ISSN 1806-9312  
Sábado, 23 de Novembro de 2024
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889 - Vol. 11 / Edição 3 / Período: Maio - Junho de 1943
Seção: Notas Clínicas Páginas: 253 a 258
ABSCESSO DO CEREBELO, REAÇÃO MENINGEA INTENSA. (1)
Autor(es):
ANTONIO LEÃO VELLOSO (2)

OBSERVAÇÃO CLÍNICA

Em 10 de Setembro do ano passado compareceu à consulta do ambulatório de Oto-rino-laringologia da Policlínica de Botafogo um rapaz de 15 anos, pardo, cuja anamnese verificou o seguinte: adoecera havia 8 dias com dor no ouvido esquerdo seguida de purgação; o ouvido direito também apresentava corrimento. O paciente tivera purgação de ambos os ouvidos aos 2 anos de idade e desde então, a não ser pequena diminuição da acuidade auditiva, nada sentira. Treze anos de treguas seriam demais para que a segunda otite fosse subordinada à primeira. Trata-se assim de uma otopatia recente e aguda.

O exame feito pelo Dr. Alfredo Nogueira Carrijo, revelou secreção fétida de ambos os condutos, havendo imagem timpânica deformada à direita, com perfuração pouco visível; no tímpano esquerdo pequena perfuração antero-inferior. Prescrito o tratamento habitual nestes casos.

Em 14 de Setembro, decorridos 4 dias de sua matrícula, apresenta-se o paciente acompanhado de sua mãe, sofrega e solicita, dizendo que peorára muito, pois acusava desde a vespera violenta cefaléia com febre. Vimo-lo com 38,5 de temperatura, profundamente abatido, em estado de obnubilação mental, sendo difícil arrancar-lhe uma resposta às perguntas habituais. Acusava além de cefaléia espontânea, violenta e gravitatica, dor à pressão da mastóide esquerda: Dominava a cena clínica a marcha titubeante, ebriosa do rapaz, ao entrar na sala da consulta acompanhado pela sua mãe que o sustinha, como podia, por um dos braços.

O exame a que procedi revelou rigidez da nuca sem Kernig (constitue a presença da rigidez da nuca sem concomitância do Kernig o sinal de Brock, dado como expressão de abscesso cerebelar) ; ligeiro nistagmo sobretudo quando dirigia o olhar para a esquerda; queda também para a esquerda, manifestada na sua marcha titubeante. Quando fazia, com ambas as mãos, movimento rápidos, sucessivos e alternados, denotava-se dificuldade na mão esquerda, cuja cinética era desgraciosa e se arrastava, lenta e imperfeita (adiadococinesia) ; o estado do paciente não permitiu as habituais provas vestibulares, mas o desvio da indicação, pesquisado, se fazia para a esquerda, na mão esquerda. Nesse mesmo dia foi feita a punção occipital, dando saída a líquido bastante turvo que facilmente se escoava pela agulha. O doente fizera já uma radiografia com o seguinte resultado: discreta diminuição de permeabilidade da mastóide esquerda. Esta noite,passou mal com intensa cefaléia que lhe fazia arrancar gritos pungentes, daqueles a que, desde Coindet, se reservou o epiteto de hidrencefalicos.

A 15 de Setembro, recebi o resultado do exame do liquor. Acusava intensa pleiocitose, com 250 polinucleares por mm3. Diante desse exame, em um doente com rigidez da nuca, impunha-se o diagnóstico de meningite. Essa meningite evoluía, porém, com outros sinais clínicos (adiadococinesia, nistagmo, desvio, marcha titubeante) que reclamavam para o caso o diagnostico de abscesso cerebelar.

A localização cerebelar foi seguramente feita com a revelação de 3 sinais: adiadococinesia, marcha titubeante, e desharmonia vestibular.

1 - A adiadococinesia se reduzia a menor agilidade com que a mão esquerda acompanhava a direita, na prova que consiste em "faire les marionettes" designada aqui em francês, pois que para a mesma nem o doutor professor Antonio Austresegilo, neurologo e escritor dos mais ilustres, encontrou tradução.

2 - Marcha titubeante ou titubeação. O nosso doente caminhava com insegurança, como criança ao dar os primeiros passos ou como um ébrio ao fazê-lo sob os vapores do álcool. Ora a "titubeação, - no dizer do grande Pierre-Marfe - (La Pratique Neurologique) é a manifestação capital de um conjunto sintomático a que se poderia chamar sindrome cerebelar de Duchenne". É também o que ensina o professor Aloysio de Castro na Semiotica Nervosa: "Do conjunto de sintomas que formam a síndroma cerebelar a titubeação é, quanto á diagnose, o elemento de maior monta". Essa titubeação era acompanhada de uma inclinação do corpo e tendência á queda para a esquerda (lado doente), sem que a oclusão dos olhos agravasse esse sinal, o que está de acordo com a comprovação das autoridades, as quais ensinam que o "sinal de Romberg não existe nas lesões puras do cerebelo (Pierre Marie)", "que a função visual não intervém sobre os fenômenos da incoordenação motora cerebelar (Aloysio de Castro) ".

