É do conhecimento dos otorrinolaringologistas , que uma hipoacusia neuro sensorial pode ser devida à vários agentes , inclusive medicamentos ototóxicos e ruídos intensos , que agem nocivamente sôbre o ouvido interno . Sabe-se também que geralmente estas hipoacusias se associam à modificações estruturais do ouvido interno . Para uma tentativa de solução do problema , deve-se avaliar o caráter , localização e mecanismo do dano das células sensoriais , dos elementos de suporte e dos componentes neurais do órgão de Corti .
Os problemas citados inicialmente - trauma acústico e ototoxicidado de antibióticos - foram estudados por métodos histológicos tradicionais. Com êstes métodos , já foram feitos estudos laboriosos , ajudando armazenar informações da estrutura coclear o modificações desta estrutura , relacionadas com as perdas auditivas, falhando entretanto nos detalhes das descrições . O melhor dos métodos prèviamnte usados para registrar a distribuição do dano coclear foi aquêle desenvolvido por Guild (1921) e Guild e col . (1931), para ouvidos humanos e usados como modificações por Schwknecht (1953, 1960) e outros , para o ouvido humano e do animais de experimentação.
Em virtude dos procedimentos utilizados neste método , várias são as fontes de êrro sérios possíveis:
a. Fixando-se o planto de secção , como sendo o do eixo da cóclea, subordina-se a orientação do grupo de células ao da coclea como um todo ; como as células estão arranjadas em uma espiral contínua sòmente poucas células podem aparecer no plano médio-modiolar . Todo o resto será mais ou menos tangencial .
b. A preparação da poça em celoidina exige muito tempo : entre o sacrifício do animal e o da leitura do corte, isto porque há, necessidade da fixação, de calcificação, desidratação, inclusão, orientação, corte e coloração. Para tudo isto são necessários aproximadamente 5 meses. Para a reconstrução é necessário outro tanto .
c. A não utilização da tôdas as secções para reconstrução e estudo do órgão de Corti impede que se possam estudar as células situadas entre duas secções escolhidas. Em casos de degenerações irregulares por exemplo, não se fica sabendo se as células não vistas tinham ou não lesões. Dêste modo conclue-se que informações de importância crucial são excluídas, isto porque não se, vêm as células em relação às suas vizinhas.
Para obter-se um estudo minucioso de lesões do órgão de Corti , devemos estudar as células alteradas e inalteradas e a relação destas células com as outras, e com outras estruturas como estria vascular , membrana basilar , etc.
Conclue-se que para o estudo da citoarquitetura do órgão de Corti necessita-se atualmente de métodos mais exatos em virtude da precisão das técnicas de medida e análise de sons que hoje são utilizados.
Os métodos a serem empregados modernamente deveriam ter os seguintes requisitos básicos :
1. Deveriam dar informações exatas sôbre o estado e localização de tôdas ou de um grande grupo representativo de células sensoriais em relação às células vizinhas, elementos suporte , capilares e outras estruturas.
2. Deveriam permitir uma localização exata das áreas estudadas permitindo comparação com preparações de outras animais.
3. Deveriam permitir compatibilidade com a técnica histoquímica, microscopia eletrônica e estudos quantitativos.
4. Deveriam ser simples e reproduzíveis de um laboratório para outro do modo que vários laboratórios pudessem trocar experiências e resultados pelo meio mais simples possível de transmissão, expressas em têrmos que contenham informação exata , requerendo pouca interpretação. Uma técnica que preenche êstes requisitos básicos e ao mesmo tempo não apresenta as desvantagens citadas de outros métodos é a técnica de preparação de superfície , aplicada, metodizada e divulgada por Engström e Hawkins (1962) mas antes utilizada já em 1884 por Retzius ; com espécimens corados por Held (1920), Neubert (1952) e Beek (1959) e utilizado recentemente por Vinnikov e Titova (1961).
DESCRIÇÃO DA TÉCNICA
O material de estudo consiste principalmente de ossos temporais de cobaias . A cobaia possibilita obter bons espécimens para estudo , desde que a técnica tenha sido bem treinada. As cobaias jovens são os animais mais favoráveis para quem se inicia nesta técnica , isto porque a parede óssea ao redor da cóclea é delgada é é fácil dê ser liberada dos tecidos moles .
Como na literatura existe um certo número de referências que citam que agentes hipnóticos podem trazer alterações ultra estruturais ou químicas das células sensoriais do ouvido interno , o uso dêstes agentes deve ser evitado; por isso os animais são mortos por decapitação. Em seguida , a cabeça é dissecada de modo a se extrair o temporal de cada lado , livre do tecidos moles . Os ossos temporais são então separados do crânio o colocados em placas de Petri com fixador . Imediatamente o ouvido médio é exposto e os ossículos são removidos com pinças delicadas. Em cobaias remove-se antes a ponte óssea que cruza a platina .
Em seguida abrem-se as duas janelas ( oval o redonda ), e parte da espira basal com estiletes . Abre-se também o ápice por onde faz-se gotejar o fixador que flue pelas duas janelas abertas escorrendo pelas espiras da cóclea (Fig. 1). Tôdas as manobras citadas anteriormente tem por objetivo uma fixação boa e rápida e devem ser feitas , tão ràpidamente quanto possível e com devido cuidado para evitar dano ao órgão de Corti . Com experiência , estas manobras podem ser feitas em um minuto ou menos .
