O salicilato de sódio, derivado do ácido salicílico, tem sido extensamente utilizado desde que Stricker e MacLagan, em 1876, mostraram seu valor no tratamento da febre reumática (Bywaters, 1963). Esta droga pode provocar diversas alterações tóxicas (Woodbury, 1965) destacando-se seu efeito sôbre o labirinto.
Existem numerosas referências de sintomas cocleares, tais como zumbidos e hipoacusia, durante a intoxicação salicílica (Oliveira, 1971), mas os estudos do aparelho vestibular nestes casos são escassos. Tonturas e desequilíbrio na marcha foram relatados por Kirchner (1881) e Schilling (1883). Falbe-Hansen (1941) refere, ao lado dos sintomas auditivos, vertigem nos seus pacientes em tratamento salicílico, sendo o único a relatar presença de nistagno espontâneo durante a intoxicação. Em 1965 Waltner fêz exames vestibulares em um paciente intoxicado pelo salicilato e não encontrou alterações. Entretanto, houve diminuição das respostas vestibulares às provas térmicas num paciente estudado por Kapur (1965) com a mesma intoxicação.
Os estudos histológicos realizados por Wittmach (1903), revelaram alterações parciais do gânglio vestibular. Algumas células do epitélio das cristas ampolares e das máculas utricular e sacular apareceram com núcleos anormais, tanto no cão (Blau, 1904) como no camundongo (Hyke, 1904), tratados com salicilato. Silverstein, Bernstein e Davies (1967) comprovaram que a intoxicação salicílica produz mudanças nos líquidos labirínticos: decréscimo da atividade da desidrogenase málica e elevação de teor de glicose, sem alterações do sódio potássio e das proteínas.
Com o propósito de esclarecer a natureza do efeito vestibulotóxico do salicilato de sódio, e como parte de um estudo geral da ototoxicidade dessa droga, o presente trabalho apresenta os resultados da intoxicação aguda sôbre o labirinto posterior da cobaia.
Material e MétodosOs experimentos foram realizados em 10 cobaias com pêsos de 300 a 500 g. O salicilato de sódio era utilizado em solução de glicose e injetado por via intraperitoneal em doses únicas de 600 mg por kg de pêso.
Para o estudo da reatividade vestibular utilizou-se um tipo de teste calórico com registro eletronistagmográfico. A técnica por nós utilizada foi desenvolvida por Marseillan, Grellet e Colafémina (1969) e baseia-se no registro eletronistagmográfico das respostas oculares em cobaias preparadas para experimentos crônicos com eletródios permanentes.
Em síntese, a técnica é como segue: os eletródios são feitos de fio de aço inoxidável esmaltado de 0,2 mm de diâmetro. Para a preparação, retira-se o isolamento das duas extremidades do fio. Uma é enrolada para formar uma espiral de 3 mm de diâmetro e a outra é estanhada e soldada ao conector. Após anestesia do animal com pentobarbital sódico, uma incisão é feita paralela ao eixo longitudinal da cabeça desde o vértice até a fronte. Em seguida, é feito o descolamento da pele dos cantos externos dos olhos. Neste local a espiral é implantada sob a pele. A outra extremidade do eletródio, passando por baixo da pele, é ligada e um conector fixado com parafusos e resina acrílica à abóbada craneana; também é colocado um eletródio indiferente, ligado ao conector e com a extremidade livre sob a pele.
A cobaia preparada com eletródios permanentes é colocada num suporte especial construído de tal modo que limite seus movimentos e lhe mantenha a cabeça em ângulo de 45° com o plano horizontal; assim, o canal horizontal fica em posição vertical, com a ampôla para cima. A irrigação do conduto é feita com água a 10 °C. Injetam-se 2 ml, através de um tubo de polietileno, que atravessa uma peça acrílica moldada para ajustar-se ao pavilhão auricular do animal. Outra perfuração na mesma peça permite a saída de água do canal auditivo externo. As respostas nistágmicas são registradas com eletroencefalógrafos Alvar Reega VIII. Esse traçado, que representa a resposta labiríntica, pode ser analisado em seus vários parâmetros: latência, duração, amplitude, freqüência, ritmo. (Fig. 1).
FIG. 1 - Eletronistagmograma normal de uma cobaia. Calibração de tempo em segundo.
Nos experimentos de Marseillan, Grellet e Colafêmina (1969), os parâmetros mais constantes foram a duração (16 a 60 seg) e a freqüência máxima (2 a 6 oscilações por segundo). Utilizando-se essa técnica, é possível avaliar a normalidade do labirinto posterior de cobaias, estudar as alterações quantitativas que as respostas podem sofrer peia ação de diferentes agentes e comparar as reações de cada lado, que normalmente devem ser aproximadamente simétricas.
