O diagnóstico precoce da otite tuberculosa primária face a raridade de sua apresentação, aspectos clínicos, terapêuticos, assim como sua anátomo-patologia nos levaram a apresentar e considerar êstes casos.
Observação n.º 1
B. M. Z. - 4 meses, 27-9-67, com a idade de 42 dias paralisia facial e, quatorze dias após supuração do OE no qual foi feita paracentese e tratamento por antibiótico que fêz ceder a paralisia com idade de 65 dias. Continuou a supurar do OE no qual apareceu um pólipo. Ao exame do OE massa poliposa avermelhada que obstrui a luz do meato e atinge seu 1/3 externo. Gânglio preauricular presente com reação ganglionar cervical. Demais normal ao exame ORL inclusive MT do OD absolutamente normal. RX tórax normal. Mantoux 1/1000 30 mm. A radiografia do temporal esquerdo mostrou, antro ampliado e de contornos alisados, osteoporose ou destruição parcial dos ossículos e uma redução de transparência da caixa.
Conclui o radiologista que as lesões descritas são muito provàvelmente devidas a otite média crônica, com possível colesteatoma antral ou com granuloma de colesterol do antro mastóideo. Em 3-10-67 foi submetida a biópsia de pólipo e em face do exame radiológico decidimos pela abertura de mastóide com revisão da caixa. Encontramos massa polipóide no ático com caseum, envolvendo os ossículos com destruição de apófise longa da bigorna. Após limpeza, columelização maleo-estapedial por bigorna e enxêrto de fascia temporal.
O material foi enviado para exame anátomo-patológico que revelou nos cortes infiltrado giganto-histiocitário, necrose de tipo caseoso e porções de epitélio plano com ceratose. Conclui o anatomopatologista por granuloma com necrose compatível com tuberculose e a pesquisa de MAR foi negativa.
Novos cortes histológicos foram realizados com a finalidade de demonstrar o bacilo AAR, mas todos foram negativos. Três semanas após a cirurgia havia discreta supuração do meato acústico. A secreção foi colhida para pesquisa de BAAR cujo exame direto foi negativo e o cultural em meio de Löewenstein foi também negativo em 28 dias de incubação.
Iniciado o tratamento com hidrazida na razão de 12 mg por kg/dia, houve rápida regressão da supuração e a revisão feita em 1-11-67, mostrou o ouvido completamente seco, com ampla perfuração central de MT.
Observação n.º 2
L. C. K. - 2 meses 17-6-68, com idade de 1 mês repentinamente supuração fétida amarelada do OD e após 15 dias notaram formação de pólipo no meato acústico do OD. OE sempre foi normal.
Ao exame verificamos secreção purulenta no meato, massa polipóide avermelhada de tipo granulomatoso, que tomava o 1/3 interno do meato acústico. Demais normal ao exame inclusive a MT do OE.
O hemograma revelou linfocitose de 15000 sedimentação 7 mm na l.ª hora e o exame bacteriológico foi negativo, não se observando germes AAR. Reação de Mantoux 0,1/10000 foi positivo fraco com 9 mm de enduração. A biópsia feita em 19-6-68 revelou no exame microscópico que nos cortes há porção de tecido inflamatório com histiócitos epitelióides, neutrófilos, gigantócitos tipo Langhans e pequena área de necrose, a pesquisa de BAAR foi positiva e conclui o anatomopatologista por otite tuberculose. Instituída a terapêutica com Nicizina xpe. 1 medida de 8/8 h. Pas. xpe. 1/2 medida de 8/8 h. D-cicloserina 1/2 comprimido ao dia e Complexo B 10 gôtas 2 vêzes ao dia.
Houve desaparecimento completo de supuração em 1-7-68, mostrando-se o ouvido seco com ampla perfuração central de MT. A revisão feita em 25-8-68 mostrou para nossa surprêsa MT íntegra com excelente cicatrização expontânea.
Observação n.º 3
D. K. O. - 2 meses 29-7-68, com a idade de 27 dias supuração sangüinolenta da AO, sendo que após 14 dias houve formação de massa polipóide em AO mais acentuado no OD. Sempre com curativos locais e tratamento ser resultado. Ao exame secreção purulenta em AO com formação polipóide avermelhada ocupando o 1/3 interno de ambos os meatos, acústicos. Demais normal ao exame ORL.
Não se palpam gânglios preauriculares nem cervicais.
RX pulmões normais; sedimentação 30 mm l.ª hora, hemograma normal. Pesquisa direta de BAAR negativa. Reação de Mantoux 0,1/1000 positivo 30 mm de enduração e área flictenular 14 mm.
