ISSN 1806-9312  
Sábado, 23 de Novembro de 2024
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890 - Vol. 11 / Edição 3 / Período: Maio - Junho de 1943
Seção: Notas Clínicas Páginas: 258 a 266
OTO-MASTOIDITE BILATERAL E OSTEOMIELITE CRANEANA EM LACTENTE (*)
Autor(es):
DR. PEDRO V. B. CATALÃO

Ilhéus - Bahia

Dando a publicidade um caso clínico pleno de dificuldade e exaustivas vicissitudes, temos em vista principalmente, por em realce os ensinamentos de ordem geral dele decorrentes. Ha também algum interesse no fato de não serem freqüentes os casos de oto mastoidite bilateral complicados de osteomielite em creança de tenra idade. Seguindo um curso diverso de habitual, o caso prolongou-se já por mais de 6 meses cheios de ocorrencias as mais diversas e conduziu a intervenções em ambas as mastoides, curetagem de adenóides, afora uma assistência continuada e vigilante. Não nos seria possível descrevê-lo com a minuciosidade necessária sem prejuízo para a clareza da exposição, se não destacassemos inicialmente as ocorrências principais; relatando posteriormente o resumo da observação geral.

Em criancinha gerada em deficientes condições do organismo materno - grave osteite maxilar da progenitora durante a prenhes; - é de supôr que sobrevieram osteo-distrofias cujos focos aparentes localizaram-se nas mastóides. Não seria estranho que se ligasse certa relação entre a osteopatia materna durante a gravidez e a infecção latente, talvez responsável pela subseqüente otopatia do recen-nascido. Isto que ficou bem definido nos comemorativos deste caso, não poderia deixar de ser destacado inicialmente. É de notar pelo atento estudo dos comemorativos, - a parte que se relaciona com os sintomas que atormentaram os primeiros meses de vida da doentinha com sofrimentos que só cederam ultimamente quando a otopatia ficou debelada, sob ação do tratamento cirúrgico. E realmente, os antecedentes pessoais assinalam que durante o primeiro mês de vida, a criancinha apresentou crises de inquietação e vômitos persistentes, rebeldes a medicação habitual e que desapareceram também inesperadamente, para surgirem de novo, meses depois.

Mais tarde, em Maio último, aos 6 meses de idade, sobreveio insônia quase constante, acessos de choro muito prolongados, alem de distúrbios intestinais com diarréia e vômitos. Além de nestas ocasiões, levar as mãos ás orelhas nos momentos de maior inquietação e irritabilidade, tinha a tendência de descansar apoiando a testa sobre o travesseiro adotando uma postura que tendia a evitar qualquer contacto sobre os ouvidos.

Não obstante estes fatos terem chamado a atenção da progenitora em Maio, ela relata que em menor escala eles se verificaram anteriormente. Somente em fins de julho desencadeou-se a crise de oto antrite com sintomas mais ruidosos e em princípios de Agosto fomos chamados a ver a doentinha pela primeira vez. Seria lícito deduzir destes comemorativos a noção precisa de que a oto antrite latente evoluiu tão insidiosamente que por muito tempo passou desapercebida, antes que sobreviesse uma fase aguda na qual o otologista foi chamado a intervir. Esta evolução silenciosa é peculiar á otite latente no lactente, pelo o que seria útil ao pediatra ter sempre bem presente ao espírito a ocorrência desta otopatia em seus doentinhos portadores de déficit do estado geral e temperatura sub-febril; ou apirexia e leves distúrbios gastro-intestinais, rebeldes a medicação habitual. É claro que o diagnóstico seja da alçada do otologista, uma vez que além da desconcertante redução dos sintomas gerais, não é raro encontrar-se os mais discretos aspetos da imagem timpânica com um timpano lívido ou apenas despolido. É de notar que as otites latentes nos lactentes cuja elucidação diagnóstica foi posta em relevo dentre outros por R. Amarante, é sem dúvida responsável por grande percentagem da mortalidade infantil, as mais das vezes atribuída a outras causas mais conhecidas. Na verdade, isto ficou comprovado com o achado de pus, na caixa do tímpano de grande proporção de crânios autopsiados; se bem que a otite não deixe de ser ás vezes uma conseqüência da debilidade orgânica, ao em vez de ser a causa deste "déficit". Tratando-se de otopatia muito pouco dolorosa ou mesmo absolutamente indolor em seus períodos mais habituais, a otite latente do lactente pode apresentar surtos por assim dizer - agudos, no decurso de moléstias próprias á infância ou de um simples coriza banal conseqüente ou não a uma adenoidite. Justamente isto parece ter sucedido no nosso caso, de vez que os comemorativos foram observados cuidadosamente, uma vez que a doentinha é filha de médico.

