Caderno de Debates (Suplementos)

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Artigo publicado no Caderno de Debates da RBORL:

Vol.68 ed.5 de Setembro-Outubro em 2002 (da página 24 à 30)

Autor: DR. WASHINGTON ALMEIDA

Entrevista

 CIRURGIA MICROENDONASAL







DR. WASHINGTON ALMEIDA (WA)

ENTREVISTA

DR. ALEXANDRE FELIPPU (AF)

WA - A Cirurgia endoscópica no Brasil é uma realidade, mas gostaríamos de saber como tudo isto começou. Voltando um pouquinho no tempo, como começou a cirurgia microscópica, já que você introduziu a cirurgia microscópica endonasal no país?

AF - Em junho de 77, teve o Congresso Mundial em Buenos Aires. Na ocasião, um otorrino de Barcelona, chamado Prates que se tornou um atrativo porque apresentou, pela primeira vez, a cirurgia microscópica. Em agosto deste mesmo ano, fui para Barcelona. E o Prates, na verdade, era um otologista. A Otologia foi a primeira especialidade a usar a cirurgia microscópica. A grande verdade é que a cirurgia não era sistematizada, a não ser a cirurgia do nervo vidiano, que era uma técnica muito interessante. E o Prates não dava muita importância para a cirurgia do seio facial. Para as cirurgias que a gente faz hoje isto é muito importante. A gente pode pegar os livros dele e ver que não tem quase nada sobre seios da face. Quando voltei de lá, em dezembro de 77, comecei a aplicar a técnica no Hospital Ibirapuera e veio toda uma geração atrás. A parte da cirurgia do seio facial passou a ficar muito mais interessante que a do nervo vidiano. E, com isto, comecei a colocar o microscópio na fossa pterigopalatina por dentro do seio maxilar.

WA - Me lembro quando começaram as taxas de sangramento do nariz e você sistematizou a cauterização da artéria esternopaladina...

AF - Sistematizei o processo e coloquei o corneto médio como referência. A cirurgia do nervo vidiano praticamente foi abandonada, quer dizer, eu abandonei há muitos anos, mas a sistematização ficou. Acontece que a gente modificou todos os instrumentos do Prates. Isso não foi fácil porque houve uma grande reação do meio...

WA - É, como em toda inovação, existe esta reação contrária. Tem que fazer primeiro um convencimento.

AF - O fato é que houve uma adesão muito grande. Os cursos foram intensos e isto formou toda uma geração dentro do Hospital Ibirapuera. Fora isso, começamos a viajar por toda América Latina, e se criou toda uma escola nesse continente, principalmente na Argentina. Comecei a dar cursos e operar em tudo quanto é lugar: Colômbia, Venezuela... Tanto que isto é reconhecidamente uma técnica que tomou impulso no Brasil. Nos EUA, existiam artigos do Helmutt Nicholson e de um ou outro menos conhecido, e isto não pegou nos EUA. Na Europa, destacava-se o serviço principalmente de Bordeaux e na Espanha só o serviço do Prates.

WA - O Brasil realmente saiu na frente no que se refere à cirurgia microscópica, mas, paralelamente, na Europa, na década de 70, e nos EUA, em 80, o pessoal fazia cirurgia com endoscópio.

AF - Em 1980, eu fui no 1° Simpósio, praticamente um Congresso, sobre microcirurgia, em que estava Walter Klinger, o introdutor da cirurgia endoscópica no mundo. Tive duas mesas redondas com que estava timidamente usando a cirurgia microscópica para tirar um cistozinho, uma coisinha. Ele estava animado com a introdução do microscópio, com a possibilidade de utilizar o microscópio como instrumento cirúrgico. Nesse evento nós já mostrávamos uma experiência grande com o microscópio. Eu vi nascer essa técnica e posso dizer que a microcirurgia já estava bem estabelecida. A agilidade do microscópio, a facilidade e a imagem dele são insuperáveis no detalhamento.

Estive em um congresso em Chicago, em 84 ou 85, e fiz um curso com o Kennedy e o Heinz Stammberger e foi muito interessante porque eles começaram a fazer a cirurgia, que já fazíamos com microscópio, com o endoscópio. A princípio, não parecia interessante trocar um olho por dois olhos e uma mão por duas mãos, até que nos demos conta que o conhecimento que já tínhamos de microcirurgia não tinha que ser jogado fora, muito pelo contrário! Toda a experiência com o microscópio poderia ser transferida para o endoscópio.

WA -Sim, tem o conhecimento adquirido de relações anatômicas e tudo isso...

