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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:
Vol.68 ed.6 de Novembro - Dezembro em 2002 (da página 36 à 42)
Autor: CADERNO DE DEBATES (CD)
Entrevista
ENTREVISTA com DR. AGRÍCIO CRESPO (AC)
Caderno de Debates - Como a Cirurgia de Cabeça e Pescoço surgiu na Otorrinolaringologia?
Agrício Crespo - É dificil separar a Otorrinolaringologia da Cirurgia de Cabeça e Pescoço, que nasceu da necessidade do tratamento cirúrgico dos tumores da via aerodigestiva superior. No Brasil, podemos traçar essa história com Jorge Fairbanks Barbosa, fundador da Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, nos anos 60, um expoente na Otorrinolaringologia. Hoje, observamos que as duas especialidades caminham juntas, em todo o mundo. Na Europa, no Japão, nos EUA, quem faz a Cirurgia de Cabeça e Pescoço é o otorrinolaringologista; é uma área de atuação da ORL. No Brasil, a situação é um pouco diferente. Os otorrinolaringologistas se encantaram com o desenvolvimento da microcirurgia. A Cirurgia de Cabeça e Pescoço acabou proliferando na Cirurgia Geral e mesmo na Cirurgia Oncológica. Temos essa divisão no Brasil, mas em outros países predomina a união entre Cirurgia de Cabeça e Pescoço e ORL em uma única especialidade.
CD - Quais os limites de atuação entre duas áreas?
AC - As doenças não respeitam os limites impostos pelas especialidades médicas. No estatuto da SBORL observamos que as áreas de atuação da ORL incluem as doenças de ouvido, nariz e de toda a via aerodigestiva superior, bem como a Cirurgia de Cabeça e Pescoço, a Cirurgia de Base de Crânio, a Traumatologia Facial e a Cirurgia Buco maxilo facial. Eu diria que a atuação da ORL é ampla e compreende toda a região acima das clavículas, com exceção dos globos oculares e do sistema nervoso central. Em relação à Cirurgia de Cabeça e Pescoço, o campo de atuação é bem preciso. Está relacionado ao tratamento cirúrgico do câncer localizado nesta região do corpo. Mas, na prática, as coisas não funcionam bem assim. Hoje, há um interesse crescente, principalmente entre os mais jovens cirurgiões de atuar também em áreas da ORL, com ênfase na laringe, na cirurgia do nariz, na apnéia do sono, e em alguns setores da cirurgia bucomaxilo facial. O todo (otorrinolaringologia) está querendo resgatar sua parte (cirurgia de cabeça e pescoço). E a parte este querendo se reintegrar ao todo até por questões mercadológicas.
CD - AS duas Especialidades estão extremamente relacionadas?
AC - Sim, até porque são indivisíveis. As duas especialidades tratam do mesmo território anatômico e de doenças que, em determinado momento, se sobrepõem. Quando um paciente apresenta um tumor de cabeça ou de pescoço, a sintomatologia inicial se confunde com outras doenças benignas dos mesmos órgãos. Por isso, o otorrinolaringologista necessita ser versado no diagnóstico diferencial entre os tumores e as lesões benignas. Sua responsabilidade torna se cada vez maior, agora que a maioria dos ORL têm acesso aos métodos de diagnósticos por endoscopia. Certamente caberá a eles o diagnóstico dos tumores da cabeça e pescoço. E todo o mundo sabe e reconhece que o primeiro médico a tratar um câncer é geralmente o maior responsável pela boa ou má condução do caso. É muito difícil separar as duas áreas. Agora, como especialidades legalmente constituídas, diante da AMB, temos que reconhecer hoje duas especialidades distintas e autônomas, e que devem ser assim respeitadas.
CD - As duas áreas podem tratar do mesmo assunto?
