ISSN 1806-9312  
Sábado, 27 de Abril de 2024
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905 - Vol. 11 / Edição 6 / Período: Novembro - Dezembro de 1943
Seção: Trabalhos Originais Páginas: 489 a 494
OZENA E CONSTITUIÇÃO (*)
Autor(es):
DR. J. E. DE PAULA ASSIS

Chefe do Serviço de Oto-rino-laringologia do Hospital N. S. Aparecida (antigo Humberto I) São Paulo.

Si encararmos a ozena sob o ponto de vista constitucional, necessitamos antes de tudo conhecer a mucosa do nariz e dos seios accessórios, uma vez que sabemos ser a sua estrutura, ou antes, á sua base de tecido conjuntivo, segundo os notáveis trabalhos de SCHWARTZ, o alicerce em que repousa a disposição constitucional.

De sua estrutura, depende a boa ou má constituição, subordinando-se a ela a má ou boa maneira de reagir. Quanto mais denso e sólido o tecido conjuntivo, tanto maior a resistência às agressões do meio ambiente e, contrariamente, quanto mais frouxa e edematosa mais facilmente será a mucosa atingida pelas injurias externas.

Consideramos a mucosa em seu conjunto, como si fosse um grande orgão independente, orgão de funções complexas, mas que, sob o ponto de vista anatômico, fisiológico, embriológico, patológico e hereditário constitue uma unidade, embora as suas modalidades morfológicas divirjam nos vários setores determinados.

Para estudarmos as reações da mucosa, sob o ponto de vista constitucional, devemos ter sempre em mente o seu genótipo, isto é, seu substrato hereditário, com todas as suas qualidades boas ou más acumuladas no patrimônio hereditário, imutável e inaccessível às flutuações do ambiente.

O exame endoscópico revela-nos apenas o fenótipo, isto é, o seu aspecto exterior, susceptível de modificações morfológicas e outras, pela ação das influências do meio.

Do fenótipo não podemos concluir o substrato genotípico, que só é apreciável pela análise genética, reduzida no homem à anamnése, ao estudo das árvores genealógicas, ao exame somático, procurando sempre grupar fenômenos que devem estar ligados aos mesmos fatores hereditários de que dependem na sua exteriorização.

Assim, por exemplo, num astênico de W. MILLS ( tipo biológico correspondente, ao longilíneo de VIOLA ou ainda ao leptosomico de KRETSCHNER) encontramos, a par de uma musculatura fraca, uma mucosa de valor inferior, revelada, às vezes, ao exame endoscópico, pela sua delgadeza e friabilidade.

Consideramos na mucosa, o epitélio e o tecido conjuntivo. Aquele, além da sua função de revestimento, é ainda, sob o ponto de vista embrionário, o construtor da forma, - o grande arquiteto -, na denominação engenhosa de SCHWARTZ; este, o encarregado das reações de defesa, a quem está afeto o valor biológico. Epitélio e tecido conjuntivo se unem e se completam, interferindo ambos em sua biologia e patologia.

O valor da mucosa é medido pela sua capacidade de resistência às agressões exteriores, pela agilidade com que efetua essa resistência, pela rapidez com que se restabelece e ainda pela maior ou menor disposição às recidivas.

Daí temos os dois tipos básicos de SCHWARTZ ;

1.º) a mucosa normal ou mesoplástica, apresentando boa potência de desenvolvimento e boa capacidade de resistência e de reação;

2.º) - a mucosa anormal, hiperplástica ou hipoplástica mostrando pequena potência de desenvolvimento e pequena capacidade de resistir e reagir.

Cada organismo vivo reage, pois, conforme a sua estrutura individual, direi antes, constitucional da sua mucosa. Penso que não andaria errado, portanto, definindo a constituição como a projeção psico-fisiológica da nossa estrutura íntima, condicionada às grandes leis heredo-biológicas e subordinada às flutuações do ambiente.

