinas, enquanto autores como Tawse3 e Onizuka e Tai4 apresentaram casos de pacientes com três narinas, sendo apenas uma acessória. O objetivo deste relato é apresentar um caso de uma paciente do sexo feminino que nasceu com três narinas associadas a prováveis encefalocales, e também fazer uma revisão de literatura das teorias propostas para explicar o desenvolvimento de narinas supranumerárias, relacionando-as com o caso de nossa paciente.

Revisão de literatura

O desenvolvimento da face começa aproximadamente na quarta semana de desenvolvimento embrionário, com o aparecimento do processo fronto-nasal, um par de processos maxilares e um par de processos mandibulares5. No fim da quarta semana, um par de placódios nasais desenvolve-se na porção mais inferior do processo frontonasal, região onde o ectoderma se espessa. Os placódios nasais são estruturas de origem epitelial, de formas elípticas, que posteriormente produzirão a mucosa olfatória da cavidade nasal. À medida que o embrião se desenvolve, células mesenquimais se proliferam então na orla destes placódios, formando duas fossetas nasais, ladeadas cada uma por uma prega "em ferradura". As porções laterais e mediais destas pregas formam as pregas laterais e mediais. Ao mesmo tempo em que isto ocorre, desenvolve-se uma depressão central que é chamada de fossa nasal. Esta depressão se expande embaixo do cérebro em desenvolvimento, formando uma cavidade nasal que se comunicará com a boca por uma coana primitiva. A porção mais inferior do processo medial nasal cresce posteriormente no tecido mesenquimal formando duas lâminas nasais separadas. Enquanto a cavidade nasal se expande, as lâminas nasais se fundem medialmente para formar o septo nasal5. Entre a sexta e sétima semanas, o processo maxilar se funde aos processos mediais nasais bilaterais formando a columela. O dorso e o ápice do nariz emergem do processo frontal e as asas nasais dos processos laterais nasais laterais. O desenvolvimento se completa aproximadamente na décima quarta semana6.

Lindsay (1906) foi o primeiro a reportar um paciente com narinas supranumerárias, que apresentava dois pares de narinas superiores e inferiores, simétricas, um par de cavidades nasais e um septo alongado2. Tawse (1919) apresentou um caso de narina supranumerária localizada na lateral mais superior da asa nasal direita3. Onizuka e Tai (1972) também reportaram um caso de narina acessória, acima da narina esquerda4. Erich (1962) apresentou um caso raro de nariz duplo, com dois pares de cavidades nasais, narinas e asas7. Nakamura e Onizuka (1987) descreveram um caso em que a narina acessória estava localizada no mesmo nível (horizontal) da narina natural e mais próxima do septo nasal único do que esta, como a narina direita estivesse dividida em dois compartimentos, lateral e medial8. Chen e Yeong (1992) apresentaram um paciente com quatro narinas, sendo as narinas naturais inferiores e as narinas acessórias, superiores1. É importante ressaltar que nenhum destes autores descreveu qualquer outra malformação ou síndrome genética associada em seus pacientes.

Relato de caso

A paciente, feminina, nascida prematura (6 meses) em decorrência de uma infecção materna, apresentava ao nascer 985 gramas e 31cm de altura. A mãe realizou quatro consultas de pré-natal, onde não foram evidenciadas alterações nas sorologias habituais ou à ultra-sonografia. A paciente permaneceu dois meses em UTI por complicações pulmonares e dificuldade de extubação. Apresentou ao nascimento hipertelorismo, fronte olímpica com falha óssea em linha mediana, palato duro escavado sem fenda palatina, fossas nasais estreitas, narina única à esquerda e duas narinas à direita. A narina acessória direita localizava-se mais próxima ao septo nasal do que a narina natural direita, e todas se encontravam praticamente alinhadas horizontalmente, porém com discreta inferiorização da narina acessória (Figura 1 e 2). A progenitora relata rinorréia amarelada ocasional, sem obstrução nasal. Nega liquorréia, espirros, prurido nasal, epistaxe. Não apresentava atraso no desenvolvimento neurológico, cognitivo ou motor. Com 1 ano e 8 meses foi avaliada em nosso serviço. O exame otorrinolaringológico confirmou os achados ao nascimento. A tomografia computadorizada de seios paranasais evidenciou narina/fossa nasal direita septada, associada a discreto desvio sinuoso do septo nasal, bem como redução da amplitude das fossas nasais (Figuras 3 e 4). Apresenta também duas falhas ósseas em base de crânio, anteriores à linha média, que comunicam a fossa craniana anterior com as cavidades nasais, sendo uma no teto do etmóide anterior e outra na junção esfenoetmoidal, constituindo prováveis encefaloceles basais (Figuras 5 e 6).

Atualmente a paciente encontra-se em acompanhamento ambulatorial e realizando estudo genético na pediatria para investigação diagnóstica.


Figura 1. Paciente com 1 ano e 8 meses, visão frontal.


Figura 2. Paciente com 1 ano e 8 meses, visão inferior.


Figura 3. Tomografia de seios paranasais, janela óssea, corte coronal.


Figura 4. Tomografia de seios paranasais, janela óssea, corte axial.


Figura 5. Tomografia de seios paranasais, janela óssea, corte coronal.


Figura 6. Tomografia de seios paranasais, janela óssea, corte sagital.


Discussão

Existem poucos relatos de narinas supranumerárias, como os supracitados acima. Alguns autores formularam hipóteses para explicar a ocorrência desta rara anomalia.