Acarretando com freqüência certas complicações, a otite latente pode se manifestar por anorexia, inquietação, insônia, vômitos e diarréia ou simples depauperamento geral súbito no meio de uma saúde até então aparentemente inalterável. E alguns destes sintomas se revelaram no nosso caso por duas ou três vezes com intervalos de maior ou menor acalmaria. Verificou-se um recrudescimento durante os meses de Maio e Julho, o 6.° e 8.° mês de idade da doentinha, enquanto que não houve anormalidade durante o mês de Junho.

Contudo, somente no período de 17 de Julho a 5 de Agosto, quando vimos a doentinha pela primeira vez, estava patente uma crise aguda de Oto-antrite. Além de acentuada prostração, havia insônia quasi absoluta, inquietação e crises de choro quasi incessantes.

Ao exame constatamos intensa rino faringite, tímpanos cinza-avermelhado em A.O., temperatura axilar elevada, ao lado de ausência de dor revelada á pressão da mastóide. Feita a paracentese dos dois lados, verificou-se abundante escoamento de secreção muco purulenta durante 3 dias em A. O. Mas já em 10 de Agosto fui obrigado a alargar a incisão timpânica em O. D. uma vez que a doentinha levava continuamente a mão aos ouvidos e como dizia a progenitora "não podia descansar a cabeça sobre o travesseiro, ao mesmo tempo que a otoscopia revelava drenagem deficiente. Esta deficiência de drenagem persistio por espaço de 40 dias, não obstante um tenaz esforço de nossa parte para que aquilo não sucedesse. Procurando evitar a retenção, repetíamos as incisões timpânicas de maneira mais amiudada, apesar de que nem de início nem posteriormente, tivéssemos encontrado sinais de reação mastoideana. Mas a temperatura se mantinha no limite dos 37 graus a despeito de tudo. Durante esta fase da moléstia ficamos surpreendidos pelo poder de regeneração da membrana, uma vez que amplas aberturas que deixavam escoar abundante secreção durante 24 e 72 horas eram vistas a seguir quasi completamente cicatrizadas e deixando sair dificilmente uma secreção escassa e pulsatil. Era evidente a retenção contra a qual lutamos debalde com a dura determinação de quem via nela um sinal que nos levava a mastoidectomia.

Para maiores preocupações sobrevieram dois surtos de pielite e durante dias voltaram os distúrbios intestinais.

Não ha dúvida de que foi a força de medicação que sobreveio um, período de acalmaria, com sinais gerais quase nulos a não ser a febrícula. Este tempo foi bem aproveitado para levantar o estado geral de modo a que nos fosse possível operar as mastóides. E realmente este espaço de tempo foi todo preenchido nos estafantes curativos diários, nos cuidados para o estado geral e no pesquisar uma possível intercorrência de qualquer afecção outra que por acaso fosse responsável por parte daquele quadro sintomatológico, no que se referia ao estado geral. Fizemos a Cuti-reação de Von Pirquet, só não fazendo a Mantoux devido a certa oposição que não obstante sabermos infundada, nos levou a transigir. Foi feita a exploração radiológica do tórax e repetidos exames do sedimento urinaria, exames estes negativos.

