ISSN 1806-9312  
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870 - Vol. 11 / Edição 1 / Período: Janeiro - Fevereiro de 1943
Seção: Trabalhos Originais Páginas: 05 a 16
OTITE MEDIA E SUAS COMPLICAÇÕES NO DIABETICO
Autor(es):
FRANCISCO DE PAULA PINTO HARTUNG

S. Paulo

Otite, mastoidite, labirintite e meningite. Eis uma evolução clinica tormentosa e dramatica, interessante de conhecer-se. Em algumas minucias mesmo, porque mais de um, de seus aspetos, foge ao vulgar e justifica a sua apresentação.

O suceder dos acontecimentos patologicos, primeiro. Via de regra, as mastoidites puras, uma vez operadas, curam-se. O seu prognostico, salvo imprevistos, é em geral bom, e quando não, já haveria fatores máus antes da operação. Eis aí um primeiro confronto de interesse, pois que o nosso caso, mesmo surpreendido ainda em otite e precocemente, e apezar das medidas médicas e cirurgicas, tomadas como veremos a tempo e a hora, não conseguimos, todavia, evitar que o processo patologico se irradiasse para a mastoide, comprometesse um tanto o labirinto e fizesse perigar seriamente a vida de fim doente, quando culminou em uma meningite purulenta.

Depois, a contingencia do diabetis e em um individuo moço, proporcionando as cambiantes de côres que se foram sucedendo no quadro clinico e provocando preocupações e sobresaltos, não obstante a garantia terapéutica oferecida pela insulina que leva autoridades a considerarem o diabetico de hoje como um doente egual aos outros em face à cirurgia. Em realidade, é incontestavel que o uso do hormonio pancreatico aliviou extraordinariamente a situação desses doentes nas ultimas duas decadas. Cumpre, porem, não esquecer que o restabelecimento do equilíbrio metábolico dos hidratos de carbono, si torna menos propicio ou fecundo o meio organico para a proliferação de germens que haja em atividade, em nada interfere na intimidade da sua biologia em condições que presumamos normalisadas. Eis porque, à atenção cirurgica comum, que deveriamos emprestar a taes casos, deveríamos juntar um alerta necessario contra um eventual desvio na combustão dos glicidios, por imponderavel que fosse, mas que prontamente se refletiria na virulencia e agressividade microbianas.
Um exemplo flagrante é contido na presente.

OBSERVAÇÃO:

F. J. C., branco, brasileiro, 35 anos de edade, residente em S. Paulo. Entre os seus antecedentes pessoaes, na anamnese, domina o fato de ser diabético. De notar tambem que ha 22 anos, tal como agora, fôra acometido de uma mastoidite, a direita, sendo operado pelo saudoso Professor Lindenberg, que por nós foi assistido. Cura radical.

A 14 de Abril do ano corrente, estando em Santos, em viagem de nupcias, teve a sua lua de mel melancolicamente interrompida, apenas dois dias depois do casamento.

Resfriára-se fortemente, aparecendo intensas dôres no ouvido esquerdo, do qual jamais padecera. Volta incontinenti a S. Paulo. Procura-nos. Diz que a dôr é tão forte que tem desafiado os analgésicos; não se limita ela propriamente ao ouvido, pois que se irradia para as regiões temporal e occipital. Tinha tido febre.

A inspeção, nada se nóta no ouvido externo, mas a mastoide é dolorosa à pressão.
Otoscopicamente se compreende a violencia das dôres, tão intensa é a congestão do timpano e manifesto o abaulamento.

Paracentese com Bonain. Isto a 16, dia e meio depois do inicio da dôr. Algumas horas mais, e já é profuso o corrimento de pús. Além de recomendado tratamento antiflogistico, é administrada a tiazamida. A glicemia então dosada aproxima-se de 1,9 gramas. Para orientar-se com segurança o tratamento antidiabetico, é o doente enviado a um clinico experimentado em moléstias de nutrição.