Mucosa frouxa, pobre em fibrilas e edematosa, irá reagir, sob excitações exteriores, no sentido hipertrófico; mucosa grossa, rica em fibrilas e rígida tende a reagir no sentido hipotrófico ou
atrófico. Esta concepção acha fundamento no fato de se encontrar numa mucosa hiperplástica grande número de glândulas formadoras de mucus, o que não se verifica nas mucosas fibrosas ou atrófica. Melhor exemplo não poderíamos encontrar para as inflamações hipertróficas que a polipóse nasal, cuja base constitucional, segundo as pesquisas histológicas de RUNGE e anatômicas de UFFENORD, repousa na mucosa hiperplástica. De fato, elevado número de observações demonstra que, quando de um lado se nota degeneração poliposas, no outro a mucosa se apresenta edematosa e hiperplástica. (ZANGE). ALBRECHT também corrobora esta opinião com suas experiências em um par de gêmeos mono-ovulares, em que ambos apresentaram uma pronunciada polipóse do seio maxilar esquerdo. Si pelo exposto, temos o direito de acreditar que a mucosa hiperplástica constitue a base constitucional para as inflamações hipertróficas, justifica-se a idéia que a mucosa fibrosa forme a base constitucional para as inflamações crônicas atrófica, cujo padrão é a rinite atrófica fétida ou ozena.

Para o seu julgamento constitucional necessitamos passar em revista, de um modo muito sucinto, as suas várias teorias etiológicas. Apenas Citaremos:

1.°) a teoria microbiana, sustentada por cientistas do valor de LERMOYEZ e acolhida com entusiasmo por grande número de pesquisadores, baseava-se nos estudos e descobertas de loewenberg (1884) (diplococos de Loewenberg) ; de BELFANTI e DELLA VEDOVA (1896) (b. pseudo diphtericus), de GRADENIGO e de PEREZ (1899) (b. de Gradenigo e cocobacilo fétido de Perez). Si não bastassem, entretanto, os insucessos da vacinoterapia anti-ozenosa, hoje desmoralizada, as experiências impressionantes de COSTINIÚ e ST. POPIAN, de Bukarest, nos afastariam da concepção etiológica microbiana.

2.°) A deficiência orgânica em vitaminas, teoria amparada por GLASSCHEIB e que teve algo de sedutora, sabendo-se o papel importante que desempenha na proteção das mucosas a vitamina A. A prática, no entanto, não a tem confirmado. SCHMIDT, por exemplo, em uma epidemia de avitaminose não encontrou um só caso de ozena, e, em 70 casos de xeroftalmia, moléstia de origem avitamínica, também não a encontrou.

3.°) A trofoneurose, teoria concebida por LARNICK e aceita por HALFEN, SCHULMANN (Tese de Paris, 1925) e outros, hoje se encontra no rol dos fatos passados, tais os resultados contraditórios que se verificaram. A simpatéctomia peri-arterial praticada na adventícia da carotida externa por BERGIS, ASTERIADES, HALFEN, TERRACOL, e, entre nós, pela primeira vez no Brasil, pelo Autor e ISMAEL GUILHERME (9 casos - Rev. de Medicina - Dez.* 1926) ; ou na carótida primitiva por PORTMANN E TERRACOL, ou ainda sobre o bulbo carotideano por TERRACOL, não deu resultados muito compensadores.

4.°) A teoria que considera a ozena como uma anidrose rudimentar limitada ao nariz, sustentada por FLESCHMANN e SCHÖNLANK, que se baseou na possibilidade de um defeito das glândulas sudoríparas (exodérmicas) produzir desordem nas glândulas muciparas nasais. Avoca-se para defesa desta teoria que, na anidrose, a conformação craneana obedece a um tipo único, devido a parada de desenvolvimento por defeito ectodermicos, apresentando semelhança com o chamado "crânio da ozena". Vê, além disso, nas diversas variedades do nariz (o encurtamento do sépto descrito por HOPMANN) deformações por parada de desenvolvimento no tecido ectodermicos. Nada disso, entretanto, foi provado. As modificações de forma do nariz não caracterizam a moléstia, não podendo ser rotuladas de defeitos ectodermicos, pois tais modificações são também encontradas no homem são.