ResultadosAs cobaias com eletródios implantados foram submetidas durante 2 semanas antes da injeção a provas eletronistagmográficas de contrôle, para o estabelecimento dos valôres normais de freqüência máxima e duração do nistagmo.
Após a administração de uma dose única intraperitoneal de 600 mg/kg de pêso de salicilato de sódio foram feitos registros eletronistagmográficos repetidos até 48 horas. Observou-se diminuição dos valôres de duração e freqüência, entre 40% e 65%, e em alguns casos de até 100%. Esse efeito foi verificado a partir da segunda hora após a administração da droga, e permanecia por aproximadamente 12-15 horas. Posteriormente os valôres normais se restabeleciam. Em nenhum caso o efeito persistiu por mais de 24 horas. Nas figuras 2 e 3 são apresentados os resultados de dois experimentos típicos.
FIG. 2 - Abcissas: Tempo após a administração intraperitoneal de salicilato 600 mg/kg. Ordenadas: Variações da duração e freqüência máxima em valôres porcentugis em relação aos contrôles prévios. O nível 100% corresponde à média dos valôres prévios.
FIG. 3 - Gráfico do experimento análogo da figura 2 em outra cobaia
DiscussãoComo foi visto, os relatos sôbre a vestibulotoxicidade da droga (tonturas, instabilidade e nistagmo) resumem-se a citações escassas de sintomas observados em pacientes em cujo tratamento estava sendo utilizado o salicilato. Não existem trabalhos clínicos ou experimentais específicos para esclarecer se realmente existe ou não esta vestibulotoxicidade.
A diminuição bilateral das variáveis eletronistagmográficas (freqüência máxima e duração), produzida por administração intraperitoneal de uma única dose de salicilato, mostra que a droga tem ação inibidora sôbre o sistema vestibular; os valôres variáveis retornam aos níveis normais horas depois. Neste caso não aparece instabilidade nem nistagmo.
A ausência de manifestações clínicas de distúrbios vestibulares em um paciente com surdez severa devida a intoxicação salicílica (Waltner, 1955), pode ter resultado não da ausência da vestibulotoxidade da droga, mas de sua ação depressora equilibrada sôbre os dois sistemas vestibulares. Seu achado, no mesmo único paciente de resposta normal à prova térmica não deve ser a regra. Kapur (1965), em outro paciente, encontrou depressão da resposta à mesma prova.
As alterações bioquímicas na endolinfa e perilinfa, bem como a presença de salicilato de sódio na perilinfa, (Silverstein, Bernstein, Davies, 1967) sugerem ação da droga no ouvido interno. O quadro resultante da intoxicação salicílica aguda na cobaia é muito semelhante ao da crise da doença de Ménière no homem. Essa semelhança sugere no que diz respeito à vestibulotoxicidade que, o sítio de ação do salicilato seja o ouvido interno.
Os trabalhos dos últimos anos (Smith, 1963) têm demonstrado que o salicilato tem efeito inibidor sôbre pelo menos três grupos de enzimas celulares. A droga deprime a fosforilação oxidativa, inibe certas transaminases e várias desidrogenases piridina nucleótides. Estas ações poderiam ser exercidas no vestíbulo alterando o funcionamento das células sensoriais. A semelhança com a doença de Ménière entretanto contribuiria para a proposição de Falbe-Hensen (1941) de que as manifestações labirínticas seriam devidas ao aumento da pressão intralabiríntica provocada pelos salicilatos.
ResumoOs efeitos vestibulares da intoxicação salicílica aguda foram estudados em 10 cobaias. A função do canal semicircular foi testada registrando-se as respostas eletronistagmográficas a uma irrigação com água fria do canal auditivo externo em animais com elétrodos permanentes implantados nos cantos externos das órbitas.
Foi encontrado que uma dose de 600 mg/kg de salicilato de sódio intraperitoneal produz uma queda em freqüência e duração de 65 a 100%, e que êste efeito é reversível de tal modo que as cobaias respondam normalmente após 24 horas.
SummaryThe vestibular effects of acure salycilate intoxication were studied in 10 guinea-pigs. The semicircular canal function was tested recording the electromistagmographic response to a cold irrigation of the external ear canal in animals with permanent electrodes implanted on the external "canti" of the orbits.
It was found that an intraperitoneal dose of 600 mg/kg of sodium salycilate produces a drop in frequency and duration from 65 to 100% and that this effect is reversible, as he guinea-pigs showed normal responses after 24 hours.
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* Assistente Doutor Voluntário do Departamento de Oftalmologia e Otorrinolaringologia da Faculdade de Medicina de Ribeirão Prêto, U.S.P.
** Assistente Doutor do Departamento de Fisiologia (Laboratório de Bioacústica) da Faculdade de Medicina de Ribeirão Prêto, U.S.P.