Observação de um caso
O caso referente a esta observação merece ser conhecido por mais de um motivo.
Primeiro, por tratar-se de sindroma de Gradenigo. Sem-ser uma contingência de grande raridade, também nada tem de comum e convém apresentá-la para fins de estatística. Depois, a sua etiopatogenia, que nos pareceu interessante, como veremos, Finalmente a sua evolução excepcionalmente favorável, curando-se o doente sem qualquer intervenção cirúrgica.
OBSERVAÇÃO
L. D., branca, brasileira, de 32 anos, casada, residente nesta Capital. Procurou-nos no consultório a 7 de Agosto passado. Chegando, pedia-nos que a atendesse com toda urgência, taes o seu sofrimento e desconforto. De fato, na sala de espera a encontramos em atitude de quem muito padecia. Queixava-se de dores verdadeiramente lancinantes, que partindo do ouvido se irradiavam pela metade correspondente da cabeça. Mantinha a mão sobre o olho, que também era muito doloroso, ao mesmo tempo que comprimia a testa. Uma irmã que a acompanhava, diz que este estado se prolongava havia 24 horas.
Conta-me a paciente que ha um ano se lhe vinha supurando o ouvido direito. Não se recorda de haver sofrido deste mal em épocas mais anteriores, e que mesmo depois só a tem percebido no decurso de resfriados. Desta vez, começou ha duas semanas. Em seguida a um banho, provavelmente com a entrada de água no conduto. Surgiram-lhe logo corrimento e dor. Há três dias havia piorado consideravelmente. Procurou então um colega. Este, como medida terapêutica, insuflou-lhe pelo conduto um pó anti-séptico. Diz a paciente que foi em seguida a esta insuflação, em resultado dela ou por simples coincidência que se lhe agravaram os seus padecimentos. Cessou a supuração, é bem verdade, mas as otalgias assumiram uma intensidade dramática, ao mesmo tempo que apareceram outras dores atrozes no globo ocular.
Tem tido, também tonturas, febre acima de 38, além de náuseas.
Chama logo a atenção a quem se dirige à doente o pronunciadíssimo estrabismo resultado da paralisia do abducens. Foi um sintoma que se estalará na véspera.
A inspeção nada mais ha de interesse. Dor à pressão digital, contra á mastóide.
Pela otoscopia, não é possível ver o tímpano ao primeiro instante, tal a quantidade de pó insuflado que obstruem por completo a parte mais interna do conduto. Tratamos de removê-lo com uma lavagem, sob as melhores condições de assepsia possíveis, em atenção à anamnese.
Perfuração de regular diametro nos quadrantes posteriores. Algum exsudato. A perfuração não é marginal, nem ha indícios de osteite. Além disso, nega a paciente ter percebido jamais qualquer mão cheiro no exsudato.
Nada faltava pois ao quadro clássico de Gradenigo, tal como o descreveu o notável otologista italiano em 1904. Pus no ouvido, dores irradiadas e paralisia do abducens. Além da triade clássica, febre e nevralgia do trigêmeo.
Antes de qualquer atitude radical se impunha uma radiografia do rochedo. Enquanto se esperava, tratamento quimioterápico em altas doses, calor e um anti-séptico.
Aconteceu porém um inesperado. A moça não voltou ao consultório no dia seguinte, mandando simplesmente telefonar-me que não havia mais urgência tão grande fora a sua melhoria. Dizia que passara bem a noite, porque tanto as dores no ouvido como no globo ocular haviam notavelmente mitigado em seguida à lavagem. Também não tinha mais náuseas nem febre. Apenas permanecia muito manifesto o estrabismo. Em vista de mais informações, resolvemos aguardar um pouco mais, recomendando porém que continuasse com a sulfamida e que se radiografa-se. Somente cinco dias depois apareceu a paciente com a radiografia. Praticamente boa, apenas com restos do estrabismo. Haviam desaparecido os motivos para qualquer intervenção cirúrgica. Além disso a radiografia demonstrava que o máximo que houvesse no rochedo seria uma congestão satélite do ouvido médio; nunca um abscesso ou supuração. Lembramos do que diz Eagleton, a respeito da intervenção inoportuna sobre o rochedo, e o perigo de transformar um simples processo congestivo em uma meningite fulminante. Rememoramos as suas palavras a respeito da cura expontânea de certos tipos de inflamações desta parte do temporal, e do que teria acontecido à paciente se a tivéssemos operado.
E quanto a etiologia, o que dizer? Afirma a doente que a sua piora decorreu da insuflação; e mais que a sua melhoria se deu em resultado da lavagem e conseqüente retirada do pó. Nada se pode dizer com certeza, mas parece que a sua impressão traduz a realidade. O excesso do pó deve ter reativado o processo crônico do ouvido médio. Daí uma congestão da caixa é também do rochedo. Outra hipótese será uma eventual fistula desta parte do temporal cuja obstrução e retenção de exsudato redundaram nos fenômenos pontinos. A 5 de Setembro a paciente tornou a meu consultório. Nada ha mais que lembre o seu grave acidente. Nem o menor vestígio do estrabismo. A otite crônica entrou em novo período de silêncio.
(*) Trabalho apresentado á Secção de O.R.L. da Associação Paulista de Medicina em 17-12-1943.
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