ISSN 1806-9312  
Quarta, 30 de Outubro de 2024
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899 - Vol. 11 / Edição 4 / Período: Julho - Outubro de 1943
Seção: Trabalhos Originais Páginas: 402 a 430
DIRETRIZES MÉDICAS AOS PROFISSIONAIS DA VÓZ CANTADA (*) - CLASSIFICAÇÃO E JULGAMENTO
Autor(es):
J. G. WHITAKER (**)

CLASSIFICAÇÃO E JULGAMENTO

Para classificar uma vóz deve-se, sobretudo, levar em conta o timbre e o tamanho da tessitura; procurar a passagem de registro; saber, depois, da forma do interior da laringe e as particularidades físicas e morais da pessoa.

O meio mais prático para um exame de vóz é deixar, em primeiro lugar, que a pessoa cante o que preferir. Assim tem-se, pelo menos, a primeira impressão quanto ao timbre da vóz. Procura-se em seguida conhecer a extensão da vóz por meio das escalas simples e em saltos de terças e sétimas. Este exercício é relativamente fácil e permite atingir os agúdos com mais facilidade do que com a escala natural, o que se deve saber para o



Fig. XXIV.



respetivo desconto; e por ele se verifica se o examinando possúe realmente agúdos, que por defeito de técnica não se revelaram. Se ele não conseguir executar o exercício de saltos de sétima, pode-se concluir, quasi com segurança, de que não possue agúdos. Finalmente deve-se procurar conhecer a passagem de registro (ver pag. 399). Tomadas estas cautelas, ainda assim não é prudente classificar, em definitivo, uma vóz tendo-a ouvido, apenas, uma ou duas vezes, mórmente tratando-se de principiante.

O exame da laringe pode informar se a vóz está orientada para os agudos ou para os graves; sua importância porém é secundaria, porque conduz ás vezes a conclusões desconcertantes. Nas vózes agúdas as cordas vocais devem ser curtas e estreitas e a epiglóte de curvatura acentuada (fig. XXV-b). Nas graves, as cordas serão longas e largas e a epiglóte de curvatura pouco acentuada, quasi chata (fig. XXV-c). Na criança, capaz de atingir os mais elevados agúdos da vóz humana, (lá3, si° dó4), a laringoscopia feita durante o choro estridulo mostra como a epiglóte, normalmente em forma de ferradura, encurva-se mais ainda até se fechar em um tubo no fundo do qual vibram as pequeninas cordas - um verdadeiro apito - (fig. XXV-a). São os pequenos músculos ari-epiglótico e tireo-epiglótico (pg. 370) que, contraindo-se, podem não só acentuar a curvatura da epiglóte como variar sua inclinação sobre a entrada da laringe; desse modo, modificando a forma e posição de um elemento importante do aparelho resoador, desempenham seu papel na fonação.


    
Fig. XXV-a, XXV-b e XXV-c.



Esta relação entre o gráu de curvatura da epiglóte e o comprimento das cordas vocais, é constante e nos parece ser de grande importância. Freqüêntemente, em casos de perturbações funcionais da vóz cantada, a única causa local que temos encontrado é uma "associação invertida": em tenores e sopranos, que vivem labutando com os seus agúdos, sempre incompletos ou imperfeitos, é comum encontrar a laringe provida de cordas curtas e estreitas como devem ser para as vózes agúdas, mas de epiglóte achatada, como nas laringes destinadas á emissão de sons graves. (fig. XXVI).



Fig. XXVI



A assimetria das cordas vocais, sempre referente ao comprimento, que é desigual, é outra causa não rara de perturbações funcionais da vóz cantada, trazendo a diplofonía ou emissão de dois tons, que pode ser inicialmente corrigida por reajuste muscular, mas terminando sempre com cansaço da vóz cantada e rouquidão. (fig. XXVII).

Tanto Negus, pelo desenvolvimento da cartilagem aritenoide e sobretudo pelo seu processo (apófise) vocal, como André Fostes (34) pelo desenvolvimento da cartilagem de Wrisberg, tiraram conclusões da potencialidade da vóz humana - baseando-se em estudos de anatômia comparada. Nossa propria observação clinica não confirma tais conclusões.

Laringes anatômicamente perfeitas encontram-se em individuos sem vóz musical alguma. Interessante é que no hospital de Juquery entre 3.000 alienados, que examinamos (1928 a 1930), encontramos seis com laringes, cuja constituição fazia supor alguma musicalidade, e de todos os seis, os respetivos guardas confirmaram que tinham pendor ao menos para cantarolar.



Fig. XXVII.



Entre nós as vózes boas, isto é, aquelas com qualidades para teatro, são raras nos de ascendência puramente brasileira. Os que as tem são quasi sempre de origem extrangeira próxima. É um fato interessante que uma nossa cliente de côr com 21 anos, e uma notável soprano lírico, tenha ascendência hindú próxima (avó). Essa questão, tão interessante, necessita pesquisas demoradas.

Quasi todo o artista, quando se trata de ser sua vóz examinada e julgada, procura prevenir qualquer severidade com a alegação de resfriado ou outra indisposição de momento; e é curioso que isto mesmo faça em presença do médico laringologista, perante o qual só terá a perder se não for sincero. Por isso, é aconselhável deixá-lô cantar primeiramente as peças de sua própria escolha para depois experimentá-lo em trechos onde transpareça melhor o que sabe. As óperas, sendo composições escritas para determinadas vózes, fornecem pedras de toque das mais adequadas, não só pela estabilidade que raramente admite transposições, como pela sua universalidade.

A divisão das vózes nos conhecidos grupos - tenor, haritono e baixo, soprano, mezzo-soprano é contralto - é feita de acordo com o seu timbre e a extensão. Possue porem a vóz outras qualidades que servem de base para numerosas sub-divisões daqueles três grupos : doce, metalica, lirica, juvenil, dramática, interpretativa, redonda, cheia, apagada, ou brilhante, etc. Estas qualidades por serem abstratas, são de difícil definição e padronização, dando lugar a divergências freqüêntes, sobretudo em relação á vóz de soprano.

A endocrinologia, atualmente, auxilia-nos a por ordem nessa velha questão, pela contribuição que trouxe para melhor conhecimento da fisiologia, em geral, e da laringe; em particular. Bastam ao leigo noções elementares, podendo fornece-Ias concisas e interessantes, uma das maiores autoridades na materia, G. Marafion, "Estudios de Endocrinologia" (1938-pgs. 259-279):

"São quatro os tipos fundamentais de constituição. O tipo I ou hipoplásico é de indivíduos de pequena estatura e cuja morfologia persiste próxima à morfologia infantil. A constituição tipo II ou astênica é a dos indivíduos magros com predomínio dos diametros longitudinais, sobre os transversais e nos quais o esqueleto e os traços gerais aproximam-se do tipo feminino puro; essa constituição é realmente, a característica das mulheres muito femininas, e quando se manifesta num homem, quasi sempre se trata de um indivíduo de virilidade fraca e com caracteristicas efeminadas. Assim é propria desta constituição a escassez de pelos no tronco, nas extremidades e no rosto, si se trata de homens; e uma distribuição puramente feminina dos pelos si se trata de mulheres; bem como o predominio visível do diamemetro transversal dos quadris sobre o diametro transversal dos ombros, traço característico de feminilidade. A constituição tipo III ou picnico é a de indivíduos retacos, com tendência à obesidade pletórica e cujo conjunto é acentuadamente másculo. Os homens são muito peludos e de barba cerrada; nas mulheres ha tendência acentuada ao aparecimento de pelos em lugares impróprios ; em ambos os sexos o diametro tranversal dos ombros predomina sobre o dos quadris, ao contrário do que se nota no tipo astênico.

O tipo I ou hipoplástico é de constituição infantil. O tipo II, ou astênico, é feminino. O tipo III, ou picnico, é másculo. Estes são os três tipos normais.

