ISSN 1806-9312  
Quarta, 30 de Outubro de 2024
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929 - Vol. 36 / Edição 2 / Período: Maio - Agosto de 1970
Seção: - Páginas: 92 a 96
Amígdala Focal
Autor(es):
Sílvio Marone*

Um órgão que é sede de germes patogênicos capazes de ocasionar alterações locais (por contiguidade) ou determinar processos de bacteremia ou toxemia por difusão sistêmica e conseqüentes alterações regionais e gerais (por repercussão imunológica), dá-se o nome de foco de infecção.

Antes de estudarmos a amígdala como foco de infecção, faz-se necessário lembrar as condições gerais apresentadas por Vogel para que haja a atuação focal:

1.º) os germes devem encontrar ambiente fechado, isto é, isolados do exterior (foco fechado);
2.º) em tais focos a vascularização deve ser pobre;
3.º) predisposição do organismo à ação dos germes.

Na amígdala focal encontramos a aplicação dêsses três postulados. Assim, no seu parenquima ou no fundo de suas criptas, quando a amígdala é infectada, encontram-se cistos de pus; os estudos histológicos demonstram que tais cistos se encontram enclausurados com escassa rêde vascular. Em virtude dessa diminuta circulação, compreende-se que a vinda de elementos de defesa no local da infecção é também diminuta o que acarreta reações imunológicas e conseqüentemente intensa produção de anti-corpos imunitários; resulta dêsse fato um estado de imunidade instável, isto é, uma eventual maior descarga de germes ou toxinas - como o que sucede em fases de infecção aguda ou ainda em períodos de queda de resistência - desencadeará manifestações patológicas intensas tanto no organismo em geral como em determinados órgãos (articulações, rins, coração, etc.).

Vemos, pois, que no problema da amígdala focal, do ponto de vista clínico, a conduta do especialista será:

1.º) encontrar na amígdala os elementos que lhe permitem diagnosticar uma infecção;
2.º) reconhecer a patologia geral ou regional conseqüente, e
3.º) principalmente estabelecer o nexo de dependência entre o 1.º e 2.º itens.

Em resumo, o especialista deverá reconhecer que a amígdala não é sòmente infectada, mas também infectante.

O critério a seguir é, pois eminentemente clínico. O exame que vai proceder deverá iniciar-se com anamnese que deverá ser rigorosa e bem ordenada do ponto de vista cronológico, isto é, se no passado infeccioso amigdalino, evidente ou sorrateiro, se fazia acompanhar de comprometimento geral e à distância; isto é, se um surto de amigdalite sucedia um surto patológico secundário.

Após a coleta dos dados informativos proceder-se-á ao exame clínico local. As amígdalas infectadas apresentam-se hiperemiadas, por vêzes hipertrofiadas ou pequenas, duras e aderentes aos pilares, com hiperemia edematosa do pilar anterior e presença de substância caseosa nas criptas e cicatrizes na superfície; à espremedura, podem-se notar a saída de caseum ou pus das criptas e pequenos cistos na superfície do órgão; à palpação notam-se gânglios cervicais sub-angulomandibulares.

Como conseqüência das infecções amigdalinas o quadro clínico geral é de abatimento, inapetência, astenia; em outros órgãos podem manifestar-se as conseqüências (artropatias infecciosas, nefropatias, cardiopatias, oculopatias, neuropatias, etc.).

Nem sempre, porém, existem caracteres clínicos amigdalinos capazes de incriminar o órgão como, foco. Nestes casos, valer-se-á o especialista das provas habituais de laboratório indicativas da presença de uma infecção e da prova de- Viggo Schmidt. Esta prova consiste na contagem leucocitária total e específica, antes e depois de massagem da amígdala 30, 60 e 90 minutos após. Em casos em que a amígdala tem atuação de foco, os resultados são de acentuada leucocitose e neutrofilia.

Além de valor relativo dessa prova, deve ela ser praticada com os devidos cuidados, visto que a bacteremia responsável das alterações hemáticas e positividade do teste, poderá ocasionar uma localização orgânica das bactérias e conseqüente caracterização de septicemia.