A ausência do Romberg junta á falta da vertigem, á direção e pouca intensidade do nistagmo me levaram a excluir a participação do labirinto.

3 - Desharmonia vestibular.

O nosso doente, como já disse apresenta:

a) nistagmo dirigido para a esquerda, lado da lesão.
b) queda e desvio também dirigidos para o mesmo lado.

Como é de conhecimento geral o nistagmo, cuja direção é convencionalmente dada pela sua componente rápida, bate para o lado oposto aquele em que se verifica o desvio segmentar do corpo e a queda, que se faz no sentido da componente lenta do nistagmo. Si tomarmos, porém, em consideração a componente lenta do nistagmo, a única de origem vestibular, veremos que ela acompanha a direção do desvio e da queda. Esse fenômeno: componente lenta do nistagmo, desvio e queda para o mesmo lado caracterisa a harmonia vestibular. O professor J. A. Barré, em 1926, surpreendeu um distúrbio particular das reações vestibulares, em indivíduos portadores de abscesso ou tumor do cerebelo. Chamou-o desharmonia vestibular e assim definiu o seu sindromo "Em oposição ao sindromo vestibular harmonioso, caracterisado pela mesma direção de todos seus movimentos lentos (componente lenta do nistagmo, desvio do corpo e dos braços estendidos), o sindromo vestibular desharmonioso é aquele em que nem todas as componentes lentas têm a mesma direção". Essa desharmonia pode-se verificar entre o nistagmo de um lado, a queda e o desvio de outro; mais pode-se verificar apenas entre a queda e o desvio. Como é do conhecimento de quantos estudam otologia, Neumann já havia descrito a inversão do sentido do nistagmo tomando como índice a componente rápida e considerando essa inversão característica das afecções do cerebelo, conceito mais tarde estendido a todo o eixo bulbo-protuberancial por Marburg e Leidler. Esse nistagmo homolateral componente rápido batendo para o lado doente sucedendo ao nistagmo contralateral dos labirínticos é mesmo considerado pelos otologistas como o melhor sinal de um abscesso otogênico do cerebelo. Neumann, descrevendo-o de primeira mão, atribuiu-o á compressão do centro vestibular e do bulbo. Barré veio mostrar que essa inversão do nistagmo, tornando heterolaterais os fenômenos vestibulares puros, constitue um sindromo peculiar aos tumores e abscessos da fossa cerebral posterior, chamando-o desharmonia vestibular 4 sindromo vestibular harmonioso se caracteriza pela mesma direção de todos os movimentos reacionais lentos: componente lenta do nistagmo desvio do corpo e dos braços distendidos na prova da indicação. "Sendo a componente lenta - escreve Abel Charbonnel discípulo de Barré - o legítimo abalo vestibular, e tendo: ela, ao contrário da componente rápida, a mesma direção dos demais desvios labirínticos, compreende-se que a tal sindromo se chame harmonioso. Em oposição a esse tipo clássico o Professor Barré, de Strasburg, criou o sindromo desharmonioso, que caracterisa a diversidade, a desharmonia entre a direção de duas ou mais das componentes reacionais lentas. Praticamente, porem, como a componente rápida ao contrario da lenta, é de verificação mais fácil, o que elevou o seu valor semiótico, considera-se a desharmonia vestibular quando o nistagmo tem a mesma direção do movimento dos braços estendidos em indicação ou se faz na mesma direção do Romberg, quando presente este, ou na mesma direção de braços e Romberg juntos. Há assim diversas combinações possíveis do sindromo desharmonioso.

Ao descrever esse fenômeno deu-lhe o Professor Barré o valor de um sinal cerebelar porque tanto ao operar quanto ao autopsiar indivíduos que o apresentavam, verificou neles lesões cerebelosas, pelo que concluiu que, quando o sindromo vestibular se apresenta desharmonioso é por encontrar-se lesado o cerebelo. Qualquer que seja o mecanismo desse sindromo: vestibular como sustentaram Ramadier e Caussé no Congresso de Nice de 1935, divergindo de Barré no relatório que apresentaram juntamente com ele e com A. Thomas e Velter, sobre os abscessos cerebelares ; ou cerebelar, como admite Barré, o certo é que ele merece ocupar, como sustenta Abel Charbonnel, ao lado dos sinais de Babinski e de André Thomas, um lugar na semiologia do cerebelo. No conceito dos que o estudaram ao pleitear em 1938 o prêmio Chauvin da Sociedade de Oto-Neuro-Oftalmologia, ele é sintomático de um processo da fossa cerebral posterior. Isaac Alfandry, um deles conclue:

1.º o sindromo vestibular puro é sempre harmonioso, seja central ou periférica a lesão. 2.° o sindromo vestibular torna-se desharmonioso: a) nas lesões do cerebelo. b) nas lesões bulbares. c) nas lesões pedunculares: 3.° o sindromo desharmonioso indica sempre uma lesão central da fossa cerebral posterior.