Com a paracentese e aplicações quentes, rapidamente diminuem as dôres. O mesmo não acontece entretanto em relação ao corrimento. No começo, era francamente purulento; dias depois, porém tomou um aspecto mucoso, dando a ilusão de melhora, para depois voltar ao seu tom bem amarelo. Por isso, foi a mastoide radiografada, demonstrando-se certa opacidade, mas sem destruição trabecular. Continuou-se pois, alguns dias mais com o tratamento conservador, pois que o doente não se queixava de dores, mesmo à pressão e não tinha febre. Dias depois, porem, com 5 semanas de molestia, como continuasse máu o aspeto do corrimento além da sua abundancia; uma vez bem insulinisado o doente pelo clinico, resolvemos trepanar. Operação sem interesse de detalhes, demonstrando-se que já era grande a fusão trabecular e celular. Procedeu-se a uma rigorosa curetagem, aliás muito facil pela friabilidade do osso. Muito pús e muita granulação. Paredes das fossas cerebraes e sinusal normais. Uma vez estabelecida folgada comunicação com o antro, foi a ferida fechada, mas só em parte, para esperar os acontecimentos, em vista do diabetis.

Corria bem o periodo post-operatorio, não havendo quasi exsudato algum na ferida, quando repentinamente de novo se instalou algum corrimento. Ficou provado que o doente desrespeitara um pouco a dieta e as medidas terapeuticas. Enviado ao clinico, conseguiu este em parte corrigir a situação, pois que a cicatrização proseguiu com aspeto mais animador e a audição experimentou acentuada melhoria. Nesta época, nada mais se percebia da intensa congestão e pulsação do timpano, fatores que tambem influiram na trepanação, além de persistencia do exsudato.

Aqui termina o periodo inicial da molestia. Entramos em nova fase.

Já se escoara mês e meio depois do ato cirurgico, quando á sua audição, que tanto melhorara, de novo começava a cair acentuadamente. A ferida estava na iminencia de fechar-se de uma vez. O exame aos diapasões denotavam evidente deficit para os sons agudos, de modo a interpretarmos os fatos como uma nevrite do acustico de fundo diabético, recomendando todo o rigor na dieta e insulinoterapia. Entretanto, em um desses dias, sua mulher, pelo telefone, me comunica que o marido não pode vir ao consultorio porque é acometido de intensas vertigens. Em sua residencia, realmente, fomos encontrá-lo com forte nistagmo horizontal para o lado oposto e vertigens rotatorias. Queixa-se tambem de nauseas.

A prova calorica manifestou-se positiva, aumentando as vertigens e a violencia do nistagmo. Como na manhã seguinte se tivessem acentuado os sintomas e o doente se queixasse de alguma cefaléa, resolvemos desafogar um pouco o campo operatorio. Ampliando a incisão que já estava quasi fechada, com uma careta pequena fomos até o antro. Incontestavelmente tal conduta deu algum resultado, por que tanto a vertigem como o nistagmo quasi desapareceram com celeridade. A labirintite serosa que se instalara, regredira com a hemorragia que se produziu pela pequena curetagem feita.

Finalmente, a terceira e ultima etapa. A fase grave, quando deflagrou a meninigite.

Os fenomenos labirinticos, como dissemos, praticamente haviam desaparecido. Nem tonturas, nem enjôos; apenas ligeiros abalos nistagmicos em excursões incompletas dos globos oculares. Parecia resolvida completamente a situação, quando 1 mês e 20 dias depois da mastoidectomia, somos avisados de brusca alteração no quadro. O doente, que se queixara de violentas dôres de cabeça, vomita, cae em inconciencia, semicomatoso, apresenta intensa rigidez de nuca, forte excitação, risca de TROUSSEAU e sinal de KERNIG. Temperatura 39°,6. A punção lombar esclarece a violencia dos sintomas: liquido muito purulento sob pressão, no qual se evidenciam pneumococus. Sem perda de tempo é o doente operado nesta mesma tarde. Operação tipo NEUMANN. Amplia-se a trepanação, debastam-se as paredes da apofise, expondo largamente a fossa media, parte da posterior e o seio lateral.
Macroscopicamente, tanto a meninge como a parede sinusal tinham aspecto bom. Foi tudo bem recuretado e limpo. A ferida apenas foi fechada em cima com um ou dois agrafes, a espera do que houvesse.

A insulinoterapia e a dieta são rigorosamente entregues ao clinico. Ao mesmo tempo, tiasamida, em doses maximas; nos primeiros dias, 12 gramas diarias.

Em 24 horas começam a surgir melhoras; apezar da grande ecitação, tal como no instante operatorio, que não permitia qualquer tentativa de anestesia local, a temperatura já descia um pouco. 38,8. Nova punção ainda muito turva. Transfusão de 100 cc.