Ao estudar essa prova Mesquita Sampaio e col.s classificaram as amigdalites nos dois grupos, (acima referidos. a) infectantes e b) não infectantes.

a) As primeiras, além de leucocitose com neutrofilia e desvio para a esquerda; determinam, do ponto de vista anátomo-patológico, grandes erosões epiteliais, grande proliferação do S.R.E. e da reticulina que circunscreve os folículos e invadem o centro germinativo e se dispõem em tôrno dos vasos sangüíneos e linfáticos e nas regiões mais lesadas da amígdala; notam-se ainda intensa proliferação de fibras colágenas e grande número de focos perivasculares, bem como numerosos vasos hiperemiados, cuja adventícia é, muitas vêzes, caracterizada por grande quantidade de reticulina que parece ser conseqüente ao edema e ao linfoedema.

A presença de infiltração perivascular explicaria a toxemia, a bacteremia intermitente, arrítmica e irregular ocasionando processos de sensibilizações e dêssensibilizações alternadas e conseqüentes remissões e melhorias do quadro clíníco. A proliferação dos elementos do S.R.E. explicaria as alterações heteroplasmáticas sem linfócitos e o seu encontro no sangue periférico.

b) As amigdalites não infectantes, do ponto de vista anátomo-patológico, apresentam erosões epiteliais em menor número e menos extensas que as infectantes; a proliferação da reticulina e do colágeno é menos acentuada assim como a invasão do centro germinativo pela reticulina é também discreta, não existindo focos de infiltração perivasculares nem reação flogística - ou raramente - da adventícia dos vasos.

Sendo a flora bacteriana de amigdalite crônica constituída de estreptococo e estafilococo (Mattozinho França (1) e D. Mion(2)), capazes, particularmente o estreptococo, de produzir toxemia responsável pelo aparecimento de estados alérgicos, os quais sensibilizam o organismo à receptividade da infecção ou lhe alteram a imunidade.

Dessas alterações resultam as graves conseqüências nas articulações, rins, coração, olhos, etc.).

O adiantamento dos estudos dessas complicações se deve ao conhecimento da anatomia e da fisiologia do estreptococo.

Dos estreptococos alfa-hemolítico, beta-hemolítico e gama não hemolítico, o mais importante para a patologia humana é o beta-hemolítico; segundo Lencefield e Criffith há 12 variedades dêsses germes: A, B, C, etc., a mais importante é a do grupo A, por ser responsável por numerosas doenças do homem.

Estrutura do estreptococo: É formado de: 1.º) uma camada externa constituída de hialurinato, protetora do germe e que não possui ação antigênica; resiste à ação dos fagócitos; 2) uma camada média formada de três partes; a) a mais externa constituída de proteínas M.R. e T., tôdas dotadas de capacidade antigênica, sendo a mais importante a M. pois possui propriedades antifagocitárias e intervém na virulência; seus anticorpos acumulam-se lentamente no sangue, dando ao organismo imunidade persistente específica para o estreptococo do mesmo tipo, sem interferir na infecção devido a outros tipos; b) a camada média formada de polissacarídeos grupo específico; esta substância permite a classificação do estreptococo em 40 grupos sorològicamente distintos; e c) a camada interna, junto à membrana citoplasmátíca, responsável pela manutenção da morfologia da bactéria.

Em seguida encontra-se - 3) a membrana citoplasmática formada de complexo lipoprotêico; e por último 4) o citoplasma (ou protoplasto) da bactéria que pode assumir formas variadas (esféricas ou em "L", esta surgindo- quando o germe sofre a ação da lisina do bacteriófago, da penicilina ou quando se desenvolve em determinados meios culturais.

Além do estreptococo do grupo A, ainda são patogênicos para o homem os dos grupos C. e G.

No estudo da fisiologia do estreptococo deve ser ressaltada a produção de enzimas pelas suas várias camadas. As mais importantes são: as estreptolisinas O e S; a hialuronidase, a desoxirribonucleases, a difosforpiridinanucleotidase, a toxina eritrogênica e as protemases, as quais podem ter grande influência na determinação da Doença Reumática.

Tôdas essas enzimas - particularmente a estreptolisina O - têm capacidade de formar anticorpos; assim sendo, pode-se dosar os seus títulos - particulares a antiestreptolisina O - no sangue para a colaboração do diagnóstico; em relação ao diagnóstico de doença reumática a presença de anticorpos no sangue derivados de outras enzimas não indica essa afecção, mas tão sòmente infecção estreptocócica anterior.

Na explicação das manifestações devidas aos agentes infecciosos, admite-se a eclosão de reação do tipo antígeno-anticorpo, em terreno de hipersensibilidade imunitária.

A evolução das manifestações clínicas obedece a três etapas: 1) Bacteremia (ação direta do germe) ou toxemia; 2) latência (sem manifestações aparentes da infecção) e 3) complicação tardia e não supurativa.