O tipo IV, o das constituições displásicas, é um aglomerado de tipos não normais: A) constituição gigantóide, grande estatura, esqueleto e musculatura fortes. B) constituição eunucoide, representada por individuos com debilidade manifesta da secreção sexual interna. Esta constituição é muito mais manifesta no homem que na mulher, pois esta, como forma evolutiva que é, próxima á infantil, suporta muito melhor que o varão, que é forma terminal, a supressão das glândulas genitais. Os eunucos oferecem dois tipos de displasía: ou são altos, quasi sempre por terem pernas muito compridas, de quadris largos, queixo pouco desenvolvido, dolicocefalía pronunciada; ou são de média ou baixa estatura, tendendo à obesidade e apresentando esqueleto normal, excéto nos quadris, que são sempre largos. São o tipo alto e o tipo gordo do eunuco, sendo comum a ambos a escassez de pêlos nas partes sexuais e a disposição feminina dos mesmos. C) Anões. D) constituição acondroplástica ou hipergenital, representada nos individuos de estatura baixa, sobretudo por terem pernas curtas, mas com a cabeça e o tronco de desenvolvimento normal; caracteristicas estas opostas às do tipo eunucoide alto.

Cada constituição, ao ser modelada, leva o sinete enérgico da influência sexual, mas, além da glândula genital, outras glândulas de secreção interna podem influir da seguinte maneira:

Na constituição do tipo I ou hipoplásica, o tonus geral de todas as glândulas endócrinas é fraco, com excessão do tímo, que é a glândula caracteristica da idade infantil.

Na constituição II ou astênica, a glândula sexual é bem definida, isto é, é poderoso o ovário da mulher deste tipo, mas o testiculo, apesar de normal, mostra-se débil no homem do mesmo tipo.
A hipófise e as suprarenais são igualmente débeis, mas em compensação a tireoide é enérgica.

Na constituição III, a picnica, a glândula genital é acentuadamente masculina, isto é, o testículo é muito ativo e o ovário ao contrário, débil. A hipofise e as suprarenais são muito enérgicas, ao passo que a tireoide é fraca.

Na constituição displasica gigantoide o caracteristico endócrino é a energia da hipófise; na displasia eunucoide, a debilidade da glândula sexual; na displasia dos anões, a debilidade de todas as glândulas como na constituição hipoplástica, mas em maior grau; na displasia acondroplásica o traço carateristico é a grande energia da secreção interna sexual e a qualidade masculina desta.

A glândula específica da virilidade é o testículo, a glândula específica da feminilidade é o ovário. Mas a virilidade ou à feminilidade não depende, apenas, da pureza e energia daquelas glândulas, mas também da influência de outras de secreção interna, ás quais aliás já nos referimos, e que contribuem para a constituição da sexualidade, sobretudo pela proteção que lhe dão, donde lhe vem o nome de "glândulas sexuais extragonadas": são estas a tireóide, a hipófise e as suprarenais, sendo que a tireoide é uma glândula decididamente feminoide, ao passo que a hipófise e as suprarenais são de pronunciada tendencia viriloide. As mulheres de tireoide muito ativa são as intensamente femininas; as de tireoide fraca são de feminilidade atenuada; reciprocamente o homem hipertireoideu nunca é prototípo da virilidade morfológica mas sim aquele que tem tireoide deficiente. Mulheres com hipófise e suprarenais muito ativas são francamente viriloides, ao passo que, tendo essas glândulas com atividade reduzida são arquetipos de feminilidade; por sua vez o homem com hipófise e suprarenais muito ativas é bem viril, ao passo que o efeminado, deve essa inferioridade a que sua hipófise e suas suprarenais são de fraca atividade.

A constituição de tipo I ou hipoplástica é infantil, pelo pouco desenvolvimento de todas as glândulas. A constituição de tipo II ou asténica, é sobretudo feminina, não só pela tendência feminina da gonada, como também pela energia da tireoide (glândula feminina) e pela debilidade de hipófise e das suprarenais (glandulas masculinas). A constituição do tipo III ou picnica, é sobretudo viril, não só pela inclinação viril da gonada, como pela grande energia da hipófise e das glândulas suprarenais (glândulas viris) e pouca atividade da tireoide (glândula feminina).

Na constituição eunucoide a insuficiência genital leva a uma tendência intersexual. A constituição gigantoide é de tonus hiperviril pela sua tendência hiperhipofisiaria. O nanismo é de tendência infantil pela insuficiência de todas as glândulas. No acondroplástico a tendência exageradamente sexual, principalmente víril, é devida à energia gonadal.

A cada uma das constituições acima descritas corresponde uma vóz peculiar, a saber: vóz infantil para a constituição hipoplásica ; vózes femininas para a constituição asténica; vózes viris para constituição picnica. Para a constituição displásica, as vózes correspondem à tendência sexual de cada uma delas. Assim as vózes da laringe humana tem um acento sexual inegável: vózes infantis, vozes femininas, vózes masculinas, vózes ambíguas ou inter-sexuais.

A vóz infantil, sem característica sexual, não necessita de explicação. A vóz feminina "sensu strictu" é a que corresponde à tessitura compreendida entre a soprano ligeiro e a soprano dramática. As vózes víris são as que se enquadram entre o barítono e o baixo. Vozes ambíguas ou intersexuais, são as de contralto, entre as mulheres, e a de tenor, do lado masculino.

Em suma, na constituição hipoplásica a vóz é infantil. Na astênica a vóz é de soprano na mulher, e de tenor no homem. Na picnica a vóz é de barítono ou de baixo no homem, e de contralto na mulher. Na displasía eunucoide a vóz é de tipo intersexual entre tenor e contralto. Na displasía gigantoide a vóz é muito viril, geralmente de baixo no homem e de contralto muito profundo na mulher. No nanismo a vóz é tipicamente infantil.

Na realidade o tipo dos cantores corresponde quasi sempre ao que foi acima referido, havendo poucas excepções. Com efeito, o tenor costuma ser um astênico ou um displásico eunucoide, em suas duas variedades, o alto e o gordo. Isso vale sobretudo para o tenor liríco. O tenor dramático possúe uma constituição normal ou mais ou menos picnica.

O barítono é geralmente pícnico ou gigantoide, diga-se o mesmo do baixo, que tem características ainda mais pronunciadas e comumente com forte acentuação dos caracteres secundarios, principalmente dos pelos, cuja abundância costuma coincidir com a calvície prematura. Existem também baixos com constituição de tipo acondroplásica ou hipergenital.

A mesma correspondência se observa nas vózes femininas. A soprano ligeiro quasi sempre é astênica com traços hipoplásicos acentuados. A soprano dramática é bem menos astênica, até mesmo inicialmente picnica. A contralto é sempre picnica ou francamente gigantoide.

As excepções a essas regras são relativamente poucas. É preciso notar, porém, que muitas vezes julga-se erradamente da constituição de um indivíduo pelo seu aspecto exterior, sobretudo quando se observam apenas fotografias. Conhece-se a constituição seguramente, pelo esqueleto, mas este, depois de uma certa idade é mascarado por gordura. Outras vezes as diétas de emagrecimento ou certas moléstias dão à configuração esterior uma impressão constitucional diversa da verdadeira. Nestes casos as medidas antropómetricas ou a radioscopia do tórax, dão a noção justa do esqueleto, independentemente do estado de magreza ou "enbonpoint".

A endocrinologia fornece também esclarecimentos acerca da evolução e da duração das diferentes vózes. São conhecidos e numerosos os casos de tenores e de sopranos ligeiros entrarem a designação dada aos eunucos cantores de "sopranistas", que tanta importância tiveram na história da música e mesmo na Historia Universal. A vóz dos, eunucos distingue-se ainda pela grande persistência devida à determinar a abolição da secreção interna testicular uma parada na transformação evolutiva do organismo, regida pela transformação evolutiva do próprio testículo.

A vóz da mulher é pouco, ou nada, influênciada pela castração. Isso deve-se ao fato de, pela sua proximidade ao infantil, não sofrer o organismo feminino mais do que leve inibição no desenvolvimento quando é privado de glândulas genitais; ao passo que, no homem, as modificações são tão profundas que levam até ao instinto do sexo oposto. Os efeitos psicológicos da castração são igualmente muito mais atenuados na mulher, a qual salvo na infecundidade, contínua socialmente sua vida normal, ao passo que o homem castrado é um ser socialmente aparte, quasi monstruoso.