Na manhã seguinte, acentuam-se as melhoras. O doente já está lucido e a temperatura desceu a 36,4. Os sintomas meningeos começam a desanuviar-se. Lucidez perfeita, rigidez de nuca muito menos intensa, bem como a cefaléa.

No decorrer dos dias subsequentes, se foi consolidando a situação. A temperatura, ainda sofreu na primeira semana ligeiras oscilações entre 36,8 e 37,4. Mas depois desapareceu para sempre qualquer acesso febril. Assim também , a musculatura do pescoço, em alguns dias voltava por completo à sua motilidade. Com mais 5 ou 6 punções lombares, o liquor era já completamente claro. Continuou-se o tratamento com mais algumas transfusões.

A sulfamida foi suspensa paulatinamente, para seguir o que recomendam os classicos, e a experiência que tivemos no ano passado com outra meningite.

Afinal, teve alta o doente mês e meio depois da reoperação. Foi convalecer no Interior. Ha dias, 5 meses depois, tornámos a ve-lo Otimamente. Contou-nos que a dor-de-cabeça levou dois meses a desaparecer de todo, talvez a tiasamida. Audição do lado doente
praticamente perdida.

Eis pois, em seus detalhes, a observação que temos a honra de expôr à douta Sociedade de Otorinolaringologia do Rio de janeiro, em missão de intercambio cientifico com a Secção correspondente da Associação Paulista de Medicina, da qual fazemos parte. Que nos relevem e perdõem os colegas certa prolixidade no assunto. Prevendo porém, quanto nos seria proveitosa e instrutiva esta visita, porque bem sabemos da cultura, do tirocinio e da experiencia dos nomes que ilustram este recinto cientifico, houvemos por bens entrar em minucias e detalhes, de modo a melhor nos expormos a comentarios, refutações e ensinamentos.

De inicio, disseramos que o caso clinico fôra tormentoso e dramatico. De fato, agora compreendemos porque, desde a otite, violenta, traiçoeira e ironica a perturbar os jovens nubentes, a que depois se seguiu uma mastoidite torpida e insidiosa, sem febre, sem dôr e sem edemas, complicada posteriormente com manifestação labirintica, até a meningite pneumococica com todo o colorido do seu prognostico, tudo enfim justifica a nossa
apreciação do começo. Quanta emoção para o doente, para a jovem esposa e para o medico!

Não é de hoje que os autores classicos chamam a atenção para a gravidade das moléstias do temporal em terreno diabetico, não só por este disturbio constitucional como pelas complicações proprias, comuns na patologia otogenica.

Na era preinsulinica, estes casos assumiam aspetos verdadeirantente calamitosos.

Os autores mais antigos, como Kirchner, Wolf, Schwabach acreditavam que a gravidade dos fócos supurados no ouvido dependia somente da intensidade das perturbações metabólicas. Desconhecia-se então a concepção inversa, segundo a qual, a recíproca também é verdadeira, no sentido de que os focos fechados de infecção nos diabeticos agravavam o descontrole metabólico provocando maior intolerancia pelos assucares, arrastando rapidamente o doente para o coma.

Em 1881 Raynaud apresentou a observação de um caso surpreendente, em flagrante contraste com a evolução classica das complicações otogenicas. Demonstrou ele a coexistencia de uma supuração aguda (vae grifado) do ouvido medio e um processo de carie da apofise mastoide. Chamou a tal tipo especial OTITE . DIABÉTIQUE ou OTITIS MEDIA NECROTANS, e assim a apresentou ao Congresso de Bâle, em 1887. Este caso suscitou muita polemica e duvida sobre a verdadeira interpretação dos fatos, pois que enquanto Raynaud, em colaboração com La Carriére, Wolf, Walb e outros consíderava a lesão da mastoide como primaria e que o corrimento do ouvido medio era apenas um sintoma secundario, pois que do contrario não se poderia explicar a extensão da destruição ossea, outros insurgiram-se contra tal concatenação dos fatos. No começo, pelo menos, o proprio Koerner acompanhou o ponto de vista de Raynaud. Dez anos mais tarde, Davidson tambem abordou este assunto, e juntamente com Brieger repeliu a citada interpretação. Friedrich, que tambem entrou na polemica, assumiu uma atitude ecletica e conciliadora. Na sua monografia, aparecida em 1889, acreditava na possibilidade de existencia da Otite Diabétique, autonoma de Raynaud, mas tambem admitia que pudesse aparecer uma otite genuina, comum, em terreno diabetico. Nos anos que se sucederam, ainda Friedrich, Lannois, Witte, Sturm, Scheibe e outros continuaram a sustentar a possibilidade de existencia de uma mastoidite autónoma, em tal classe de doentes. Eulenstein em 1902, revendo 70 casos da literatura, concordava em atribuir um caracter especial a taes lesões, devido a diminuição de resistencia dos tecidos no diabetico.