Em 30-7-68 foi submetido a biópsia de AO cujo exame microscópico revelou que nos cortes há sob o epitélio plano infiltrado linfo-histiocitário com células gigantes: a pesquisa de BAAR, foi negativa. Conclui o anatomopatologista por granuloma, com necrose compatível com tuberculose (Fig. 1).
FIG. 1 - Observação n .O 3 - Córte mostrando infiltrado linfo-histiocitaírio com células gigantes. Bacterioscopia negativa. Córte mostrando infiltrado formado por histiócitos epitelióides e linfócitos. Baciloscopia negativa.
Foi instituída terapêutica a base de Nicizina xpe. 1/2 medida de 8/8h. Cicloserine 1/ comp. de 12/12 horas. Em 3-9-68 secou completamente o OD. No OE há discreta supuração. A revisão de 7-10-68 mostrou no OD. MT íntegra com discreta hiperamia e no OE perfuração central de MT com discreto edema de mucosa de caixa.
Observação n.º 4
A. F. S. - 5 meses 9-5-68, supuração fétida do OE desde idade de 1 mês sendo que há uma semana edema retroauricular que está aumentando gradativamente, alimenta-se normalmente e o estado geral é bom. Ao exame verificamos no OE secreção purulenta no meato com intenso edema das paredes não permitindo a visualização de perfuração. Abaulamento retroauricular com flutuação. OD normal e restante do exame ORL sem particularidades.
Em caráter de urgência foi submetido a mastoidectomia no OE em 10-5-68. À cirurgia encontramos numerosos seqüestros ósseos na mastóide, com ampla exposição de meninge e seio lateral. Restavam apenas fragmentos dos ossículos que estavam envoltos por massa polipóide avermelhada.
No pós-operatório tivemos intensa supuração com deiscência de sutura retroauricular. Na segunda semana surgiram gânglios cervicais cuja biópsia foi feita em 30-5-68. O exame histopatológico revelou que nos cortes há uma área de necrose circundada por orla linfo-histocitária com células gigantes tipo Langhans, pesquisa de bacilos AAR foi positiva. Conclui o anatomopatologista por tuberculose caseosa. (Fig. 2 e 3) O exame da secreção purulenta na pesquisa direta de BAAR em 25-5-68 mostrou negativo. Em 7-6-68 foi iniciado o tratamento com sulfato de estreptomicina 50 mg de 12/12 horas. Nicizina comprimido de 100 mg 1/2 comp. 2 vêzes ao dia. PAS. 0,5 gr 1 comp. de 12/12 horas. Houve rápida regressão da supuração e na última vez que mantivemos contato com o paciente, 20 dias após o início do tratamento, a orelha estava sêca.
FIG. 2 - Observação n.º 4 - Extensa área de necrose óssea com infiltrado linfohistiocitário com células gigantes tipo Langhans. Espaços medulares apresentando infiltração inflamatória com granulomas histio-gigantocitários e necrose (canto inferior direito).
FIG. 3 - Observação n.º 4 - Com maior aumento vê-se área de necrose óssea e no centro um gigantócito tipo Langhans. Bacterioscopia foi positiva.
Aspectos ClínicosSòmente no primeiro caso de otite tuberculosa no lactente houve dificuldade diagnóstíca, uma vez que desconhecíamos sua existência, principalmente sob a forma de primo-infecção. A suspeita do patologista e a confirmação posterior nos alertou, de modo a nos familiarizarmos com o quadro clínico descrito na literatura.
O bom estado geral de tôdas as crianças, o início insidioso sem dor, a formação de pólipo aural granulomatoso em 3 casos, a paralisia facial em um caso e a resistência a tôda terapêutica convencional foi o traço comum em nossa casuística, plenamente de acôrdo com a revisão bibliográfica.
A ocorrência de paralisia facial no caso n.° 1 foi o fato de maior evidência. Ormorod 1 acha que êste fato é um dos poucos sinais da natureza, específica da inflamação. Cadar 2 em seus sete casos também teve 1 com paralisia facial.
Ghon e Nudlich 3 no único caso que descreveram em 1927 com minucioso estudo histopatológico de necropsia também encontraram paralisia facial. Maior incidência de paralisia facial foi citada por Miller 4 que nos 6 casos de tuberculose primária da orelha tiveram 4 com paralisia facial. Não acha uma explicação razoável para a maior incidência de paralisia facial nas otites tuberculosas do que nas outras otites ou infecções não específicas, opinião esta também defendida por Lincoln 5. Somos de opinião de que a paralisia facial na otite tuberculosa ocorre por ação das toxinas do BK absorvidas pelos vasos que irrigam o nervo facial, uma vez que no caso 1, por nós operado, tivemos o cuidado de examinar o canal de Falópio no qual não encontramos solução de continuidade.