A atividade sexual em suas fases agudas, muito influe em ambos os sexos, na vóz, que tende para os graves: a vóz da virgem é mais fraca e mais aspera, perdida a virgindade torna-se-á mais cheia. Nada mais prejudicial para uma vóz de artista profissional do que uma vida de orgia; sobretudo para vózes instáveis ou passageiras, como tenor e soprano ligeiro".

A essa exposição instrutiva de Maranon, temos apenas a acrescentar que as formas mixtas de transição são numerosas e que a pasagem do normal para o patológico pôde fazer-se por gradações tão pequenas que freqüêntemente não é possível estabelecer uma linha de separação definida.

Em questão de vózes, são os pequenos desvios do normal que dão origem à variedade de subdivisões sobretudo das vózes agúdas, como salientámos atrás. A "soubrette" por ex. é um soprano com certas falhas nos agúdos, geralmente compensadas por grande vivacidade ou por outro atributo físico, que a torna apreciada sobretudo nos teatros de Varieté. Corresponde ao tenorbuffo das vozes masculinas. A meio-soprano, o problema da vóz feminina, é uma voz para a qual os autores não costumam escrever diretamente ; os papéis podem ser cantados tanto por contraltos de bons agúdos, como por sopranos que disponham de extensão nos graves (Carmen, Mignon, Ortrud do Lohengrin).

A designação de "vozes instáveis ou transitórias" dadas por Maranon às vózes mais agúdas de ambos os sexos, é bem justificada mesmo sob o ponto de vista clínico: são as mais sujeitas a perturbações de toda espécie. Contraltos, barítonos e baixos, poucas vezes precisam do laringologista.

Nas perturbações funcionais da vóz de soprano é freqüênte o desiquilibrio tireoide-ovariano, embora se manifeste por sintômas discretos. Quando corrigido a melhoría da vóz é notável. Aliás, em qualquer pertubação vocal é preciso levar-se em conta o estado endócrino, tanto mais quanto o sistema nervoso autônomo (vago e simpático), que dá inervação sensitiva motora à laringe aparece cada vez mais sob a dependência das glândulas de secreção interna, a medida que progridem os conhecimentos sobre o funcionamento destas.


TRECHOS UTILIZÁVEIS NO EXAME DE VÓZES
Vózes masculinas

Baixo-profundo (as notas agúdas são difíceis ou não existem); como exemplos podemos citar: Basilio no "Barbeiro de Sevilha"; o sumo-sacerdote Ramfis na "Aida". As duas arias de Sarastro na "Flauta mágica"; a aria do Cardeal na "Judith" de Mayerbeer. Sparafucile no "Rigoletto". Ferrando no "Trovador". O verdadeiro lugar para a vóz de baixo profundo é nos coros. Nos papéis de óperas, deparam sempre com a dificuldade dos agúdos.

Baixo-cantante (baixo com agúdos mais extensos e com timbre claro de vóz) : o cacique no dueto do III áto do "Guarany" ; "Giovinette, nello sguardo" e na Invocação "O Dio degli Aimoré" no III áto. O rei, na "Aida". Coline, "Vecchia Zimarra" no IV áto da Bohemia. Saint-Bris nos "Huguenotes". Serenata e aria de Mefistofeles, no "Fausto" de Gounod ; o rei Henrique no I e III átos de "Lohengrin"; o papel de Wotan. nas três óperas de Wagner "Rheingold, Walkure e Siegfried". Os papéis de baixos nas óperas de Wagner foram escritos quasi todos para baixos cantantes exceção feita de Wolfram na "Walküre" e "Fafner no Rheingold" (Esses papéis exigem agúdos, mantidos longamente, o que se torna difícil para o baixo. Por isso são freqüêntemente cantados por barítonos drámaticos).

Baixo-buffo : Bartolo no "Barbeiro de Sevilha" ; Beckmesser nos "Mestres cantores" (Meistersinger). Valsa final cantada por Ochs no II áto do "Cavaleiro das rosas" (Rosenkavalier) de Strauss. Aria de Leporello no "D. Juan". Aria de Kesel na ópera: tcheca "Verkaufte Braut" (noiva vendida) de Smetana. Lord Tristan em "Martha". Alberich no Rheingold. O papél de baixo nos "Contos de Hoffman".

Existem papéis que podem ser interpretados por qualquer espécie de baixo, como por exemplo o de Mefistófeles, uma vez que se leve em conta o caráter a ser interpretado e a adatação da vóz do artista ao papel. O papel de Escamillo na Carmen, é parã baritono, mas como exige graves difíceis, tem sido cantado também por baixos. O russo Schialiapin e o italiano Arimondi foram considerados os melhores baixos.

Barítono dramático, com tessitura que vái do FA ao fa1 sustenido; encontra-se, sobretudo, em Wagner: Wotan nos três exemplos, que citamos para o baixo-cantante; o holândes no "Navio Fantasma" de Wagner (Fliegender Hollander), entrada do 1 áto; Escamilo, de "Carmen"; Telramund, em "Lohengrin"; os dois monólogos de Hans Sachs, no II áto (Fliedermonolog) e no III áto (Wahnmonolog) e a serenata de Beckmesser no II áto dos "Mestres cantores" (ver a nota anterior a respeito dos papéis de baixo nas óperas de Wagner).

Barítono lírico (sua tessitura deve alcançar de Lã ao sol sustenido). Como alguns exemplos podemos citar: Prólogo dos "Pagliacci"; árias de Renato no I áto "Alla vita che t'arride" e sobretudo na do III áto "Eri tu che macchiavi quell'anima" do "Baile de máscaras"; Serenata no "D. Juan" ; as duas arias no "Rigoletto"; Scarpia no I e 11 átos de "Tosca"; o Dr. Mirakel nos "Contos de Hoffmann" (também para baixo cantante) ; Maldição do anel, Alberich no final de "Rheingold"; Jorge Germont na "Traviata" (Di Provenza il mar) ; Conde de Luna, aria do II áto do "Trovador"; Amonasro na "Aida". Como para os baixos, a especialidade do barítono baseia-se na extensão, qualidade e timbre da vóz ; na personalidade do cantor, na sua figura física e nas suas qualidades cênicas de ator, inclusive compreensão exáta dos seus papéis. (Alberich é Mirakel exigem vozes potêntes e extensão e podem ser cantadas por baixos cantantes).

Tenor dramático: o tenor dramático wagneriano deve alcançar facilmente até o lã, nota que aparece freqüêntemente, e si menos vêzes e o do2 (dó de peito) ; apenas duas vezes, em Siegfried e no Crepusculo dos Deuses. Entretanto ha bons tenores dramáticos que apenas conseguem aflorar esse dó2. É preciso, porém, não esquecer que essa nota é empregada por Wagner para efeitos muito diferentes dos desejados por Verdi e Puccini, por exemplo. De fáto, o ponto em que estes compositores italianos colocam o dó2 coresponde sempre ao ponto culminante de uma frase ou de uma ária, que o público em geral conhece e pela qual fica à espera (por exemplo, o dó de peito na stretta do "Trovador" e o da ária de Rodolfo na "Bohemia) ; ao passo que em Wagner tais passagens onde se canta o mesmo dó2, são secundárias. E isto está de acordo com o caráter das respetivas obras. Entretanto, nas composições de Wagner há dois papéis que devem ser cantados por tenor dramático de gênero italiano (timbre mais claro e maior alcance nos agúdos): Walter Stolzing nos "Mestres cantores" e Lohengrin. Outros papéis para tenor dramático alemão (wagneriano): Florestano no "Fidelio" de Beethoven, a grande aria ; Pedro no "Tiefland" de D'Alberts. Podem ser cantadas por tenor dramático os papéis de Aida, Otelo (Verdi) e da Africana de Mayerbeer (a grande aria do Paraíso).