AC - A Cirurgia de Cabeça e Pescoço é parte da ORL. Não acredito que as duas áreas possam fazer tudo. É preciso ter formação para isso. O otorrinolaringologista está legalmente habilitado e amparado por sua sociedade para realizar cirurgias de cabeça e pescoço. Mas, não deve fazê lo se não possuir um treinamento adequado para tal. O cirurgião de cabeça e pescoço também não deve interferir em áreas específicas da ORL como a microcirurgia otológica e a de laringe, por exemplo, se também não passar por um processo de formação específica nas áreas. Seria ideal que a formação destes profissionais fosse única e conjunta porque falta ao ORL um treinamento em cirurgias de maior porte, principalmente em pré e pós operatório, e em como lidar com complicações decorrentes destas cirurgias. Por outro lado, percebemos que falta ao cirurgião de cabeça e pescoço uma propedêutica mais adequada e apurada em relação ao diagnóstico diferencial com as lesões benignas.
CD - Como as duas áreas se complementam?
AC - Desde o momento da formação. Um otorrinolaringologista da nova geração, que se forme sem conhecimentos clínicos e cirúrgicos em oncologia de cabeça e pescoço, não teve uma formação da melhor qualidade. Eu afirmo e apregôo, há muito tempo, que o otorrinolaringologista formado nos dias de hoje tem que passar por treinamento em cirurgia de cabeça e pescoço. Caso contrário, ele deixará de fazer diagnósticos precoces. Sem estes, não teremos índices de cura adequados. Esta formação é inquestionável. Por outro lado, o cirurgião de cabeça e pescoço precisa complementar sua formação com conhecimentos de ORL, por questões óbvias. Quem domina a propedêutica adequada da via aerodigestiva superior, é o otorrinolaringologista. Todo o instrumental, como as fibras ópticas, os telescópios, os exames de imagem em cabeça e pescoço, são desenvolvidos dentro da ORL. O mesmo acontece com os procedimentos mais conservadores do tratamento de câncer de cabeça e pescoço. Se um cirurgião de cabeça e pescoço não estivesse atento ao desenvolvimento da ORL, talvez ainda estivesse realizando cirurgias hiper radicais, como nos anos 70, em grandes intervenções. A formação recíproca é uma necessidade para as duas áreas.
CD - Qual o tipo de relação entre os especialistas das duas áreas?
AC - Creio que, no dia a dia, os profissionais se relacionam bem. A grande maioria dos otorrinolaringologistas não está interessada em fazer cirurgia de cabeça e pescoço, talvez até por falta de formação. Da mesma forma, os cirurgiões de cabeça e pescoço também não estão tão interessados na prática cotidiana da ORL. Mas, esta realidade tende a mudar brevemente. No Brasil, a incidência de câncer em cabeça e pescoço varia de 5 a 20% dos casos de câncer. As residências médicas têm formado cirurgiões de cabeça e pescoço continuamente, e talvez não haja mercado de trabalho para todos. Essa geração mais jovem tem partido para atuar nas áreas de ORL. Isto é natural e compreensível. Por outro lado, os otorrinolaringologistas formados em serviços mais abrangentes estão plenamente capacitados a atuar em cirurgia de cabeça e pescoço. Logo, as duas áreas vão se misturar. Isto já acontece na prática. Talvez, a partir de agora, passe a existir alguma dificuldade de relacionamento. Em tempos não muito distantes, os otorrinolaringologistas enviavam seus casos de tumor para cirurgiões de cabeça e pescoço e não para seus próprios colegas. Talvez por desconforto ou por medo de perder um paciente. Eu creio que a ORL deva abranger a área de cirurgia de cabeça e pescoço. A formação conjunta, no futuro, vai permitir que as duas especialidades atuem juntas, como deve ser.
CD - Do ponto de vista acadêmico, como as duas áreas se integram e onde elas se diferenciam?
AC - As escolas têm filas intermináveis, há pacientes para todo mundo, mas o setor ainda não está organizado. Temos todo tipo de exemplo no Brasil. Temos escolas de medicina onde a cirurgia de cabeça e pescoço é ensinada exclusivamente nos serviços de cirurgia. Em Botucatu, São José do Rio Preto, Campinas e muitos outros lugares a cirurgia de cabeça e pescoço é ensinada como área de ORL. Na Unicamp, temos dois serviços paralelos: um na cirurgia e outro na ORL. Este relacionamento era mais conflituoso no passado, mas as coisas têm se equilibrado e hoje temos boa convivência. Atualmente, os pacientes portadores de câncer de laringe e base de crânio, por exemplo, naturalmente são encaminhados para o serviço da ORL. As afecções que de mandam cirurgias maiores, principalmente aquelas que se estendem ao esôfago ou mediastino, vão para o departamento de cirurgia. Em Ribeirão Preto, os cirurgiões de cabeça e pescoço, ao longo de sua residência, passam um ano na ORL e fazem septoplastia, amidalectomia etc. Mas, o otorrinolaringologista não passa pela área de cirurgia de cabeça e pescoço. Então, do ponto de vista acadêmico, há muito para ser organizado.