AF - O Brasil, posso dizer com tranqüilidade, sempre teve uma tradição rinológica extraordinária, a partir de Ermínio de Lima, com a microcirurgia, fizemos uma escola grande. E posso dizer com a maior naturalidade que eu comecei isto aqui. Tenho muito orgulho porque tem muita gente boa no Brasil. É incontável a quantidade de gente que trabalha bem com microscópio e hoje com o endoscópio.

O nível da Rinologia interna brasileira evoluiu demais e a parte estética também está evoluindo. Mas a parte interna sempre teve tradição.

WA - Lembro que você era muito crítico em relação à cirurgia endoscópica, mas depois você deu uma guinada. Queria saber como se deu essa mudança para a cirurgia endoscópica e também se há, ainda, lugar para a cirurgia microscópica de nariz?

AF - Estive em Graz, na Áustria, em 91, vendo o Stammberger. Não fiquei muito entusiasmado com aquela maneira de operar, pelo endoscópio. Fiquei mais entusiasmado quando fui dar um curso em Curitiba, organizado pelo Marcos Mocellin, onde estava o Roy, de Miami, que na época eu não conhecia. Ele fazia cirurgia pesada de uma maneira completamente diferente. Nós fizemos o curso juntos, 50% para cada um. Num dia eu fiz uma cirurgia com microscópio e, no outro, ele fez com endoscópio. E eu o vi fazer como endoscópio coisas que eu julgava não ser possível com aquele aparelho - uma maxilarectomia medial.

Aí eu gostei muito porque é diferente de só pegar e arrancar. O Roy fez a cirurgia olhando no monitor. Depois disso, fui para Nova Iorque e conheci um francês, o Tom, que fazia cirurgia mais clássica e depois fez um curso aqui no Brasil.

WA -Sim, me lembro, foi no Einstein (Hospital Albert Einstein, São Paulo).

AF - Dissequei cadáver com o Tom no endoscópio. Na semana seguinte que o ele foi embora, eu tinha duas cirurgias para fazer e já fiz com o endoscópio e nunca mais pus microscópio por dentro do nariz.

WA - Mas ainda existe espaço para a cirurgia microscópica de nariz?

AF - Sem dúvida que existe! Sempre me perguntam isto e sempre respondo que a maioria das patologias pode ser tratada, operada com microscópio. Mas não há dúvida que o endoscópio é um instrumento mais rápido, mais ágil e tem uma outra vantagem extraordinária que é o aprendizado. O que eu percebo depois de formar os residentes - e faz 27 anos que eu trabalho com residentes, assim como você - percebo que é mais fácil para o pessoal trabalhar com o endoscópio.

WA - Sem dúvida! Até porque você tem uma qualidade de imagem melhor!

AF - Eu vejo meus residentes trabalhando com o endoscópio, hoje, com uma facilidade que parece que o aparelho faz parte dele, é uma extensão do corpo dele.

WA - E a dente observa que as vantagens das cirurgias com endoscópio para as intervenções frontais são imensas.

AF - Nem me fale! O frontal e o esfenóide são os mais beneficiados, é o que sempre digo nas minhas conferências. No frontal e no esfenóide, quando você precisa ajustar a angulação de luz, a vantagem é muito grande. Só acho que este é um instrumento que deve ser usado por um profissional muito bem treinado.

WA - Precisa ter um bom conhecimento anatômico...

AF - Qualquer cirurgia da parte anterior do crânio pode ser fatal se o indivíduo não domina a técnica, seja cirurgia microscópica ou endoscópica. O apelo comercial é muito grande pelo espetáculo televisivo que o endoscópio proporciona. Então, às vezes, o cara acha que é só comprar o aparelho que ele faz a cirurgia sozinho. O endoscópio não opera ninguém!

WA - Como citei no início, a cirurgia endoscópica teve uma evolução incrível em muito pouco tempo. Qual o futuro desta modalidade no Brasil? Porque começamos fazendo intervenções muito restritas e hoje já são realizadas cirurgias através dos seios nasais, na base do crânio.

AF - Acho que isto não tem fim. À medida que a tecnologia vai oferecendo novos instrumentos para a Medicina, a amplitude da cirurgia através do nariz vai aumentar, porque esta é uma via de acesso natural.

Se o indivíduo compreender a anatomia da base do crânio e que através do nariz pode ir para qualquer lugar, é quase ilimitado o território de atuação. Isto é uma questão de treinamento, de hábito. Acho que ainda existe um grande entusiasmo, da parte de todos, por esta técnica.

WA - É compreensível porque é uma cirurgia que dá prazer em realizar!

AF - Você completou minha frase. O endoscópio recuperou, em todos nós, o prazer lúdico de operar.

EP - A cirurgia endoscópica, pela funcionalidade e até pela alta tecnologia dos equipamentos, acaba por favorecer a habilidade do cirurgião em relação à microscópica, ou seja, não restringe a ação do médico. É correto afirmar isto?