Dá-se o nome de tenor dramático italiano aquele que mais corresponde ao caráter das composições italianas; é uma qualidade de vóz que também se adata às composições francesas, e, uma ou outra vez às alemãs. (Também chamado tenor líricodramático, tenor dramático-juvenil). Exemplos: Radamés na romanza do I áto "Celeste Aida"... ; o mesmo no III áto. Romanza de Raul no I áto de "Huguenotes". Assad na "Rainha de Saba" de Goldmark. Otello. Pery, no dueto final do I áto do "Guarany" de C. Gomes, "Sento una forza indomita". Manrico na aria em fá menor no III áto do "Trovador" "Ah, si ben mio, coll'essere in tui". Pouco adeante, no final do mesmo áto, Manrico canta a famosa "stretta" "Di quella pira"... quasi sempre meia a um tom para baixo, de modo a evitar o dó2 (de peito) gdte vem imediatamente após a frase... corro a salvarti... A platéia fica na expectativa e sempre aplaude com entusiasmo o tenor "que vai com dó". Finalmente Lohengrin (Grabserzáhlung e partes do III áto no aposento nupcial).

Tenor lírico: papéis típicos são os das óperas de Verdi : Duque no "Rigoletto" ("Questa o quella"... "La donna é mobile"). Alfredo, na terceira cena do primeiro áto da "Traviata" "Un dí felice".. ; Rodolfo na "Bohemia" "Che gelida manina". Cavaradossi na "Tosca", III áto "E lucevan le stelle". De Grieux na "Manon" de Massenet. Arias de "Werther". A aria da Flor, da "Carmen" final do II áto. Aria do cantor do "Cavaleiro das Rosas" (Rosenkavalier) de Strauss. Pinkerton na aria do ultimo áto de "Mme. Butterfly". Façamos notar que Wagner, na partitura do "Tanhâuser", compoz o seu Walter von der Vogelweide para vóz de tenor lírico típico.

Tenor buffo : Esta especificação diz mais respeito aos papéis que exigem personagens extravagantes. Em certos casos essa exigência coincide realmente com o físico e disposições naturais do artista. Alguns dos melhores papéis para tenor bufo são: o de Daniel nos "Mestres cantores", Mime em "Rheingold" e "Siegfried" ; Monostatos na "Flauta mágica" de Mozart ; Wenzel na "Verkaufte Braut" de Smetana; Fra Diavolo; Guilherme Meister na "Mignon".



Vózes femininas

Contralto: sua extensão vai do sol até o si2 bemol. As composições modernas de menos de 40 anos, não mais se tem ocupado de vózes femininas graves, que eram mais empregadas em velhas arias italianas e peças antigas de oratórios.

O "Orfeo" de Gluck é o exemplo clássico para a vóz de contralto, seguindo-se, depois, Carmem; a aria de "Fides" nó "Profeta" de Mayerbeer" ; Ulrica no "Baile de Mascaras"; Erda no "Rheingold" (Weiche Wotan, weiche); Ortrud, em Lohengrin"; Bengrana, no III áto de "Trintão e Isolda" (Habt acht) (este papél exige não só graves, como, sobretudo, muita musicalidade por parte da artista) ; Waltraute na "Walküre" e "Crepusculo dos Deuses"; Madalena no "Rigoletto".

Meio-soprano; sua tessitura deve ir do lá ao si2 (dó3). Deve dispor de graves e médios bons e ter capacidade de entoar vigorosamente os agúdos. "Mignon" de Thomaz, é uma partitura das mais adequadas para essa espécie de vóz, (a Gavota) sobretudo para pêssoas de físico delicado e com habilidade cênica. Amneris da "Aida" e Azucena no "Trovador", e "Carmem", (uma das melhores "Carmen" que já vimos foi Jeritza o soprano dramática de Vienna).

Soprano dramática; Santuzza da "Cavalleria rusticana" ; "Brunhilde" no começo do II áto (Ho io-hei-ia)e no III áto (War es so schmalich) da "Walküre"; Fidélio (Leonor) de Beethoven ; Dona Anna do "D. Juan" de Mozart; A marechala no "Cavaleiro das Rosas" de Strauss ; Valentina nos "Huguenotes".

Soprano-lírico-dramática: (dramático juvenil) : Tosca sobretudo na grande aria "Vissi d'arte". Elza no início do I áto de "Lohengrin" (Einsam in trüben Tagen) ; Elisabeth no início do II áto (Dich, teure Halle) e do III áto (oração à Virgem "Allmacht'ge Jungfrau, hor mein Flehen") de "Tanhauser" ; Eva nos "Mestres cantores"; Micaela na "Carmen"; Aida na aria do I áto "Ritorna vincitor" e sobretudo no início do III áto (na aria do Nilo) ; "O cieli azzuri" onde o dói deve ser cantado em crescendo doce (no, mai piú...) para depois descer ao lá' bemol com vóz cheia e sustentá-lo em piano "senza affretare"; Agatha em "Freischütz" ; Amélia na aria do início do II e início do III áto do "Baile de máscaras"; Leonora no "Trovador" (precisa de trinados") ; Pamina na "Flauta mágica" (Zauberflotte).

Soprano lírico: "Butterfly" sobretudo a primeira aria; Liú e a princeza na "Turandot" ; Leonor na "Força do destino"; Margarida no "Fausto".

Soprano ligeiro: Balada de Cecília no II áto do "Guarany" "Ciera una volta un príncipe"; Gilda no "Rigoletto" ; Philina em "Mignon"; Rosina no "Barbeiro de Sevilha" ; a rainha da noite na "Flauta mágica"; Zerbínetta em "Ariadne"; as arias da "Traviata"; a aria do pagem no III áto do "Baile de máscaras".

Soubrette: Adelia no "Fledermaus"; Sofia no "Cavaleiro das Rosas"; Papagena na "Flauta magica"; Zerlina em "D. Juan" também de Mozart ; Hãsnchen em "Freischutz"; Neda em "Pagliacci".

Não se devem considerar essas cinco espécies de sopranos como rigorosamente distintas; pelo contrário, não há cantora que cante exclusivamente numa só destas. Só em grandes centros de cultura é que se observam tais distinções na distribuição de pápeis, por ser fácil a escolha de vózes, pela tessitura, pelos agúdos, pelo timbre, e pelo aspecto físico e temperamento das artistas.

Coloratura. A coloratura, como ela se manifesta numa vóz educada, implica as seguintes qualidades: 1) Maior extensão nos agúdos. 2) Trinado (Triller) ou gorgeio. 3) Staccato. 4) Percorrer agilmente as escalas. Uma vóz com coloratura, portanto, deve ter leveza e maleabilidade e só com muito estudo chega ao seu desenvolvimento completo.

A soprono ligeiro (em alemão "Coloratur Sangerin") tem a vóz adequada á coloratura, naturalmente. Os autores modernos pouco compõem para essa espécie de vóz. (Ariadne). Na literatura músical antiga encontram-se composições que exigem algumas das qualidades da coloratura para os outros timbres de vóz que não as vózes de soprano. Nas cantatas de Bach, por exemplo, existem passagens muito difíceis para baixos, exigindo grande agilidade. O "Barbeiro de Sevilha" tem no Conde de Almaviva um papél difícil para tenor, que corresponderia à coloratura.

As vózes "pesadas", por sua própria natureza, não podem ostentar a agilidade de uma cantora de coloratura, mas no ensino do canto deve ela ser em todos os casos exercitada, porque confere às vózes caracteristicamente dramáticas mais enfeite e maleabilidade.

G. PUCCINI

Puccini, Leoncavallo e Mascagni são os principais representantes de uma tendência, entre os compositores italianos da passagem do século, para romper com os enredos clássicos e mitológicos, trazendo à luz operas curtas e impregnadas de um realismo às vezes excessivo, mas pondo a grande ópera mais em contáto com a vida de todos os dias. É a chamada escola verista", que modificou bastante os horizontes da estética musical.

TOSCA é uma pura ópera verista da nova música italiana. Em nenhuma de suas composições desenvolveu Puccini tanto talento como nesta ópera, apesar de a basear num enredo que a muitos não agrada e que, realmente, contem passagens que não chegam a comover própriamente porque são brutais ou traduzem pensamentos lincenciósos de um de seus personagens. Apesar disso, Puccini, nesta ópera distingue-se dos outros realistas por ter conseguido com quasi perfeição associar o realismo ao idealismo. Os três principais cantores da ópera devem impreterivelmente dispôr de vózes à altura do verismo.