CD - Como fica a relação entre as duas áreas na prática de consultório?
AC - A relação é boa e não há problemas. O otorrinolaringologista faz o diagnóstico e encaminha para o cirurgião de cabeça e pescoço. Gostaríamos que fosse diferente, que o otorrinolaringologista fizesse o diagnóstico e que pudesse tratar estes pacientes. Mas, temos que reconhecer que são áreas de atuação muito grandes. Muitas vezes, dentro da própria ORL, os profissionais não dominam todos os campos de atuação. Os encaminhamentos são naturais e rotineiros. Mas não abrimos mão de enfatizar que o otorrinolaringologista deve ter uma formação muito sólida em cabeça e pescoço. No mínimo, para fazer um diagnóstico. As dificuldades existem muito mais no nível das sociedades, que são entidades representativas de classe que buscam a expansão de seus limites e manutenção de seu status. Mas, entre os profissionais eu não vejo dificuldades.
CD - Do ponto de vista legal, dual o limite de atuação das duas áreas?
AC - Temos que reconhecer que ORL é uma especialidade médica e que cirurgia de cabeça e pescoço também é uma especialidade médica. O otorrinolaringologista pode realizar cirutgias de cabeça e de pescoço, mas não pode se intitular como especialista em cirurgia de cabeça c pescoço se não for portador do título de especialista, conferido pela Sociedade de Cirurgia de Cabeça e Pescoço. Da mesma forma, o cirurgião de cabeça e pescoço não pode intitular se especialista em otorrinolaringologia se não obtiver o título de especialista concedido pela SBORL.
CD - Existe muita diferença entre os ganhos financeiros das duas áreas?
AC - Sim. Existe uma boa diferença. A ORL tem uma intensa atividade clínica que assegura um grande fluxo de consultas. A cirurgia de cabeça e pescoço não tem. Da mesma maneira, existem muitos exames complementares em ORL, como os audiométricos, endoscópicos, etc, que asseguram ao médico um ganho considerável. Estes exames não existem na cirurgia de cabeça e pescoço, com exceção da endoscopia. Quanto às cirurgias, os procedimentos em ORL são muito freqüentes e de níveis variados de complexidade. As cirurgias de cabeça e pescoço costumam ser longas, trabalhosas e, muitas vezes, requerem reconstruções complexas e hospitalização prolongada. A diferença de ganho é grande até porque não existem tantos pacientes com tumores de cabeça e pescoço fora do SUS. É óbvio que a consideração financeira não deve ser o único e nem o principal elemento a nortear a escolha profissional do médico. É excepcional que um otorrinolaringologista tenha que complementar seus rendimentos findo em outra área. No entanto, entre os cirurgiões de cabeça e pescoço ocorre exatamente o contrário.
CD - Qual a perspectiva de crescimento e de avanço tecnológico e profissional nas duas áreas?
AC - Nas últimas décadas houve um crescimento explosivo da especialidade que deve avançar ainda mais com a contínua modificação dos procedimentos cirúrgicos e do desenvolvimento de novas tecnologias que facilitam o diagnóstico. Em relação à cirurgia de cabeça e pescoço, tenho uma opinião diferente. Os maiores avanços em ORL aconteceram no sentido de melhorar a propedêutica e de diminuir a extensão dos procedimentos cirúrgicos, que se tornaram mais conservadores. Hoje, o paciente não aceita mais uma grande mutilação. Além de sobrevida, ele quer qualidade de vida. As cirurgias oncológicas encolheram, diminuíram e agora se encontram em um platô quanto aos resultados vão continuar curando e oferecendo melhores condições de vida ao paciente, mas não vão melhorar significantemente os índices de sobrevida obtidos hoje. Da mesma maneira a perspectiva de crescimento da radioterapia me parece limitada, porém, a oncologia clínica, a quimioterapia, imunoterapia e terapia genética podem ter crescimento ilimitado. Então, é de se esperar que nas próximas décadas, os tumores que hoje são tratados com grandes ablações cirúrgicas, sejam curados com procedimentos muito conservadores. Acredito que a cirurgia de cabeça e de pescoço vá evoluir para procedimentos minimamente invasivos. Um perfil que se adapta muito bem às aptidões e ao tipo de treinamérito que o otorrinolaringologista recebe.