Todavia uma acentuada poli-micro-adenia cervical e inquino-crural sempre nos deixava de sobre-aviso para exames reiterados. Foram negativos os exames para o lado do aparelho respiratório conforme impressões do distinto pediatra Dr. R. Pacheco.
Procurou-se instituir um tratamento especifico mais enérgico do que aquele feito até então, pois certos estigmas não comportavam duvidas á respeito - generalizado engorgitamento ganglionar, fronte olímpica, afastamento demasiado das fontanelas. A persistência do coriza e a reação inflamatória do tecido linfóide da faringe nos levou a curetar as adenóides, como intervenção preparatória para a mastoidectomia.

Não obstante tudo isto queremos crer que este precioso período de recuperação das forças foi conseguido não só pelos cuidados gerais e os cuidados contra a retenção, como também graças a ação da sulfamida, que parece ter atenuado a marcha da osteopatia dando-nos o tempo que precisávamos para o pré-operatório.

Porque nesta fase os sintomas se limitaram a palidez com aparecimento ocasional de ligeira elevação térmica, enquanto que por outro lado sobrevinha um pequeno aumento de peso e reapareciam a vivacidade e o apetite, para nos induzir a aguardar o desenrolar dos acontecimentos. É natural que para este resultado leve-se em conta os cuidados locais e o tratamento geral levados a uma minúcia por assim dizer excessiva. Faziamos curativos e alargamento das incisões timpânicas todas as vezes que a temperatura subia um décimo de grão acima "do habitual o que sempre coincidia com a estagnação da secreção; Albucid, Acido nicotinico, Halverin e coramina per os; Necroton e soro glicosado por via parenteral além da medicação sintomática necessária.

Em certa ocasião, o aparecimento de urobilina em excesso na urina induziu um colega a sugerir a suspensão da sulfamida, talvez na persuasão aliás justificável, de que esta fosse responsável pela perda da capacidade funcional do fígado por qualquer processo de insuficiência, concorde com a teoria entero hepática. Se bem que. pessoalmente partidário do princípio de que diante de força maior cessa a menor, julgando mesmo preferível incorrer nos riscos para o lado do fígado a arrostar com uma complicação endo-crâniana, por duas vezes suspendemos a sulfamida e por coincidência ou não, houve em conseqüência em ambas as ocasiões, aumento de temperatura e ligeira modificação do estado geral para pior.

Entretanto não se havia deixado de aplicar medicação anti-infectuosa geral (Pyoformine em uma das vezes e Propidon em outra). Desde então voltamos a aplicar os compostos azoicos sob a forma de diversos derivados dos quaes os tiazol derivados nos pareceram até o momento os mais efícazes e mais bem tolerados para a doentinha. Apesar de ter-se prolongado muito o uso da medicação o hemograma (11 Nov.) não revelou qualquer alteração hematica atribuível á sulfamida. É verdade que nunca deixamos de administrar o extrato hepático, o hormônio cortico supra renal e o acido nicotínico.

Deste modo conseguimos instituir um tratamento pré-operatório, apesar de que em certas ocasiões experimentássemos a tenue esperança de uma cura mais fácil.

Mas em breve sobrevêm nova crise súbita com inapetência, inquietação, insônia além de repentinos sinais de debilitamento e prostração, traduzidos por adinamia e "afundamento dos olhos". Não houve alteração na temperatura que se mantinha em 37, graus, mas era evidente a toxemia. Já neste dia, ao exame otoscopico, o estilete atingiu um pequeno foco de cárie óssea de localização epi-timpanal em O. E. Achamos que não havia mais tempo a esperar e indicamos a intervenção de urgência que foi aceita, embora com certa relutância.

A mastoidectomia esquerda realizada em 18 de Setembro nós trouxe a revelação de extenso processo de osteite de toda a zona antral e sub-antral que nos levou a descobrir a meninge ao nível do teto do antro. Havia destruição e infiltração do osso, acinzentado e carcomido em certos pontos e tão amolecido em outros, que a pinça goiva o desprendia como se tratasse de camada de papelão amolecido. O achado cirúrgico revelava que a intervenção deveria ter sido mais precoce, se bem que não estejamos certos de que a doentinha houvesse resistido a intervenção, sem o cuidadoso pré-operatório instituído. A operação que foi assistida pelos Drs. Demostenes Vinhaes e Rosa O. Dias da Silva transcorreu normalmente e os dias subseqüentes marcaram o período mais satisfatório que tínhamos presenciado até então. Ao quarto dia da intervenção, a febre cedera completamente e pela primeira vez a doentinha dormia tranqüilamente. Por outro lado o outro ouvido permanecia sem novidade apesar de que sob curativos e vigilância diária. Houve um momento em que chegamos a pensar em que a cura chegava a se esboçar. Apesar disto nem por um dia descuramos do tratamento anti-infectuoso e especifico (acetylarsan infantil).