Primeiro áto. Logo no início um sólo do sacristão culminando no "Angelus", bélo trecho cantado só na nota fá, durante trese compassos binários, cujo efeito depende do artista possuir uma vóz cheia e saber modular aquéla nota insistida tanto tempo. Puccini caracterisa bem esse personagem: homem da rua, fazendo tudo por rotina, de devoção falsa, e é nesse sentido que deve ser cantado o papel.

Quando entra em cena Cavaradossi (tenór lírico), a música imediatamente se anima. A ária "Recondita armonia" é uma descrição melódica da personalidade interior do pintor; deve ser cantada com entusiasmo crescente, até que nas palavras "Tosca sei tu" se inflama num si bemol, agúdo e claro; esse belo agúdo torna-se de efeito irradiante quando o artista o "segura" bastante tempo, o que também não consta da partitura.
Depois de uma pequena cena com Angelotti, entra Tosca e imediatamente se acentúa o caráter lírico da partitura: toda essa cena é de um tom vacilante, e só quando Cavaradossi mostra seu ciúme é que aparecem os tons dramáticos no canto de ambos os personagens. A canção amorosa deve ser cantada por ambos com muito brilho, sem contudo apagar alguns detalhes encantadores: por exemplo, a passagem "non la sospiri la postara casetta..." deve ser repassada do sentimentalismo ardente da alma latina, italiana. É esse trecho da ópera (e ainda outros) que os críticos citam para provar a influência que Verdi, Mascagni e Leoncavallo exerceram sobre Puccini. Também o trecho de Cavaradossi "Qual'occhio al mondo puó star di paro..." e o resto do dueto amoroso, tão rico de beleza lírica, deve ser cantado em pura cantilena italiana. A pequena cena seguinte, cantada por Angelotti, é muito difícil e apesar da sua brevidade, as boas companhias costumam entregá-la a um bom baixo.

Segue-se a cena movimentada no interior da Igreja. Para se compreender essa cena é preciso lembrar que os cantores do côro da igreja manifestam alegria barulhenta, não só por terem chegado boas novas da guerra napoleônica, como por terem conseguido um trabalho extraordinário em uma festa. Tudo porém cessa bruscamente com a entrada do violento tirano Scarpia, revestindo-se a música, logo, do mesmo caráter áspero. Suas primeiras ordens são de desconfiança e com segunda intensão. Canta-se às vêzes esta passagem secamente ou em fortíssimo exagerado, o que não é certo. O compositor quiz por em relevo não só a prepotência como o caráter desleal, covarde e calculista desse homem sem coração. Até mesmo das pequenas minúcias cuidou Puccini, como na série de suas frias exigências, que foram muito bem acentuadas por modulações.

Tosca reaparece em cena. Com' uma cantilena ardorosa Scarpia procura despertar-lhe o ciúme. Neste trecho o canto de Scarpia deve ter certo lirismo de sedução, pois seu fim é conseguir sobre Tosca algum poder.

No final deste primeiro áto assiste-se a um desenrolar suntuoso da ópera com grande volume de orquestra, o qual em certo trecho cessa para aparecer apenas um canto "a capella" (o Te Deum), cuja melôdia é dada por Scarpia. O compositor exige aí do interprete de Scarpia uma vóz potente que domine o conjunto; o trecho, porém, não oferece maior dificuldade técnica estando colocado em lugar favorável da tessitura de um bom barítono que pode aí desenvolver livremente sua vóz.

Segundo áto : começa com Scarpia dominando toda a cena ; o seu cantar está cheio de trechos líricos muito bonitos mas que deixam transparecer os sentimentos baixos que caracterisam esse personagem. Na sua composição Puccini se excedeu a si mesmo no descrever com melôdias tais sentimentos como cálculo, hipocrisía, prepotência e erotismo.

Em seguida um dueto curto com Spoleta, em que Scarpia dá largas ao seu furor ao saber que o traidor (Angelotti) não fôra ainda encontrado, mas logo se interrompe ao ouvir, pela janela aberta, a cantata com coros de uma festa que se celebra no palácio da rainha, reconhecendo a vóz de Tosca pairando sobre o conjunto. Essa cantata é de grande beleza e sem dúvida é uma das melhores composições de Puccini. Ela termina abruptamente quando Scarpia fecha violentamente a janela, irritado com a repetição do "rido ancor" de Cavaradossi, que, no meio tempo tinha sido conduzido à sua presença. Numa atmosfera carregada entra Tosca. Scarpia manda retirar Cavaradossi; seu furor logo se abranda, para ceder lugar ao lirismo do cortejador dirigindo-se a Tosca: "Ed or fra noi parliam da buoni amici". Este trecho todo lírico deverá ser cantado com falsa, forçada alegria. Segue-se a tortura de Cavaradossi e quando esta chega ao auge, ouvem-se os apêlos angustiosos de Tosca "Ah! piú non posso! Ah! che orror ! Ah! cessate il martir !" difíceis de cantar porque cada compasso é iniciado com uma nota mais alta: os tres "Ah!" são cantados respetivamente em lá2, si2bemol e dói, em elevação poderosa, mas não igual, da vóz.

Tosca resolve-se a revelar o esconderijo de Angelotti, com o que cessa a tortura e Cavaradossi é reconduzido á cena. Pouco depois entra um mensageiro com a notícia da vitória de Napoleão Bonaparte em Marengo, o que arranca do infeliz pintor o grito retumbante de "Vittoria !" em um lalsustenido, cantado com grande entusiasmo e em "fortíssimo" e continúa, entoando agora uma óde revolucionária que se inicia com médios-graves e vai subindo até alcançar o la1bemol no trecho em que repete três vezes a palavra "carnefice" ; a passagem não é dificil, mas o tenor deve possuir bôa tonalidade dramática. Ainda aqui, e nas passagens seguintes, verifica-se como Puccini aprendeu com a escola realista italiana e sobretudo com Mascagni.

Logo depois recomeça a cantilena de Scarpia insistindo vilmente nas suas propóstas amorosas e reforçando-as com ameaças sobre a vida de Cavaradossi, depois de alguns compassos em silêncio Tosca canta a sua famosa "Preghiera" ("Vissi d'arte, vissi d'amore"). Esta "preghiera" pode servir como pedra de toque da vóz, porque de permeio com trechos líricos existem outros dramáticos: o tonus muscular, na passagem do lírico para o dramático, ou vice-versa, não é muito rápido em se adatar aos músculos, sobretudo aos músculos do tórax e do abdómen. O final da preghiera pode ser cantado de maneiras diferentes. O famoso si2bemol, por exemplo, pode ser cantado em ligação com o la2bemol seguinte; ou então pode haver uma interrupção entre as duas notas; certas cantoras preferem tomar um bom fôlego antes do si2bemol para poder sustentá-lô bastante tempo e depois ir descendo para o la2bemol e ainda alcançar o so12seguinte. É uma questão não só de gosto, como também uma circunstância dependente da individualidade da, cantora, que procura sempre tirar o máximo efeito com o emprego de suas tendências expontâneas. Também muito se tem discutido sobre a atitude que Tosca deve aparentar nessa ocasião. Algumas artistas (como por exemplo Jeritza, em Viena) tem cantado esse trecho deitadas sobre o chão, outras meio ajoelhadas junto ao sofá, outras, enfim, de pé a um canto e cobrindo os olhos com as mãos. Cada uma dessas interpretações tem sua justificativa. Uma coisa, porém, deve ser observada sempre: a melodia impetuosa que deve terminar em desespero, exprime grande aflição do coração e profundo sentimento de vergonha.

Depois da preghiera, Scarpia volta a fazer pressão sobre Tosca e esta acaba por ceder, mas exige a liberdade imediata de Cavaradossi. Scarpia assim o ordena. Em seguida um parlando entre ele e Tosca, enquanto escreve o passaporte e se informa da direção da viagem; deve ser realmente um falar-cantado; por fim Scarpia, exclama jubiloso "Tosca, finalmente mia... !" as seis primeiras sílabas em mi1bemol, as duas ultimas (mia) em mil, que o compositor determina serem cantadas em surdina, mas que quasi todo artista canta com entusiasmo crescente. Tosca interrompe para sempre esse ardor libertino com um golpe de punhal, e então é que Scarpia deixa escapar algumas palavras quasi destoadas "Maledetta ! ... aiuto.. . !". Antes de morrer exclama ele ainda duas vezes "muoio!" a primeira em dois fa1sustenidos, a segunda em mil, reunindo suas forças para exprimir-se em "forte". As últimas palavras de Tosca "E avanti a lui tremava tutta Roma!" (em do' sustenido) geralmente não são cantadas, mas pronunciadas com significativa emoção.