CD - Do ponto de vista ético, o que "se deve" e o que "não se deve fazer" na relação entre as duas Especialidades?
AC - O que se deve fazer é buscar, continuamente, uma aproximação entre as duas áreas. Se escolhemos uma área de atuação tão próxima, é porque temos mais coisas em comum do que diferenças. O que não se deve fazer, em primeiríssimo lugar, é negar a existência e a autonomia da outra especialidade. O cirurgião de cabeça e pescoço não deve tolher o otorrinolaringologista no aprendizado e no desenvolvimento da cirurgia de cabeça e pescoço. São áreas inseparáveis. Da mesma forma, o otorrinolaringologista não pode desconsiderar o avanço científico e a excelente formação profissional alcançados através da Sociedade Brasileira de Cirurgia de Cabeça e Pescoço, nos últimas décadas. É uma especialidade que forma profissionais de altíssimo nível e que tem corpo nacional de destaque no mundo. Ainda temos muito o quê desenvolver na cirurgia de cabeça e pescoço, por conta do descaso que a ORL teve em relação à área nestas últimas décadas.
CD - O Sr. vê alguma perspectiva de união entre as duas sociedades, em longo prazo?
AC - Em longo prazo, nunca se sabe. Em curto prazo, é impossível. Em médio prazo, é muito difícil e pouco provável, por uma razão muito simples: não há isenção quando tratamos deste assunto. Existe uma paixão muito grande que envolve esta questão e uma preocupação maior em defender a sociedade de classe de cada especialidade, do que olhar para as necessidades dos doentes e para o campo do conhecimto que envolve tanto ORL quanto cirurgia de cabeça e pescoço. É muito difícil manter sensatez em conversa tão apaixonada e tão carente de isenção de propósitos. Por esta razão, eu não acredito nessa aproximação. Francamente, nem acho que deveríamos gastar tempo ou energia nessas tentativas infrutíferas. Acredito, sim, na formação profissional de qualidade, e é nesta direção que as duas especialidades devem caminhar. Sabemos que essas paralelas irão se encontrar, lá na frente, se este for o caminho seguido. Hoje, 70% dos otorrinolaringologistas têm um nasofaringoscópio em seus consultórios, que lhes permitem inspecionar as cavidades das vias áreodigestivas superiores com muito detalhamento. Por isso, é inconcebível que se perca diagnóstico precoce de câncer. Somente por esta razão, é absolutamente imperioso que otorrinolaringologista seja bem formado. É necessário incrementar o ensino de oncologia de cabeça e pescoço dentro da formação de ORL. É uma urgência absoluta, uma emergência. As escolas que não oferecem condições para este tipo de ensino deveram se aproximar de cirurgiões de cabeça e pescoço, e convidá los a atuar dentro dos serviços de ORL, formando nossos residentes adequadamente.
Todas as escolas de ORL precisam oferecer informação em cirurgia de cabeça e pescoço. Este seria um passo fundamental para a aproximação efetiva e, quem ,sabe, uma união definitiva das duas áreas, constituindo uma única especialidade no futuro. Finalmente, é inadiável que a SBORL encontre uma solução que regularize a situação daqueles cirurgiões de cabeça e pescoço, que embora não tenham feito residência em ORL abraçaram nossa especialidade e estão contribuindo para o seu desenvolvimento e na formação de nossos profissionais.
DR. AGRÌCIO CRESPO - OTORRINOLARINGOLOGISTA, PROFESSOR DOUTOR DO DEPARTAMENTO DE OTORRINOLARINGOLOGIA E CABEÇA E PESCOÇO DA FACULDADE DE CIÊNCIAS MÉDICAS DA UNICAMP.