De qualquer modo, até hoje a patologia do ouvido medio em tal terreno, é uma questão em aberto. Koerner, comentando o assunto diz, em apreciação geral, que não parece haver maior propensão do diabetico para as molestias do ouvido medio, apezar dos acontecimentos relatados. Basta considerar que a maior frequencia da otite, nas estatisticas geraes, não coincide com a edade diabetica, no quarto ou quinta decenio da vida.

A evolução da otite, já o dissemos, depende de dois fatores: do estado do doente em relação ao metabolismo, e da virulencia do germen em atividade. Por isso que, nos casos benignos de diabetis, nos quaes apenas se nota glicosuria, nada ha de caracteristico. As vezes, até o doente desconhece o seu estado, e a evolução da otite faz o clinico suspeitar de suas condições metabolicas. Raynaud dava importancia ao aparecimento prolongado de um exsudato sanguinolento, ao qual ele atribuia a concomitancia da arterioesclerose, que provocava extravasamento de sangue. Não parece, contudo, que o aspecto de um tal exsudato seja patognomonico da molestia, pois que ele pode aparecer tambem em otites genuinas, tal como acontece na gripe. Por outro lado, em outros casos de diabetis, assistimos a um corrimento leitoso ou amarelo, no começo e que quando se prolonga, torna-se aquoso e liquido. Foi o que aconteceu no caso apresentado.

Uma otite média sem lesão ossea é uma contingencia rara no diabetis. Por isso, compreendemos a otitis media necrotans, como a descreveu Raynaud, que se caracterisa pelo rápido comprometimento do osso e as complicações que acarreta. Antes da insulina, era um fato que se não discutia a maior tendencia a complicações por parte de taes otites. Nas estatisticas de Koerner e Kuelz por exemplo, é três vezes maior o numero de complicações para os diabeticos que para os outros. Israel faz notar que além dos fatores já enunciados para esta maior proporcionalidade, ha tambem um outro que é a menor capacidade de reabsorpção por parte de taes doentes, além de uma fraqueza da mucosa atribuida à arterioesclerose. O mesmo autor demonstrou praticamente a existencia de fócos de arterioesclerose em vasos proximos ao ouvido lesado, em dois doentes desta especie. Em geral, o processo inflamatorio compromete o osso, uma ou duas semanas depois do inicio da otite, com o aparecimento de um corrimento, profuso, fino e aquoso, não raramente fétido. É interessante notar-se que, tal como se deu na observação que apresentámos, nem sempre os sintomas subjetivos acompanham a gravidade da situação clinica. As vezes, apezar do doente pouco queixar-se, já existe um grande abcesso subperiostal, ou mesmo invasão das partes moles do pescoço, em comprometimento das suas lojas profundas, como complicações de mastoidite de Bezold. Febre, póde haver ou não. No nosso caso não havia, em todo o tempo que a molestia invadiu a mastoide. Só veio a aparecer quando a meninge foi assaltada. A fusão do osso é rapida, de modo que na operação se encontra uma grande cavidade já formada, exatamente como se deu conosco. As paredes da cavidade são de cor marron ou cinza, anemiadas, em um osso mole e friavel, de maneira que se póde operar, quasi que só com a cureta. Também se encontram sequestros que se ligam a granulaçõs descoradas. Póde haver larga exposição das meninges e do selo, fato que como na prática comum, não há razão para disso suspeitar-se clinicamente.

Nos casos favoráveis, nos quaes as perturbações metabólicas não são de muita amplitude, o.prognostico podia ser bom, mesmo nos tempos antigos, sem insulina. O contrario se dava nos casos graves, que não se influenciavam com a dieta, continuando a mesma a taxa de assucar no sangue, acompanhada de glicosuria. acetona, acido diacetico ou mesmo com perturbações nas trocas de gorduras e proteinas ; muito se tinha a temer então por taes doentes.