Terceiro áto. Logo no início ouve-se a tristonha melodia do pastor; pode ser cantada por um menino ou por uma mezzosoprano, sendo a daquele a que consta na partitura. Depois de curto diálogo com o carcereiro vem a celebre ária de Cavaradossi "E lucevan le Stelle". Começa em recitativo lírico, elevando-se, depois, em intensidade dramática até ter a vóz afogada em lágrimas. Fletta abriu um precedente desastroso na interpretação dessa famosa ária, cantando em falsete a frase do meio. Porque o grande tenor tenha conseguido excepcionalmente um belo efeito, o exemplo teve o mau resultado de fazer com que os professores de canto começassem a exigir de seus alunos que cantassem aquela passagem com a inovação de Fletta. Ora este cantor tinha como especialidade sua, característica, aquele falsete, que outros cantores não são capazes de reproduzir e dai a desfiguração que costuma ser infligida áquele belo trecho da ópera. Insistir em cultivar tamanha falta de gosto é baixar o nível do verdadeiro gosto artístico (Compara- os discos de Fletta, Caruso e Piccaver).

Segue-se o "agitando" em que Tosca relata o ocorrido e depois o bélo trecho de Cavaradossi "O dolci mani..." que deve ser cantado com a emoção que lhe vem do comportamento heróico de Tosca. Finalmente entoam ambos, em unísono "Trionfal di nova speme.. . ", canto cuja linha melódica é dada pela trompa que anúncia a madrugada -. Antes de Tosca se afastar ha um trecho bonito no qual ela, sorrindo furtivamente, murmura a Cavaradossi o que ele deve fazer quando os soldados atirarem. O final trágico imprime novamente á entonação de Tosca caráter altamente dramático, tanto na atuação cênica como na vóz ("Presto, su ! Mario ! Mario ! Andiam !" etc.).


G. VERDI

Uma das características das óperas de Verdi, no que diz respeito ao canto, é de terem sido compostas de modo a porem á mostra, logo na saída, as qualidades vocais dos cantores. Nisso diférem totalmente das operas de Wagner, onde, freqüêntemente, depois de se ouvir um artista por mais de meia hora ainda fica o juízo em suspenso acerca das qualidades de sua vóz, e só depois de algumas cênas é que poderá haver ás vezes alguma surpresa. É que em Verdi os trechos "expostos" da voz cantada são muito numerosos, podendo-se mesmo dizer que não há uma ária nas suas composições que não esteja naquelas condições: numerosas pedras de tóque, criadas por mãos de mestre, para exame e julgamento de vózes.

O "RIGOLETTO" é uma das operas mais conhecidas e mais levadas á cêna, sobretudo pelo fato de requerer uma encenação relativamente pouco complicada. Em troca disso, porém, requer, em absoluto, muito bons cantores, por ser exatamente muito rica naqueles trechos "expostos" a que acabamos de nos referir.

Primeiro áto. Logo depois dos primeiros compassos da introdução tem o Duque de Mantua (tenor lírico) de cantar a balada "Questa o quella..." já bem eriçada de dificuldades. É uma ária que pode ser escolhida para o julgamento de um artista que só em canta-la pode mostrar quanto vale sua vóz. Trecho bem difícil encontra-se nas palavras "...di che il fato ne infiora la vita" ; que deve ser cantado em suave parlando; aliás toda a balada tem esse caráter de parlando. As mesmas notas se repetem na segunda estrofe com as palavras. "...degli amanti le smanie de rido,". A maior dificuldade encontra-se, porém, nos cinco últimos compassos onde, depois do la bemol (na palavra "se") todos os cantores encaixam ainda um si1 bemol, que Verdi não colocou. Depois de pequeno diálogo com a condessa Ceprano (papel secundário) no qual o duque canta, ainda, belos trechos líricos, dá-se a entrada de Rigoletto. Também logo no inicio mostra sua vóz : deve ser "brilhante" o mi1bemol na palavra Ceprano na sua primeira frase cantada "In testa che avete signor di Ceprano?". Uma tal emissão fazem-na com facilidade os cantores italianos, possuidores de "voix mixte" natural que os permite cantar aberto e com vóz cheia. Na Europa central os cantores procuram imitar os barítonos italianos nessa qualidade, mas freqüêntemente não a tendo por natureza expõe-se a gritar aquela nota (mil bemol), do que resulta um tom estridente e não raro rachado, o que pode prejudicar a vóz pana o resto do espetáculo. No conjunto seguinte é a Rigoletto que cabe guiar as vózes e daí a praxe de escolher para seu interprete um barítono lírico mas com potente dramaticidade na vóz. Um barítono excessivamente lírico não servirá; tão pouco servirá um que seja exclusivamente dramático.

Interessante é o dueto seguinte entre Rigoletto e Sparafucile, que deve ser cantado com muita cantilena. O papel de Sparafucile é para baixo profundo. O final do dueto é em belo "piano", ou a meia vóz, nos tres fa e no último FA profundo de Sparafucile.

Segue-se logo o dueto entre Rigoletto e Gilda. O papel de Gilda é um dos mais conhecidos para soprano ligeiro, mas nesse dueto sobresai-se mais o soprano-lírico. Quando a cantora tem uma vóz que pende demasiadamente para o ligeiro, perde esse dueto muito do seu efeito. Vem depois os conhecidos trechos em que Rigoletto canta só e que contem bastante agúdos nas vizinhanças do mi1bemol e fal, que não são difíceis para um bom barítono, mas que exigem agilidade de vóz nos tons de cima.

Depois de alguns outros trechos, não tão importantes, chega-se ao dueto entre o tenor e Gilda, onde aquele precisa dispôr de agúdos que irradiem limpidos e facéis de sua garganta. "...si d'invidia agl'uomini saró per te" é o seu trecho mais difícil, que, como é característico em Verdi, vai se elevando por meios tons até o silbemol. Essa elevação progressiva na escala é feita sem que seja possível dar um descanço á voz e, por isso, é muito mais difícil do que quando o agudo é precedido por um tom mais grave (costuma ser cerca de uma quarta abaixo) que serve como apoio ou trampolim. Nesse trecho (pedra de toque) não deve o tenor ser tentado a tomar inspiração muito profunda porque isso trás cansaço rápido na emissão de tons muito agúdos. Além de uma vóz ágil e dotada de muito brilho, este trecho exige ainda boa técnica respiratória.

Alguns compassos antes do final são cantados em "ppp", o tenor em fal e a soprano em so12. No final algumas notas com modulação rápida para ambos.

Antes do final do áto a famosa ária de Gilda "Caro nome", uma das pedras de toque para a soprano ligeiro.

Segundo áto. Logo depois do início uma ária muito difícil para o tenor "Parmi veder le lagrime...". É uma bela ária, mas sua dificuldade, realmente grande, faz com que seja freqüêntemente omitida.

Importante é uma cêna que Rigoletto canta com o cojunto e que positivamente é a descrição de uma psicóse por meio de notas sincopadas - "la,ra la,ra" -; a sua repetição quatro vezes parece ser mais uma prova de ter sido essa a intenção de Verdi. Essas quatro vezes são cantadas com modulações diferentes e com matizes carregados para que se não tornem monótonas ou mesmo para que não percam seu significado.

O côro prossegue até o violento trecho de Rigoletto "Cortigiani, vil razza..." que contrasta como uma erupção com o trecho precedente e não sem motivo. O trecho deve significar que
o pobre Rigoletto tornou a se achar, psiquicamente. Depois da explosão, volta a calma, que se reflete na cantilena final dessa cêna.