Vê-se por este rápido resumo que até hoje, apesar do esforço dos estudiosos, reina confusão sobre a etiologia da ozena. Temos que nos contentar com os conhecimentos atuais e procurar novos caminhos em busca da verdade e devemos, com ALBRECHT, duvidar de uma etiologia única. O que se sabe com segurança, é que a causa essencial da rinite atrófica se encontra na disposição constitucional. Isso está aceito por número considerável de autores, entre os quais cito MACKENZIE, GRADENIGO, ABATE, GALOZI e outros. Nos trabalhos de ALBRECHT, que vem estudando com especial carinho a constituição em otorrinolaringologia, encontramos numerosas árvores genealógicas de famílias, onde a ozena aparece impressionantemente em cada geração. Também UNDRITZ, HESSE e KAHLER dedicaram-se a estudos genealógicos, organizando árvores de diversas famílias, com idênticos resultados. O material, de tão rico e claro, sufoca qualquer dúvida a respeito. Si admitirmos, no entanto, coma é pacifico hoje, a teoria constitucional da ozena, devemos pesquisar ainda em que consiste a causa constitucional. Esses estudos apresentam as maiores dificuldades; entretanto, com os autores alemães que se dedicam a este assunto, tais como SCHWARTZ, ALBRECHT e outros, podemos julgar que a estrutura e a maneira de reagir da mucosa são o ponto de partida para a formação da rinite atrófica. Assim, nos aproximaríamos da teoria de VOJATSCHECK e UNDRITZ que encontram a causa determinante da ozena, na intimidade da própria mucosa ou, mais exatamente, nos gens que determinam o caráter da mucosa, gens estes que são as unidades hereditárias contidas nos cromosomas das células reprodutoras, responsáveis pela transmissibilidade hereditária dos caracteres orgânicos. É, pois, o caráter individual da mucosa que forma a base constitucional da ozena, carater este que só pode ser condicionado pela disposição hereditária.

É á mucosa fibrosa, como já vimos, que contém um número diminuto ou nulo de glândulas e abundancia do tecido conjuntivo, aquela que ocasiona a rinite atrófica e na qual, segundo as pesquisas de LAUTENSCHLAGER e MC MAHON os vasos sofreriam alteração no sentido de uma endo-arterite obliterante.

Há quem acredite, aplicando ao nariz a teoria de WITTMACK, em RUNGE, sobre a pneumatização da mastoide, que esta mucosa fibrosa é consequência da rinite dos lactantes, responsável por diversas modalidades de mucosa, influindo na imperfeita pneumatização dos seios. Si, como sabemos, a mucosa da ozena é de valor inferior sob o ponto de vista heredo-biológico, é de se esperar menor pneumatização dos seios da face. HEIKE chamou a atenção para a correlação entre, a ozena e os seios pequenos ou mesmo ausentes (frontais), explicando-a como expressão de uma hipotrofia óssea, teoria não esposada pela maioria dos autores, entre os quais VAN GILSE (Leiden, Holanda) que aceita as perturbações inflamatórias da infância, como modificadoras da pneumatização normal dos seios da face. Em seu trabalho, cita VAN GILSE A pesquisas de seu assistente GOSE sobre o tamanho dos seios frontais em chapas radiográficas de 90 pacientes. Fazendo uma escala, onde o 0 (zero) representa a aplasia e o 5 os seios de grande tamanho, os normais naturalmente seriam capitulados no 2,5. Com esta escala, nos 90 casos estudados, verificou GOSE uma média de 1,31 para o lado direito e 1,50 para o esquerdo. Em pessoas normais esses algarismos seriam ainda, segundo as suas observações 3,07, à direita e 2,64, à,esquerda. Para os seios esfenoidais ele achou a média de 1,48 para os ozenosos, sendo ainda 2,5 o normal.