Obtendo alta da Casa de Saúde no dia 24/Set. já no dia seguinte a temperatura voltava a atingir 37 graus e o exame otoscopico revelava a 27/Set. uma fistula localizada no fundo do conduto O. D. ao nível da parede postero superior. Não é sem razão lembrar as dificuldades de um exame otoscopico, em criancinha já esgotada por tantos curativos e tratamentos anteriores. É claro que isto se fazia cada vez mais difícil uma vez que a indocilidade aumentava diariamente.

Desde então, a temperatura foi aumentando gradualmente para atingir ao máximo de 37,8 no dia 28/Set. quando a inapetência voltou a se acentuar, reaparecendo a intranqüilidade e a insônia. Passou muito mal a noite do dia 30/Set, vomitou duas vezes e a inapetência tornou-se quase absoluta (260 gramas de Lactogeno em 24 horas). No dia seguinte, 1.°/Out. o estado geral era alarmante. Perdera 75 gramas em 3 dias não obstante o uso diário de altas doses de, soro. Resolvi operá-la de mastoidectomia direita neste mesmo dia. Esta operação - que foi assistida pelos Drs. Demostenes Vinhaes, Helio Araújo, Rosa O. D. Silva e eficazmente auxiliada pelo Dr. Almiro Vinhaes, - revelou um osso cinzento azulado com amolecimento e infiltração serosa, além de raias azuladas, que partindo da mastóide se estendiam ao parietal. Curetamos cuidadosamente as zonas lesadas e nos estendemos até a raiz do zigoma seguindo extenso foco de osteite. Tanto esta como a intervenção anterior, foram feitas sob narcose pelo clorofórmio a cargo do Dr. A. Viana. O pós-operatório foi desta vez bem sério. Sobreveio uma grave crise de hipertermia que só foi debelada ás custas de cuidados muito oportunos. O estado geral muito debilitado requeria exaustivos cuidados e a temperatura que vinha cedendo aos poucos teve nova alta no 5.° dia da intervenção. O exame de urina acusa abundantes piocitos o que foi debelado com o uso de buco vacina.

Mas de novo no dia 10/Set. instalava-se um processo septicemico que durou 5 dias cedendo somente no dia 16/Out. Além de passar mal as noites, havia surgido uma tumefação edematosa um pouco atrás da escama do temporal na sua junção com o occipital e posteriormente um novo entumescimento, este mais extenso, ao nível da protuberância occipital externa, enquanto mais dois outros surgiam posteriormente á esquerda e á direita nos dois parietaes. Estes dois últimos focos tomaram maior desenvolvimento que os anteriores, de sorte a se apresentarem salientes, com um ponto de rubefação que em certas épocas aparentava marchar para uma breve exteriorização. Nesta ocasião como em outras equivalentes, a secreção das feridas operatórias aumentava extraordinariamente e apresentava-se de coloração esverdeada e grumosa. Contudo os focos assinalados nada mais pareciam que abscessos sub-periósteos absolutamente independentes dos focos mastoideanos. E isto justamente nos advertia da ocorrência de nova osteopatia que se apresentava com todos os sinais clínicos habituais as suas formas sub-agudas e de cuja aparição eu chegara a recear, ao verificar as lesões durante a mastoidectomia direita. Este receio que se desvanecera a principio, voltava nesta outra ocasião sob a forma de certeza.

Durante semanas prosseguido a evolução com surtos febris mais ou menos elevados ou um estado sub febril.