AF - Muito interessante esta sua pergunta. Se você levar para o lado imaginativo, criativo, a resposta é positiva. O fato de você poder usar a dissociação óculo-motora, ou seja, um endoscópio de 70 ou 120 graus que permite uma visão mais ampla do ambiente, é claro que sua perspectiva cirúrgica aumenta. E o cirurgião quer ver! Se você vê mais, compreende mais! E o endoscópio vê aonde o microscópio não vê. A possibilidade de ver vários ângulos aumenta sua capacidade de resolver problemas.

WA - Apesar do microscópio oferecer a visão binocular, a visão de profundidade, o endoscópio permite contemplar o ambiente, o quadro todo, o que amplia o campo de ação do cirurgião. Gostaria que você desse uma recomendação para o pessoal que está começando sobre quais são os passos a seguir. Como você vê hoje a iniciação dos profissionais desta técnica no Brasil?

AF - A evolução aconteceu sob o ponto de vista técnico, mas se a gente fizer uma análise racional da capacidade de resolver problemas. Boa parte das doenças, se for falar em termos de cura, a mais comum, que é rinosinusopatia, que já era alérgica ou infecciosa, é uma doença que está longe de ser resolvida. A cirurgia faz parte do arsenal terapêutico, não é um apanágio.

WA - Mas a minha pergunta é mais em relação ao aprendizado. Ao pessoal que vai aos cursos de final de semana e, em seguida, já querem fazer cirurgia endoscópica. Você acha que o ensino desta técnica como é feito hoje está correto?

AF - Acho que há centros muito bons, que oferecem uma formação razoável. Acho, porém que a estrutura ainda é ineficiente, principalmente no que diz respeito à dissecação de cadáveres, que exige uma organização enorme e é fundamental para o aprendizado. Qualquer ambiente que oferece esta possibilidade, com certeza terá uma evolução muito maior das técnicas cirúrgicas. Toda cirurgia intranasal é uma intervenção de alto-risco. A maneira mais fácil de matar alguém é por esta parte do rosto. O treinamento é absolutamente necessário antes que o indivíduo comece a atuar. Acho difícil o indivíduo aprender no e com o doente, exclusivamente.

O endoscópio vai fazer parte da vida do profissional desde o início tanto para o diagnóstico quanto para cirurgia. Não há no meu serviço um só consultório que não use esse aparelho. E o mesmo ocorre em toda as especialidades.

EP - Se hoje o residente já começa estudando através da alta tecnologia, haja vista que, no Brasil, esta ainda é uma realidade incipiente e restrita aos grandes centros, não seria uma dificuldade para ele se tivesse que operar com o microscópio, no caso de uma emergência, por exemplo?

AF - Ah! Mas em nenhum momento foi tirado do residente o treinamento com o microscópio. E o conhecimento anatômico é uma exigência imperiosa, independente dos instrumentos utilizados. A cirurgia microscópica não deve ser, de jeito nenhum, abandonada, uma vez que o conhecimento anatômico e as técnicas macroscópicas são absolutamente necessários, pois são eles que vão resolver o problema. O endoscópio veio para somar e não substituir ou aposentar outra técnica ou aparelho. Tem hora que são absolutamente necessárias as duas mãos, os dois olhos e a experiência do cirurgião.

WA - É importante que o cirurgião seja formado não apenas usando magnificamente bem o endoscópio, mas que também saiba fazer cirurgia macroscópica. Nós temos uma preocupação muito grande quanto ao treinamento e a SBRCPF promove cursos itinerantes, além de uma iniciativa em parceria com a SBORL que é a bolsa de estudos. Depois de formado, o colega fica de um a três meses num servido vendo de tudo. Desde cirurgias endoscópicas às microscópicas, macroscópicas e de emergência.

AF - Estes instrumentos, seja o microscópio ou o endoscópio, podem ser usados em qualquer cavidade. São instrumentos que ampliam a visão do cirurgião, mas nada substitui o conhecimento e muito menos a compreensão da doença, porque são estes fatores que determinarão a técnica, o planejamento técnico e a abordagem cirúrgica.

DR. WASHINGTON ALMEIDA - MÉDICO, OTORRINOLARINGOLOGISTA, DOUTORANDO EM OTORRINOLARINGOLOGIA PELA FMUSP.

DR. ALEXANDRE FELIPPU - MÉDICO, OTORRINOLARINGOLOGISTA, CHEFE DO SERVIÇO DE OTORRINOLARINGOLOGIA DO NÚCLEO DE OTORRINOLARINGOLOGIA DE SÃO PAULO.

Entrevista conduzida pelo jornalista EDSON PARENTE (EP).

 

 

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