Alguns aspectos Moram comuns nos 3 primeiros casos. Todos tomaram BCG no primeiro dia de vida, nasceram no mesmo hospital e são filhos de pais, funcionários de um mesmo estabelecimento bancário na mesma cidade. O inquérito familiar incluindo as serviçais, hospital e no local de trabalho dos pais foi completamente negativo. Neste caso a suspeita recaiu sôbre o BCG que eventualmente poderia estar contaminado, cuja amostra ainda não foi por nós examinada, mas deverá ser feito. Mas porque sòmente nestas 3 crianças surgiu otite tuberculosa e em centenas de outras não?
Talvez a explicação esteja no fato da regurgitação e penetração do material pela tuba. Vários autôres, Lemaryey 6, Theissing 7, 8, Hammelburg 9, Zarfl 10, Kleinschmidt e Schurmann 11 e Bauer 12 admitem a penetração do BK pela trompa de Eustáquio, principalmente na primo-infecção e defendem a via hematogênica na tbc secundária. Regurgitação nasofaríngea coexiste, muitas vêzes, com distúrbio de deglutição, especialmente em neonatos e muito particularmente quando a ingestão de alimentos é feita em posição supina. A extensão da regurgitação nasofaríngea, pela tuba auditiva, até a orelha média e cavidade anexas é ocorrência suspeitada por Wilson 17 e definitivamente comprovada por Wittenborg e Neuhauser 18 demonstrando a presença de bário na fenda auditiva em casos de recém-nascidos com distúrbio transitório da deglutição que ingeriram suspensão de bário em decúbito dorsal. Em lactentes com dano cerebral essa ocorrência é mais freqüente e mais intensa.
Bouchet e Debain 13, Theissing e Miller classificam em otires primárias aquelas nas quais há adenopatia e secundárias aquelas nas quais não há adenopatia. Aliás êste último autor admite 3 vias de infecção.
l.ª - Primária sempre por via tubária com adenopatia entre a mastóide o ângulo de mandíbula.
2.ª - Contaminação da orelha média, numa criança infectada. Não há Cenopatia.
3.ª - Disseminação hematogênica de foco a distância dando osteite.
Cemach14 admite adenopatia também na otite tuberculosa secundária, mas na ocorrência da tuberculose primária de orelha média, o que não é admitido por Lindsay15 que admite sòmente a otite tuberculosa secundária e acha que os casos descritos na literatura não foram completamente estudados. No entanto os estudos de Kleinschmidt e Schürmann na tragédia de Lübeck não deixam dúvidas: dos 79 casos encontram-se primo-infecção na orelha média cm 8, e reafirmaram que a infecção sempre se faz por via tubária.
DiscussãoA experiência adquirida com êstes 4 casos de otite tuberculosa permite alguma conclusão de valia. A mais importante nos parece ser a presença de pólipo aural em lactentes. Os únicos que vimos foram em 3 de nossos 4 casos e já no segundo caso fazíamos antes da biópsia, a suspeita de sua etiologia tuberculosa, o que veio a ser confirmado pelo exame histopatológico. A presença de pólipo aural com supuração e paralisia facial deve ser considerado origem tuberculosa até que se prove o contrário.
O fato de tôdas as crianças terem tomado o BCG via oral no primeiro dia do inquérito ambiental ter sido negativo, permite suspeitar que exista uma ação direta entre a vacinação e a otite tuberculosa, o que deve ser estudo com maior profundidade.
No primeiro caso realizamos uma mastoidectomia desnecessária por desconhecermos sua etiologia. Também não logramos êxito com a reconstrução de membrana timpânica devido ao terreno infectado. Aliás Mawson 16 desaconselha qualquer cirurgia reconstrutiva, tanto sobre a cadeia ossicular quanto sôbre a membrana timpânica enquanto a infecção não for inativada.
ResumoOs autôres apresentam 4 casos de otite tuberculosa primária sendo que a pesquisa de BAAR foi positiva em apenas 2 casos. Discutem as vias de penetração do BAAR, a ocorrência de paralisia facial, os aspectos clínicos mais importantes e a conduta terapêutica. Chamam a atenção para a possibilidade de BCG via oral ser o agente que causa o moléstia.
Summary
The authors presented four cases of primary tuberculosas otitis, in wich the BAAR research was positive in only two cases. The ways of the BAAR penetration, the occurrence of the facial paralysis, the more important clinical aspects and the terapeutic conduct are discussed.
They called attention to the possibility of the BCG to be the causal agent of the diesase.
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* Chefe do Serviço de ORL do Hospital Ernesto Dorrelles - Pôrto Alegre.
** Docente da Faculdade de Medicina da Universidade do R. Grande do Sul.
*** Médico otologista-Assistente da Fac. Católica de Medicina de P. Alegre.