Erich desenvolveu uma teoria para explicar o nariz duplo. Ele supunha que na evolução dos placódios nasais quatro fossas nasais se desenvolveriam de forma anômala, enfileirando-se de forma horizontal. Cada fossa daria origem a uma cavidade nasal. As cavidades nasais mediais se interporiam entre as duas lâminas nasais, impedindo que estas formassem um único septo nasal. Desta forma, se formariam septos nasais direito e esquerdo separadamente, resultando em nariz duplo, com dois pares de cavidades nasais, narinas e asas. Erich propôs, para os casos relatados por Tawse e Lindsay, que a fossa nasal acessória se colocaria tão lateralmente às lâminas nasais que as narinas supranumerárias se formariam acima da narina natural, e não interferiria na formação do septo único7.

Esta teoria, porém, não se aplica a todos os casos reportados em literatura. O caso descrito por Nakamura e Onizuka, onde a narina acessória estava localizada no mesmo nível (horizontal) da narina natural e mais próxima do septo nasal único do que esta, com a narina direita dividida em dois compartimentos, lateral e medial, não se aplica a teoria de Erich. Assim, Nakamura e Onizuka formularam novas teorias para explicar as narinas supranumerárias e o nariz duplo. Segundo eles, o pré-requisito para formação de narinas supranumerárias é a adição de narinas extras às narinas naturais, na existência de uma asa nasal extra, mesmo que incompleta. Se não houver asa nasal extra, poderíamos estar frente a um caso de fístula. Eles assumem que, durante a proliferação das células mesenquimais no processo lateral nasal, uma concavidade ou fissura apareceria acidentalmente nesta área, e assim um processo nasal lateral se dividiria em dois segmentos, resultando em duas narinas e duas asas nasais do mesmo lado. Isto explicaria a possibilidade da narina acessória ocorrer acima, abaixo, lateral ou medial à narina natural, dependendo da posição da modificação ocorrida no processo nasal lateral. A proposta destes autores para o caso reportado por Lindsay seria que os placódios nasais se formariam em dois pares, posicionados de forma vertical (2 superiores e 2 inferiores), com as lâminas nasais coalescendo medialmente, formando apenas um septo nasal alongado. Desta forma, o caso de Lindsay poderia ser classificado como nariz duplo (formado em disposição vertical), assim como o caso reportado por Erich, um nariz duplo formado em disposição horizontal8.

Em relação ao caso por nós relatado, a teoria de Nakamura e Onizuka parece adequar-se melhor. De forma similar ao caso reportado por estes autores, a narina acessória de nossa paciente está localizada no mesmo nível (horizontal) da narina natural. A explicação da formação de narinas acessórias a partir de uma alteração no desenvolvimento do processo lateral nasal por Nakamura e Onizuka parece-nos mais plausível do que as teorias anteriores, pois consegue explicar, pelo mesmo mecanismo, diferentes disposições espaciais destas.

Por fim, o tratamento proposto para narinas supranumerárias são variações de técnicas de cirurgia plásticas reconstrutivas, variando caso a caso. Chen e Yeong (1992) optaram, frente a sua paciente com quatro narinas, "amputar" as narinas naturais, inferiores, e manter as narinas acessórias, superiores, comunicando-as com as cavidades nasais e mantendo-as patentes com o uso de um tubo de silicone por alguns meses, com bons resultados1. Nakamura e Onizuka optaram por "amputar" a narina acessória direita, medial ao septo nasal, e reconstruir a ala nasal direita. Neste caso o assoalho da narina direita, mais largo que a esquerda, foi corrigido por zetaplastia8. Nestes dois casos a correção foi realizada aos três meses de vida dos pacientes. No caso da nossa paciente, além da reconstrução nasal, será necessária a correção das encefaloceles, depois de finalizada a investigação diagnóstica.

Comentários finais

Reportamos um caso de narinas supranumerárias, que difere dos outros por apresentar outros comemorativos como hipertelorismo, falha óssea mediana na fronte, e prováveis encefaloceles basais. Devido ao reduzido número de casos reportados na literatura, apesar das teorias formuladas descritas acima, não se sabe o mecanismo exato de formação destas anomalias.

Referências Bibliográficas

1. Chen MT, Yeong EK. Supernumerary nostrils. BR J Plast Surg 1992; 45(7): 557-8.

2. Lindsay B. A nose with supernumerary nostrils. Trans Pathol Soc Lond 1906; 57: 329.

3. Tawse HB. Supernumerary nostril and cavity. Proc R Soc Med 1920; 13: 28.

4. Onizuka T, Tai Y. Supernumerary nostril. Plast Reconstr Surg 1972; 50: 403.

5. Gray H. Anatomy of the Human Body. 29th Ed. Philadelphia: CM Goss Ed. Lea and Febiger; 1973. p. 33-6.

6. Moore KL. The Developing Human: Clinically Oriented Embryology. 2nd Ed. Philadelphia: Saunders; 1977. p. 170-1.

7. Erich JB. Nasal duplication: Report of case of a patient with two noses. Plast Reconstr Surg 1962; 29: 159.

8. Nakamura K, Onizuka T. A Case of Supernumerary Nostril. Plast Reconstr Surg 1987; 80(3): 436-41.

1 Médica Residente da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
2 Pós-graduando da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
3 Professores Associados da Disciplina de Otorrinolaringologia da FMUSP.
Trabalho realizado na Divisão de Clínica Otorrinolaringológica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Endereço para correspondência: Dra. Vivian Wiikmann - Rua Cristiano Viana 671/151 São Paulo SP 05411-001.
Tel.: (0xx11) 3064- 3136 - E-mail: vivianwiikmann@uol.com.br
Trabalho apresentado no 3º Congresso de Otorrinolaringologia da Universidade de São Paulo, realizado de 07 a 09 de agosto de 2003, em São Paulo.
Artigo recebido em 06 de fevereriro de 2004. Artigo aceito em 02 de abril de 2004.

 

 

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