Admite-se que ação dos produtos do germe se faça num terreno de hipersensibílídade geral; há fatores favorecedores das manifestações: fatores ambientais (mudanças de temperatura), fatores humanos (reinfecções estreptocócicas, idade, traumas, estafas física ou psíquica). Assim, o organismo prèviamente sensibilizado, recebendo uma nova carga de anticorpos devida a uma nova infecção, desenvolve uma reação de caráter alérgico, com repercussões locais e gerais.

Segundo alguns AA. algumas das complicações decorrentes da ação dos germes da amigdalite focal podem ser incluídas no grupo das doenças de auto-agressão. Assim, um germe patogênico age sôbre um tecido; este libera proteínas alteradas que vão funcionar por si como antígenos; o organismo vai então formar anticorpos contra êsse antígeno originário no órgão (auto-anticorpo). Rsse fenômeno ocorreria no processo reumático e nos traumatismos, onde as lesões teciduais vão causar os fenômenos de auto-imunidade.

Quem primeiro chamou a atenção para esse fato foi Burnett (Prêmio Nobel); nos estudos anátomo-patológicos das doenças por auto-imunidade o quadro revela alteração de tôda a arquitetura do tecido, infiltração linfocitária intensa, formação de folículos linfáticos diferenciados nos tecidos; em alguns casos nota-se necrose dos tecidos linfáticos ou deposições de substância amilóide ou alterações parenquimatosas, predominantemente do tecido conjuntivo, manifestada por degeneração fibrinóide do colágeno (Mattozinho Franças).

O agente infeccioso encontrado na amígdala é capaz de determinar hipersensibilidade em indivíduos predispostos - semelhantemente ao que sucede na doença do soro - responsável pelas complicações.

Segundo Fiszman (4) a hipersensibilidade encontra argumentos a seu favor em observações. São êles: 1) o período de lactência entre o início das manifestações inflamatórias da infecção estreptocócica e o início da complicação (artrite ou cardite) é consistente com o tempo requerido para a formação de anticorpos ou o desenvolvimento de um estado de hipersensibilidade do hospedeiro; 2) a elevação do nível de imunoglobulinas, particularmente das globulinas Gama C e Gama A e menor quantidade de Gama M, significando aumento do nível de anticorpos; 3) o aspecto clínico da doença reumática mimetiza, em muitos casos, as manifestações clínicas das doenças do soro ou das reações a drogas; e 4) nas lesões produzidas em doenças do sôro experimental encontra-se endocardite, arterite, sinovite e granulomas no miocárdio, lesões que lembram, em muitos aspectos, as observadas na doença reumática

Em relação aos fatores genéticos na determinação de complicações dos focos, é de observação que há herança de um terreno hiperativo, ligada, talvez, a um gene autossômico de caráter recessivo. Comprovam essa afirmativa os casos de gêmeos com DR. e coréia com concordância dos quadros clínicos e das sequelas cardíacas; e inclusive casos, de dois gêmeos monozigotos (Decourt (5)).

Deve-se também ressaltar que a hipersensibilidade desencadeada por um processo infeccioso pode durar dezenas de anos, o que significa que a infecção inicial pode residir num passado muito remoto e que os surtos infeciosos recentes, mesmo discreto, encontram terreno já preparado. hipersensível de longos anos.

Bibliografia

1. Mattosinho França L. C. Pereira Barreto ,Sob. L, Fainzüber S., Cunha Cinta P. Heshiki Z.. & Cutin-M. - Amigdalite crônica infantil.
2. Mion D. Antiobioticoterapia antibacteriana em amigdalites crônicas do adultos, com base no antibiograma. Tese, Fac. Medicina S. Paulo - 1961.
3. Mattosinho França L. C. Anatomia patológica.das doenças por auto-imunidade. Original. 1967.
4. Fiszman P. Aspectos etiológicos e patogênicos da doença reumática (I e II) Trib. Médica. Julho 19619; 1621 e AgBesto 1959; 43-34.
3. Decourt L. Doença reumática. Sarvier. Edit. Livros Médicos Ltda: São Paulo. 1969.
6. Mesquita Sampaio J, A., Mattos Barreto J., Paula. e Situa d. & Vicente de Azevedo A, C. - Amígdalas e infecção focal. Gráfica e Ed, Edigraf Ltda. S. Paulo. 1943.

* Professor da Fac. de Medicina de Sorocaba/SP.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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