O fixador geralmente em uso é uma solução 1,5% do tetróxido de osmio tamponado por veronal , para estudo em microscópio de contraste de fases . Podem-se usar outros fixadores . O uso de formalina a 10% em tampão fosfato 0,1 M. Ph 7 ( Oliveira e Marseillan , 1968) é mais vantajoso para preparações a serem estudadas no microscópio de contraste de fases , pois a preparação do fixador é extremamente simples , não precisando de deixar-se os espécimens no congelador , nem sendo necessário os banhos em solução fisiológica, obtendo-se excelentes preparações . Após a fixação imediata os espécimens são deixados em frascos etiquetados durante tempos variáveis até a preparação dos fragmentos do órgão de Corti .
O microscópio usado para a preparação dos espécimens é um esterco-microscópio cirúrgico com boa iluminação ( Otoscópio Geiss ). O estudo da cóclea começa com a observação no ostereomicroascópio da peça como um todo . Para isso grandes porções do osso temporal ao redor da coelea são quebrados. Mesmo nesta 1 .ª fase podem-se obter informações importan tes como distensão da membrana de Reissner, degeneração externa do órgão de Corti , etc.
FIG. 1 - Cóclea da cobaia isolada do osso temporal . A seta indica o orifício no ápice para introduzir o fixador . JO: Janela Oval . JR: Janela Redonda . Aumento 30 X. - FIG. 2 - Cóclea da cobaia depois de retirada sua parede óssea . A seta indica o órgão de Corti . 1 , 2, 3: espiras cocleares. Aumento 30 X. - FIG. 3 - Modíolo e órgão do Corti ( assina lado com uma seta ). 1 , 2, 3: espiras cocleares. Aumento 30 X.
Na remoção da calota óssea com estiletes porções da estria vascular muitas vêzes aderem ao mesmo , contudo para o estudo do órgão de Corti é melhor remover a estria com o osso . Isto deve ser feito com muito cuidado especialmente na porção mais basal da cóclea, pois a estria é mais aderente ao órgão de Corti nesta região (Fig. 2, 3). Após a abertura da cóclea, como foi dito prèviamente , retiram-se fragmentos do órgão de Corti . Cada fragmento deve conter 1/3 a 1/2 do comprimento do órgão de Corti da espira correspondente , sendo montada entre lâmina e lamínula com glicerina .
Dêste modo a preparação de superfície está pronta para ser estudada ao microscópio de contraste de fases ( aumento de 100 a 1000 vêzes ) por um processo de " secção optica " ou seja focalizando-se o campo do visão em diferentes planos desde a superfície das células até a profundidade . Com êste processo observam-se e fotografam-se as células ciliadas ao nível dos cílios , ao nível dos núcleos e ao nível da membrana basilar onde se situa o órgão de Corti (Fig. 4 , 5).
FIG. 4 - Fotomicrografia de contraste de fases de uma preparação de superfície do órgão , de Corti normal , p: pilares ; ci : células ciliadas internas; ce: células ciliadas externas ; 1 , 2, 3: fileiras de células ciliadas externas . Aumento 400 X. - FIG. 5 - órgão de Corti normal . Aumento 1300 X. Para indicações ver fig. 4 .
APLICAÇÃO DA TÉCNICA
Esta técnica vem sendo utilizada pelos autores , para estudo das alterações da citoarquitetura coclear produzidas por drogas ototóxicas na cobaia . Entre as drogas estudadas, que produziam lesões e até desaparecimento das células ciliadas com desarranjo na citoarquitetura coclear, temos a gontamicina ( Marseillan , Oliveira e Corrado , 1970, Fig. 6 ), o paromomicina ( Oliveira e Marseillan , 1969, Fig. 7).
FIG. 6 - Lesão do órgão de Corti por droga ototáxica . Gentamicina 100 mg/ kg pêso/ dia / 24 dias . As setas assinalam células lesadas. Aumento 1300 X. - FIG. 7 - Lesão do órgão de Corti por droga ototóxica . Paromomicina 100 mg/ kg pêso/ dia /35 dias . Lesões generalizadas das células ciliadas.
As lesões estudadas são registradas num " cocleograma " como no caso do exemplo com gentamicina na Fig. 8 . Estes cocleogramas são do maior valor para o estudo quantitativo das lesões . A técnica descrita tem sido também aplicada para estudo histológico de temporais humanos ( Bredberg , Engstrom e Ades , 1965), Bredberg (1967) e, entre nós , Costa Filho (1970).
FIG. 8 - Cocleograma da preparação da FIG. 7 . IHC: células ciliadas internas . OHC: células ciliadas externas . I, II, III: espiras cocleares. Os círculos cheios indicam células lesadas.
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- Retzius , G .: Das Gehororgan der Wirbeetiere . II. Das Gehororgan der Rptilien , der Vogel und der Saugetiere . Samson & Wallen , Stockholm , 1884
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* - ** Departamento de Fisiologia ( Laboratório de Bioacústica ), Faculdade de Medicina de Ribeirão Prêto , U.S.P. , Ribeirão Prêto , São Paulo.