Entrada brusca de Gilda e aceleração do andamento da música. Inícia-se o conhecido dueto no qual Rigoletto, novamente em cantilena suave, dá a melôdia principal ("Piangi, piangi), ao passo que Gilda a debrúa com o ligeiro do seu soprano. Nunca como neste lindo dueto se justifica a denominação de ligeiro dada a este soprano. Para que não seja aniquilada a melôdia, que está com Rigoletto, deve ser ela apenas emoldurada pela suave e leve vóz feminina de Gilda. Bom ouvido, muita técnica vocal e qualidades cênicas, são requeridas em alto graú de ambos os artistas.

No final do áto a "stretta" de Rigoletto "Si, vendetta, tremenda vendetta..." que deve ser cantada em compasso rápido e com violência de sentimento.

Terceiro áto. Logo no início a famosa ária "Lã donna é mobile", escrita para tessitura alta de tenor. Apesar de muito conhecida é infelizmente desvirtuada com freqüência pelas interpretações que lhe são dadas. Verdi quiz fazer dela uma canção alegre, própria de ambiente onde o vinho corre livre, para ser cantada quasi com a simplicidade e leveza de uma canção popular. Cantada com dramaticidade como o é por muitos cantores, não corresponde ao seu designio nem ao seu estilo. No final da segunda estrofe o tenor deve subir até la1 sustenido, mas a maioria dos cantores costuma introduzir uma cadencia; que embeleza o final da ária e com a qual podem mostrar a vóz com um difícil si' agúdo.

Contam de Toscanini, conhecido pelo rigor com que se adstringe ao original das partituras, jamais permitir essa extravagância por parte de um cantor quando rége o Rigoletto.

Importante é o conhecido quarteto "Bella figlia dell'amore" cuja direção cabe mais ao tenor. Aqui também a vóz da soprano deve apenas ser modulada em suspenso sobre as três outras vózes.

Segue-se a ária de Madalena (contralto), que, quando bem cantada, o que não é frequente, é de um belo efeito. Em seguida Sparafucile canta ainda alguns compassos em bela cantilena; como no primeiro áto. Ouve-se mais uma vez' o"Donna é mobile", mas apenas em parte, pois que o duque adormece.

Rigoletto está a espera que lhe venham anunciar o assassinato do duque, mas em lugar disso ouve a sua vóz que entoa mais uma vez o "Donna é mobile", desta vez porém, em surdina, como que cantarolando de si para consigo.

Em muitos teatros a ópera termina com alguns acentos poderosos de Rigoletto ajoelhado junto ao cadáver da filha. O autor, entretanto, compoz anda um dueto entre a filha moribunda
e o pai. É sabido que essa cêna, nos grandes teatros, não é cantada com o pretexto de não prejudicar a ação dramática.

TROVADOR - Dois anos após o Rigoletto apareceu o Trovador, cujo sucesso, desde a estréia, foi extraordinario. O patriotismo local, em exacerbação naquela época, certamente aumentava o valor de Verdi enxergando nas letras do nome do maestro as iniciais do moto, então eletrisante, "Vittorio Emanuele, Ré d'Italia" ; mas o grande sucesso tinha fundamento real não sómente no texto, composto com técnica teatral perfeita, como principalmente na excelência da música e, mais especialmente, na direção e realce das vózes. Verdi não procurou agradar a platéia com melôdias simples, facéis de assobiar sendo antes visível a intensão que teve de modelar distintamente seus personagens, para o que cercou cada um deles de um halo de composições orquestrais magníficas. O grande compositor revelou nessa ópera, seu verdadeira temperamento revolucionario e é com razão que o mundo todo, e não apenas os italianos, se inebría nesses rítmos quentes. Em nenhuma das óperas aparece tão evidente o gênio criador de Verdi como no Trovador, por assim dizer ó genio aí borbulha, ao passo que nas outras composições se esconde sob as regras da música culta.

Examinando a ópera em suas passagens, encontrámos, logo no início, a cavatina cantada por Ferrando. Não é bem uma cavatina, porque tem no seu allegretto muito de um compasso de valsa e deve ser cantada como em sigilo, mas em tom dramático. Segue-se logo a entrada de Leonora, cantando a ária "Tacea la notte placida" ; a cantora (soprano lírico dramático) deve exprimir a saudade de uma recordação feliz. A romanza de Manrico, (tenor dramático) "Deserto sulla terra", que se segue, adquire mais efeito quando os tenores a terminam com o doe (35). O terceto final do I áto, entre Manrico, Leonora e Luna deve ser, cantado em ritmo crescente, mas freqüêntemente perde muito do seu belo efeito por desatenção dos artistas ao tempo do compasso.

Segundo áto: Destaca-se no início a sombria canção de Azucena "Stride la vampa", pedra de tóque das meio-soprano essa canção produz todo seu efeito quando a vóz da cantora dispõe de graves soturnos, mas cheios e fluentes. A ária do conde de Luna (barítono lírico) "Il balen dei suo sorriso" deve ser cantada com ternura, sem deixar exprimir paixão abrasadora. No conjunto do final deste áto, Verdi empregou a mesma espécie de quarteto já usado para o Rigoletto. Os três côros, a) o dos ciganos, b) o dos soldados e c) o dos ferreiros, como costumam ser cantados no "Scala" deixam impressão indelével; infelizmente, mesmo em países bem cultos, são mais freqüêntemente exibidos com o desinteresse e automátismo de um realejo de rua.

Seguem-se dois numeros de Manrico, que, pela beleza poética e ao mesmo tempo intensidade dramática, constituem para, o tenor uma demonstração sem igual. A ária em fá menor "Ah,
si, bem mio, coll essere io tuo", é de execução técnica muito difícil exigindo sobretudo uma vóz bem lisa (fluente) na passagem dos registros, ao passo que a "Stretta", que logo se lhe segue, "Di quella pira l'orrendo fuóco" requér expressão rigorosamente dramática. A stretta foi escrita em dó-maior, exigindo com isso o compositor que o tenor que se julga capaz de canta-Ia disponha de um dó agudo seguro e infalível. Existem, porém, muitos Manricos que, apesar de capazes desse dó2, só podem cantar a ária para si maior ou mesmo si bemol maior, portanto meio e até um tom abaixo. Entretanto o que essa famosa Stretta tem de bélo, no seu arrebatamento e impetuosidade, perde-se quasi completamente quando a transposição é feita.

Quarto áto : Musicalmente é este o melhor de toda a ópera, destacando-se sobretudo o "Miserere". Diz-se que esse Miserere foi inspirado da marcha fúnebre da sonata em lá maior de Beethoven. O Miserere não deve ser cantado em tom de pranto e sim com a maior naturalidade e simplicidade: porque só nessas condições é que dele se pode destacar, e realçar plasticamente, a cantïlena (ária) de Leonora "D'amor sull'ali rosee". Vem em, seguida a despedida de Manrico da vida. Si na execução da stretta, como vimos atrás, o artista que interpreta Manrico deve dar á vóz uma entonação de grande ardência e vigor, nesta passagem deve fazer transparecer o máximo de tristeza e melâncolia de que seja capaz o coração humano. No dueto seguinte, entre o conde de Luna e Leonora, a situação dramática do enredo atinge o auge, apesar de alguns criticos encontrarem caráter "dansante" na música que acompanha a exclamação de júbilo "salve tu sei per me, tu sei per me". O dueto entre Manrico e sua mãe (Azucena) "Ai nostri monti ritorneremo" deve ser cantado com meiguice e ternura ao passo que o final "Venduto un core" (Manrico) deve se-lo num dramático crescente.

Resumindo: o papel de Leonora deve ser interpretado com muita sensibilidade e ao mesmo tempo com veemencia e calor. O papel de Manrico é muito dificil, não pela facilidade em "grita-lo", como porque representa um personagem ao mesmo tempo cigano, cavaleiro e trovador. Em Azucena recaem as situações mais dramáticas e difíceis da ópera, que exigem, entretanto, muita sensibilidade e melancolia. O papel de Luna deve ser interpretado com dignidade e nobreza na vóz e suas árias são sempre de grande efeito quando o artista possue realmente uma "bela" vóz. De Ferrando, o crítico viennense Eduard Hanslik dizia com exagero caricatural que era "um velho valentão com formidável memória para mazurkas e mulheres ciganas".