Cerca de um mês depois sobrevêm nova fase de adinamia com sudorese excessiva á noite, perda de 300 gramas de peso em uma semana e nova elevação maior da temperatura. É que novamente se mostravam salientes os entumescimentos dos parietaes e protuberância occipital externa, com ponto acuminado no foco parietal direito, ao mesmo tempo que de novo aumentava a secreção das feridas operatórias, apesar de transcorridos já 6 e 8 semanas respectivamente, da mastoidectomia direita e esquerda.

A situação entrou em nova fase de declínio que durou de 12 a 18 de Novembro quando a doentinha atingida pela primeira vez a 7 kg 900 de peso. Surge a seguir um ligeiro recrudescimento de 19 a 23 Nov com 37 graus de temperatura máxima e peso estacionário (3 kg 900). Seguiu-se mais longa fase de melhoria não só do estado geral como das feridas operatórias, uma das quasi cicatrizou nesta ocasião sob curativos secos. Somente em Dezembro a ferida operatória da mastóide direito veio a cicatrizar também. Reconheço ser muito cedo para falar em cura definitiva uma vez que apesar de tudo, decorridos mais 3 meses, ainda se mantêm perceptíveis os três principais focos ósseos isolados em diferentes regiões do crânio, apesar de que bem mais reduzido em volume e extensão. Lamentamos que o isolamento dos germes e que os controles radiográficos não se tenham feito por inexistência de meios materiais.

Também um espaço de tempo maior de três meses necessários para que a osteopatia se revele aos Raios X, ainda não chegou a ser atingido.

Mas todo o quadro clinico descrito liga-se clinicamente a um processo de osteomielite dos ossos do crânio de etiologia imprecisa, mas de certo que conseqüente a um processo septicemico evoluindo benignamente. Neste caso não padece duvida de que a propagação se processou por via venosa por mecânismo metastatico sobrevindo após intervenção cirúrgica, sobre lesões ósseas já muito comprometidas por processo de osteite, que em ossos chatos não possibilita diferenciação com o processo de osteomielite.

Não é demais ressaltar mais uma vez que os focos dos dois parietaes e do occipital surgiram justamente em pleno período septicemico e tiveram um recrudescimento cerca de 5 semanas mais tarde (5 á 11 Nov.) por ocasião de um segundo período septicemico com mau estado geral e aumento da secreção das feridas operatórias. Nesta última ocasião chegamos a recear um desenlace fatal. Não podemos precisar se a grande quantidade de muco que descia pelas narinas e parede posterior da faringe alguns dias depois, resultava da drenagem pela faringe de algum foco ósseo. O fato é que logo depois tudo pareceu normalizar-se. Não ha dúvida de que verificou-se neste nosso caso a seqüência mastoidectomia - septicemia - osteomielite.

Repito que a ausência de febre ha quasi um mês a cicatrização das feridas cirúrgicas e o magnífico estado geral levam-nos a crer que a cura esteja estabelecida, mas não seria de surpreender se os focos sofressem novo surto agudo que restabelecesse os quadros anteriormente descritos ou mesmo acarretassem complicações a recear. Mas é provável que as barreiras de defesa orgânica já tenham tido tempo para se estabelecer durante estes seis meses de árduos embates. Já agora o estado geral da doentinha é mais que satisfatório. O seu peso ultrapassou de 8 kg. 800 e a sua vivacidade e apetite são sem exagero, verdadeiramente surpreendentes. Apesar de tudo, quero me penitenciar do erro que incorri sob a preocupação de operar sob as melhores condições gerais possíveis, por parte da doentinha. Deste modo procurei restabelecer o estado geral da doentinha durante 6 semanas, o que consegui; se bem que reconheça que também poderia não tê-lo conseguido. Se por um lado é verdade que esse tempo nos foi útil pelas verificações clínicas conseguidas e pelo cuidadoso pré-operatório, por outro lado as lesões encontradas no ato cirúrgico, já nos pareceram demasiadamente extensas.