Era o que o nosso doente apresentava, suspeita -de abscesso da fossa cerebral posterior que portanto esse sinal veio transformar em certeza. Daí a importância que lhe estou dando no caso presente. Ele apresentava, repetimos: nistagmo cuja componente rápida batia para a esquerda, fazendo-se também nesse sentido a queda e o desvio segmentar.

Com o diagnóstico de otite média supurada complicada de abscesso cerebelar e meningite foi operado no dia 15 de Setembro. A cortical externa se apresentava dura porém com aspecto inflamatório na zona crivosa. Nela havia um empiema, localizado na ponta, formado por pus coletado em pequena quantidade. A cortical interna mostrava-se, num ponto destruída, a meninge exposta e descolada com lesões de paquemenigite, e denotando-se uma efração da dura, por onde saía pús abundante, grosso e fétido. Estavá-mos pois diante de um abscesso sob-durai-cerebelar do tipo descrito por Ruttin em sua observação.

Foi completada a mastoidectomia clássica, colocado um dreno e feita a medicação sulfanilamidica. Nos dias subsequentes ao da operação, manteve-se a temperatura, com purgação sempre fétida, motivo pelo qual resolvi reoperá-lo no dia 20, transformando a mastoidectomia em radical larga, com ressecção de toda a parede posterior do conduto, formação de uma ampla cavidade de esvasiamento, tipo Ramadier, sem plástica. Funcionei o cerebelo em várias posições não obtendo saída de pús além do que provem, do abscesso sub-dural, em boa drenagem. Nos dias que se seguiram a esta intervenção a temperatura foi declinando até que 7 dias depois se mantinha apiretico.

O exame do liquor, depois da segunda intervenção, acusou pleiocitose de 81,3 por m-m3, reação de Nonne positiva, Pandy e Wassermann negativas. O exame bacteriologico não revelou a presença de germens. A glicose era de 51 mmg % e os cloretos de 618 mm %.

O doente está inteiramente restabelecido.

Trouxe o caso á Academia de Medicina porque os abscessos cerebelares, sendo freqüentemente acompanhados de cortejo sintomático escasso, pareceu-me útil insistir no valor dos pequenos sinais que denunciam, quando bem pesquisados e sobretudo na desharmonia vestibular, e para mostrar ainda a importância dos sinais vestibulares, cuja análise basta para decidir a intervenção salvadora.


RESUMO


O autor relata um caso de abscesso cerebelar em rapaz com otite aguda, no qual o diagnostico foi feito por apresentar marcha titubeante, adiadococinesia frusta, e desharmonia vestibular.

A desharmonia vestibular era caracterizada por:

1.º - Nistagmo dirigido para a esquerda, lado da lesão.
2.º - Queda e desvio também para a esquerda, lado da lesão.

Si o nistagmo, cuja direção foi aferida pela sua, componente rapida, como é de praxe, se dirigia para o lado da lesão, que isso dizer que a componente lenta do mesmo nistagmo se dirigia para o lado oposto, em sentido contrário ao da queda e do desvio, e que havia portanto desharmonia vestibular, pois se considera harmonioso o sindromo em que se verifica direção unilateral da queda, do desvio e da componente lenta do nistagmo.
É esse o principal aspecto clínico da observação. Apresentava ainda o doente sinal de Brock (rigidez da nuca sem Kernig). O exame do liquor revelou intensa pleiocitose denunciando participação da meninge. O abscesso é do tipo sub-dural de Eagleton. Foi-lhe feita a mastoidectomia num primeiro tempo, transformada em radical larga do tipo Ramadier num segundo. O doente ficou bom.

SUMMARY

The author reports a case of cerebellar abcess combined with acute otitis in a youth 15 year-old. The diagnostic was affected because the patient marched in a tottering way, presented frustated adiadokokinesis and vestibular disharmony. The vestibular disharmony had these characteristics:

1.º - Nystagmus directed to the left, the lide of the lesion.
2.° - Fall and desviation also directed to the left, the side of the lesion.

If the nystagmus, whose direction was revealed by its speedy compenent, as ever observed, went the side of lesion, this meant that the slow compenent of the same nystagmus was going to the opposite direction, contrary to that of the fall and desviation, showing, therefore, the existence, of a vestibular disharmony, for one considers harmonious the sindromy in which the unilateral direction of the fall, of de desviation, and the slow compenent of the nystagmus are verified.

This is the main aspect of the clinic observation. The patient also presented the Brock's signal (rigidity of the nape without Kernig). On being examined the liquor revealed an intense pleiocitose, denouncing meninge participation. The abcess was of the sub-durai type according to. Eagleton's classification. A mastoidectomy was aplied in the first time, transformed in second in a broad radical of Ramadier's type. The pacient was cured.




(1) Trabalho apresentado á Academia Nacional de Medicina. Recebido pela Redação em 19/6/43.
(2) Da Academia Nacional de Medicina - Docente da Universidade do Brasil - Chefe de clínica da Policlínica de Botafogo
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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