Em relação a suas óperas anteriores, Verdi demonstrou com o seu "Trovador" ter feito notável progresso, trazendo mais calor e vida á sua música entremeiando suas cantilenas de sentimentos dramatizastes. Nas suas últimas, (Otelo, Falstaff) não deu tanta predominancia ás vózes e melôdias, cuidando mais da orquestra e do conjunto - como Wagner, mas sem imitá-lo.

AIDA - Primeiro ato. Depois do prelúdio, logo no início do I ato vem a romanza de Radamés "Celeste Aida", muito difícil por se movimentar constantemente nos médios da tessitura do tenor e pelas ascensões repetidas ao si1bemol. Além de ser difícil, o fato dessa ária estar colocada logo no início da ópera torna-a ainda mais temida dos cantores que, para se pôr a coberto de surpresas, se vêm freqüêntemente na necessidade de "esquentar a vóz" antes de entrar em cêna. A parte mais difícil da romanza é o seu final (" ...un trono vicino al sol") com um silbemol "morrendo". Este silbemol final, entretanto, não costuma ser cantado em "pp" como está na partitura, não tanto pelo fato da maioria dos cantores não o poderem fazer, como porque o cantar em "forte" o final da romanza é de maior efeito, sem dúvida. O ideal seria atacar esse final em "forte" e ir decrescendo até o pianissimo (Caruso cantava esse final em "forte" abrandando um tanto a vóz depois).

No conjunto seguinte o tenor e Aida (soprano lírico-dramático) põe á mostra o colorido, o timbre e a construção mesma de sua vóz, de modo que depois da audição desse conjunto é possível julgar da qualidade e dá quantidade da vóz de ambos.

A cêna seguinte de Aida ("Ritorna vincitor") é notavel sobretudo por ter o início puramente dramático e o fim lírico. Sobretudo as oito últimas notas (" ... pietá, pietá del mio soffrir!") para serem bem cantadas devem sê-lo em p.p. mas não muito tênue que impeça a vóz de andar.

No final do áto atúam Radamès, Ramfis e o côro. O papel do baixo (Ramfis) é muito difícil e ingrato, porque em muitos trechos não tem acompanhamento. Para ser cantado com sucesso, esse papel exige vóz potente e expressiva.

Segundo áto. Bailados e côros de efeito deslumbrante. Dueto entre Aida e Amneris. O papel de Amneris está distribuido, na partitura, a uma vóz de meio-soprano. As contraltos que se abalançam a esse papel encontram as maiores dificuldades, quando não dispõem de agúdos extensos, sobretudo pódem fracassar no" sie bemol do III ato.

Terceiro áto. Logo depois do início, romanza da Aida "Oh patria mia..." "...O cieli azzurri..." que apresenta um trecho particularmente difícil no seu final: a melôdia partindo do mie bemol vai subindo lentamente até atingir o dói e descendo novamente e "senza affretare", por recomendação expressa do compositor, até o faz; na partitura vem ainda designado esse dó3 como devendo ser emitido "dolce" i.é em voix-mixte, o que não é obedecido mesmo por cantoras de renome, que alegam sentir diminuida a dificuldade daquela passagem quando a cantam
"forte". Realmente a emissão do dó3, em si, não é obstáculo para uma vóz de soprano, mas sim o fato de estar no meio de uma frase e ter de ser atingido paulatinamente através de uma pequena série de meios tons crescentes. A tensão crescente do músculo crico-tireoideu, que acompanha necessariamente a subida de tom, deve ser contrabalançada pelo relaxamento equivalente do tireo-aritenoideu (o internus ou vocalis, pg. 369) ; ora esse arranjo de equilíbrio é tanto mais difícil de alcançar quanto mais demorada for a emissão do tom, em primeiro lugar. O pouco desenvolvimento das fibras do m.interno, em segundo lugar, concorre para a dificuldade no conseguimento do equilíbrio funcional; esse pouco desenvolvimento ou fraqueza muscular do vocalis, que não é raro, pode ser a conseqüência de falta de exercícios para os braços, o que não é para admirar nos hábitos de vida sedentária, si bem que trabalhosa, dos cantores e sobretudo das cantoras. É explicavel, assim, que, em passagens como esta, as artistas recorram ao "forte", suprindo com a força do fole pulmonar a deficiência funcional dos músculos vocais no que diz respeito a finuras de matizes. Exercícios moderados dos músculos da cintura escapular (ver pág. 364) poderão ser úteis.

Segue-se o dueto com Amonasro. O papel deste exige vóz com bastante agúdos e, por isso, costuma ser entregue a barítonos líricos; tem, porém, um trecho de grande dramaticidade que exige muito volume e peso. O barítono tem de executar em seguida, alguns trechos em que deve se mostrar senhor da cantilena (melôdia de canto suave, cheia de portamento e de legato).

Logo depois o celebre dueto entre Aída e Radamès, tendendo mais para o dramático do que para o lírico. Na parte do tenor se encontra mais um daqueles trechos típicos de Verdi, de dificil execução, que em meios tons atinge ó agúdo. O trecho ("su noi gli astri brilleranno") é tão difícil que mesmo em teatros de responsabilidade tolera-se que o tenor deixe de cantar seis notas; aliás a melôdia não fica prejudicada porque a orquestra não deixa de executa-Ia. (Pedra de tóque para o tenor).

Depois desse dueto entra Amonasro (barítono) e, em seguida mais um trecho de grande dramaticidade e colocado no cimo dos agúdos do tenor (per te tradii la patria ! tradii la patria !" - com 4 lás). Logo depois encerra-se o áto, ainda com outro trecho conhecido do tenor (Radamès) como um lá1 sustentado dois compassos de quatro tempos: "Sacerdote, io resto a te." A palavra te é um ré na partitura, mas muitos cantores preferem canta-la também em la1, de maneira que esta nota final se mantem por três compassos.

Quarto áto. Começa com a grande cêna com Amneris e Radamès. Contem trechos muito melôdiosos, que exigem muita cantilena, sobretudo no início; depois o tom dramático vai se acentuando e chega-se ao trecho que é uma verdadeira pedra de tóque para a mezzo-soprano (Amneris) ; repete-se uma vez e sóbe, por meios tons, do mie e ao sizbemol, constituindo seria dificuldade para muitas cantoras. ("or dal ciel... dal ciel si compirá."). A primeira vista e pela disposição das notas agúdas o trecho parece ser escrito mais para uma soprano, mas considerando-se o caráter do papel de Amneris que em primeira plana ostenta sempre a dramaticidade vocal, compreende-se que o compositor tenha lançado mão dessa forte subida pelos agúdos da mezzo-soprano para conseguir o belo efeito que sempre produz essa passagem da ópera. Aqui está um dos escolhos onde pode sossobrar uma contralto que queira cantar a Amneris, representado sobretudo pelo si agúdo que deve ser sustentado um tempo e meio: as contraltos contornam a dificuldade apenas aflorando aquela nota agúda, em lugar de sustenta-lo como o desejou o compositor, mas já o efeito fica prejudicado tanto mais que dez compassos adeante a situação se repete. Na frase do texto, citada acima, a palavra "ciei" absorve 8 notas com a subida do mi2bemol ao si2bemol. Este trecho é um pendant áquele do III áto, onde já o encontrámos, que também constitúe para o tenor grande dificuldade ("su noi gli astri brilleranp"). O final dessa cêna ainda tem suas dificuldades, as quais entretanto, no dizer unânime das cantoras, constituem até um alívio em comparação com as subídas anteriores.

Segue-se a cêna do julgamento, que ainda exige agúdos difíceis da mezzo-soprano. A ópera termina com o dueto final entre Aída e Radamès, dominando a cantilena sobretudo no canto final onde os agúdos não passam do si bemol (sizbemol para o tenor e sizbemol para a soprano). A soprano aqui não ultrapassa nos agúdos o que a mezzo-soprano tem a cantar na cêna anterior. Aliás este dueto final nada apresenta de difícil para o tenor ou para a soprano; foi composto com simplicidade e muito cantável. O final último é para ser cantado ppp, mas cantores de qualidade costumam canta-lo em forte e nem por isso incorrem em grande falha.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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