Ao que parece, a ação da sulfamida retardou a evolução do processo ósseo sem ter conseguido nada no que se refere a infecção mastoideana propriamente dita, na qual a cirurgia salvou no último momento, uma situação já bastante crítica. Por outra parte, também neste caso observamos o fracasso da sulfamida local. Durante os primeiros dias da aplicação do Anaseptil Peritoneal nas supurações das feridas operatórias, conseguimos uma incrível diminuição da secreção. Entretanto a secreção voltou a aumentar progressivamente nos dias subseqüentes. A aplicação do produto foi suspensa e a cicatrização se processou muito tempo depois sob simples curativos secos. Talvez que outro fosse o resultado no caso de que a sulfamida local fosse aplicada em ferida operatória de outra natureza que não mastoidite complicada de osteomielite; uma vez que recentemente o valor da sulfamida local nos ferimentos cirurgicos ou acidentais do crânio foi posto em evidência por J. Almeida Rebouças e nós mesmos logo depois, tivemos ocasião de verificá-lo em nossa clínica.

Durante a última fase da moléstia relativa ao mês de Dezembro a terapêutica baseou-se em Sterogyl, Ostelin, Necroton e Rubiazol que substitui a Tiazamida. Desde a cicatrização da ferida operatória direita o peso da doentinha vem aumentando de 250 gramas em média mensal e desde então a cura parece consolidada.

Este resultado vem confirmar noções ainda discutíveis no que se refere aos assuntos em foco. Estas noções se referem; a que a ausência de perfuração expontânea da membrana em otites latentes e a deficiente drenagem ocasionam as mais sérias complicações; a que a osteomielite séptica de origem ótica não obstante ser mais rara é entretanto menos grave do que a consecutiva a sinusites frontais; e finalmente a que a osteomielite é bastante grave no lactente.


Observação:

Menina S. B. V., de 9 meses de idade. Quanto aos antecedentes de família ha que notar um grave processo, de osteite maxilar da progenitora durante o período de gestação. Sobre os antecedentes pessoais ha que referir vômitos rebeldes no 1 mês de vida e uma insônia muito constante ao 6 meses de idade, ao ponto da progenitora dizer que a criança "não dormia"; além de que desde os primeiros meses de vida, tinha a tendência de evitar apoiar os ouvidos, mesmo que fosse em travesseiros. Quando em repouso, procurava muitas vezes apoiar a testa, tomando então uma postura aproximada da chamada "prece mahometana". Por duas ou três vezes teve crises de inquietação e choro, durante as quais levava as mãos às orelhas. Em uma destas vezes teve vômitos e diarréia. Tudo parecia voltar a normalidade no intervalo destas crises. Além disto, desde que nasceu tem "placas brancas nas amigdalas".

Doença atual:

6 de Agosto - Fomos chamados a ver a doentinha que desde 17 de Julho "tem muita febre e chora incessantemente ha 24 horas sem conciliar o sono e sem poder apoiar a cabeça sobre o travesseiro".

Oto-faringoscopia: - Hiperemia das amígdalas palatinas e hipertrofia do tecido linfóide da parede posterior da faringe.

Rinoscopia ant.: - Catarro mucoide em ambas as fossas nasais.

Otoscopia A O: - Tímpanos cinza avermelhados. Não ha reação mastoideana evidente.

Exame geral: - Temp. 37,8. Grande prostração. Poli-micro ademia cervical. Estigmas de lues.

Dia 7 de Ag. - Paracentése dupla de que resultou a saída de muco pús em A. O. Albucid Coramina.

Dia 8 de Ag. - Curativo. Boa drenagem em A. O. Estado geral melhor. Temp. 37,2.

Dia 10 de Ag. - Tímpano direito congestionado e drenando mal. Temp. 37,3. Alarguei a incisão da paracentese. Às 11 horas a temp. descia a 36,8. Peso 7, kg. 100.

11 Ag. a 15 Set. - Teve dois surtos febris atribuiveis a pielite. Entretanto verificou-se favorável reação para o estado geral. A temperatura atingia de 37,1 a 37,2 entre às 8 e 10 horas e das 16 às 20 horas. Nos intervalos, apirexia.

Dia 16 de Set. - Ligeira queda do estado geral. Curetagem das adenoides.