Também um fato interessante, que não seria difícil de se pesquisar em nossos arquivos radiológicos, é, nos casos de ozena, a correlação entre a persistência da sutura frontal - sutura metópica dos anatomistas - e a ausência ou exiguidade dos seios frontais. Como sabemos, "ao nascimento, o frontal é ainda largamente dividido em duas metades simétricas por uma sutura mediana, a sutura metópica, que se apaga pouco a pouco, sendo apenas aparente em suas extremidades, no décimo ano e, na grande maioria dos casos, totalmente desaparecida, no crânio do adulto." (Testut). Pois bem, segundo as pesquisas de GOSE, sobre 18 casos investigados, esta sutura persistia relacionando-se 6 vezes com a aplasia bilateral dos seios, 4 vezes, com aplasia unilateral e 8 vezes, com a exiguidade dos mesmos. Para esses fatos, aliás, não achamos explicações satisfatórias, e ó nosso julgamento se dirige mais para o caminho das influências externas, que atuem em toda disposição constitucional. No aparecimento da ozena, uma vez verificada a mucosa fibrosa - sua base constitucional - as influências do ambiente, determinando inflamações agudas, vão provocar modificações de estrutura, produzindo edema, enfartamento do tecido, uma modalidade hipertrófica da mucosa, fato este que se ajusta à observação clínica de todos nós, estádio hipertrófico, estádio premonitório do processo atrófico progressivo resultado final da inflamação crônica. É o que se verifica, no campo de experimentação, com os processos cirúrgicos para a cura da ozona: Ainda sobre a influência micológica, é provável que as modificações climatéricas (umidade do ar, etc.) exerçam papel de relativa importância, que não podemos absolutamente negar, pois, sentimos tão vivamente nos organismos vivos, animais ou vegetais, as modificações exercidas pelos agentes cósmicos.

Seria; pois, aceitável ligar a estas influências, já estudadas desde os tempos de HIPÓCRATES, que ligava a idéia de constituição à maneira de agir da atmosfera, as observações de ROY, que examinando um número superior a 5.000 negros de diversas zonas africanas, assim como das Índias Ocidentais e Oceania, em nenhum deles encontrou a ozena. Aqui no Brasil, entretanto, ela e encontrada entre os negros. Os negros do Brasil, porém, estão longe de representar a espécie pura da raça, sendo antes o produto de uma multiplicação de vários fatores. Foi também observado que a raça amarela tem uma tendência especial para a ozena, assim como os laponios, finlandeses, malaios e indianos (ALBRECHT). Influências mesológicas ou raciais?

Passamos, deste modo, em revista, rapidamente, Como num caleidoscópio, o estudo constitucional da ozena, cuja base repousa, repetimos, na estrutura e na maneira de reagir da mucosa; as diversas teorias que visam explicar a sua etiologia e chegamos com ALBRECHT à negação de uma etiologia única. Base constitucional genotípico e influências externas, congregando-se, aí, em última análise, todas as teorias que procuram esclarecer o difícil problema. Ele é demasiado complexo para ser resolvido por esta, ou aquela hipótese.

Procuremos resolvê-lo palmilhando todos os caminhos, examinando todas as concepções, reunindo todos os fatores, pois, como já disse aquele venerando ancião da ilha de Cos, a quem cognominaram o "Pai da Medicina, "quem tudo quer explicar por uma hipótese, ou engana a si próprio ou quer enganar os outros."




(*)(Extraído de duas conferências sobre "A constituição era otorrinolaríngologia" proferidas na Clínica O. R.. L. da Sta. Casa de S. Pauto (Serviço do Dr. Mario Ottoni de Rezende), em Out. de 1940).
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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