Dia 17 de Set. - Grande prostração à tarde. Inapetencia, insônia. Cárie óssea de localização epitimpanal em O. E.

Dia 18 de Set. - Estado geral muito mau. Abatimento. Inapetencia ainda maior (420 gramas de Lactogeno em 24 horas). Operada na Mastoide Esquerda, sob narcose pelo cloroformio. Osso acinzentado e carcomido por processo de osteite das zonas antral e sub-antral. Descoberta da meninge ao nível do teto do antro. Grande infiltração e amolecimento do osso que se desprendia à pinça goiva, como papelão amolecido. Assistiram a operação os drs. Demostenes Vinhais e Rosa O. D. da Silva. Ótima narcose pelo cloroformio (Dr. A. Vianna).

De 18 a 24 Set. - Ótima seqüência operatoria. Bom estado geral. Alimentação melhor (850 gr. de Lactogeno) e dorme tranquilamente. Alta da Casa de Saúde.

26 de Setembro - Fístula do conduto em O. D. Inapetencia.

27 a 30 de Set. - Inapetencia cada vez maior (260 gramas de Lactogeno em 24 horas). Insônia quasi absoluta. Vomitou 3 vezes durante a noite. Prostração.

1 de Outubro - Perdeu 75 gramas em 3 dias não obstante tomar altas doses de sóro. Estado geral bem precário.

Operada da Mastoide Direita sob anestesia pela cloroformio. O osso apresenta amolecimento difuso e infiltração serosa, além de raias azuladas que partindo da mastoide se extendem ao parietal. Curetagem de todo o foco até a raiz do zigoma que também está atingida. Assistiram a operação: Drs. Demostenes Vinhaes, Helio Araujo e Rosa O. D. Silva. O dr. Almiro Vinhaes auxiliou a operação.

2 de Outubro - Grave crise de hipertermia debelado as custas de oportunos cuidados.

5 a 8 de Out. - Temp. 38 gráus. Exame de urina: abundantes piocitos.

9 de outubro - Temp. 37 gráus. Tudo bem melhor.

10 a 16 de Out. - Curva térmica de septicemia. Tumefação edematosa ao nível da junção entre a escama do temporal e o occipital, lado direito. A secreção das feridas operatórias aumentou consideravelmente.

17 de Outubro - A temperatura baixou a 37,1. Tumefação à esquerda e à direita nos dois parietais. Continua abundante a secreção das feridas operatórias, principalmente a direita.

20 Out. a 4 Nov. - Passando relativamente bem. Alta da Casa de Saude. Muito apetite (1770 gramas de Lactogeno). Caldo de carne. Peso 7.900.

5 a 11 de Nov. - Sudorése noturna. Temperatura alta (38 gráus). Certo abatimento. Abaulamento dos focos dos parietais havendo um ponto acuminado edematoso no parietal direito.

12 a 18 de Nov. - Passando bem. Peso 7,900. A contagem global e específica apenas revela ligeira leucocitose. Está com abundante corrimento nasal de consistencia bem viscosa, de tipo mucoide. Tosse. Exame da urina normal. Peso estacionario. Ap. resp. normal.

24 a 30 de Nov. - Bom estado geral. Apirexia. Peso 8,050. A ferida da mastóide esquerda já cicatrizou.

1 a 15 Dez. - Estado geral melhor. Alimenta-se bem mas ainda um dia ou outro a temperatura atinge 37 gráus quasi sempre entre às 7 e 8 horas da manhã.

16 a 31 de Dez. - Sem febre. Otimo estado geral. Cicatrizou também a ferida operatória à direita. Peso 8,550.9 Teve breve resfriado com temperatura de 39,8 no dia 21 de Dezembro.

1 a 10 de Jan. - Estado geral plenamente satisfatório. Processou-se a resolução dos focos dos parietais e occipital que todavia ainda são perceptíveis.

Dorme e alimenta-se muito bem. Peso 8,800.

Alta clinicamente curada.




(*) - Comunicação apresentada à Sociedade de Medicina e Cirurgia de Ilhéus e à Sociedade Medica dos Hospitais de Ilhéus, durante o 2.o semestre de 1942.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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