Hoje a situação se modificou muito, mas naquela época o aparecimento de uma otite em taes circunstancias, poderia provocar rapidamente a acidose e arrastar o doente para o coma e a morte. Em geral, adoeciam repentinamente, em seguida a um resfriado, com uma forte pontada no ouvido. Apezar de paracentese imediata, ou antes que aparecesse alguma otorrea, o doente entrava em coma, sem que houvesse tempo para que o germen atacasse o temporal.

Era a chamada otite comatosa e os doentes faleciam muito rapidamente. Todavia, si as condições do diabetico não fossem totalmente desfavoráveis, nem sempre a otite comatosa levava à morte. A propria literatura antiga prova-o. Namuyen refere-se a um menino diabetico de 8 anos, que foi atacado de violenta otite media, com manifestos e imediatos sintomas cerebraes. Realizada a paracentese, que drenou algum pús, em poucos dias o doente se restabeleceu. Tambem Friedrich cita um caso de um jovem de 14 anos que caiu em coma diabético em consequencia de otite media aguda, e que voltou a si em dois dias depois de perfuração expontanea.

Um outro ponto da observação que exige um comentario, refere-se à labirintite. Labirintite serosa, evidentemente. Justificam esse diagnostico uma rapida queda da audição, acompanhada de nauses, vertigens e a presença de nistagmo. Como não houve um desaparecimento completo da audição nem negatividade da prova calorica, devemos concluir que se deu apenas um processo seroso e nunca purulento, apezar da meningite que se seguiu ter tido este ultimo caracter. Tambem parece licito afirmar que o processo meningeo não se deu através do labirinto, como em geral acontece nas otites cronicas ou a colesteatoma.

Primeiro pelo fato mesmo de a labirintite ter sido serosa; depois, porque, no momento que se processou a invasão do endocraneo, os fenomenos labirinticos já haviam acentuadamente regredido. Assim, deve-se concluir que o fóco que atacou a meninge, situava-se na propria contextura da apofise; naturalmente em suas paredes, uma vez que ela havia sido esvasiada, e a prova está em que o arrasamento dos contornos da mastoide coadjuvado pela sulfamidoterapia, resolveu favoravelmente a situação, sem tocar-se no labirinto.

Estudando a patologia do ouvido interno em diabeticos, verifica-se que taes complicações otogenicas são muito mais frequentes do que se pensava outrora. É bem verdade que Gunter em 1886, já chamava a atenção para o fato da freqüência com que os diabéticos se queixam de ruidos e dureza de ouvido. Eulenstein, mais tarde duvidou de tal frequencia ou pelo menos que taes fatos devessem ser interpretados como oriundos no labirinto, mas na realidade nos ultimos tempos têm aparecido na literatura varios casos de afecções do ouvido interno em diabéticos. São citações de Wittmaack, Hegener, Bruehle e outros. Ha tambem uma outra, publicada por Lange em 1913, comprovando um caso de nevrite com degeneração do acústico, em diabetis melitus. Também existem outras nas quaes as fibras do acustico se apresentam atrofiadas, tanto na membrana basilar como no orgão de Corti, enquanto que a parte concernente ao ramo vestibular continua integra. Foi porém em 1915 que apareceu o estudo mais completo sobre este assunto, devido a Thomas Edgard: Verificou ele que, em um grupo de 52 doentes diabéticos, 25 se queixavam de sintomas do ouvido interno. Em quase metade deste numero, faltavam elementos para afirmar que o diabetis podesse ser disso a causa direta, embora admitisse que a perturbação metabólica podesse contribuir para que germens ou toxinas oriundos de um ponto qualquer da economia, se fixassem no nervo ou no labirinto.

As pequenas lesões do ouvido interno têm uma evolução extraordinariamente lenta. Quando é diminuita a perda de audição e os ruídos subjetivos são fracos, o paciente nem se queixa de tais sintomas.

Nos casos, porém de manifestas lesões, diz Edgard, então os acontecimentos atingem outro vulto. Segundo Egner, o aparelho vestibular póde afetar-se conjuntamente com o coclear. Lange relata uma observação deste genero em uma doente de 61 anos de edade, sem que houvesse qualquer supuração no ouvido. Ainda Edgard cita em colaboração com Alexander um caso de lesão isolada do vestibular em um diabético, cora vertigens, vómitos e outros sintomas labirinticos. Hirsch por sua vez, acusa fatos de diminuição de audição no diabético, sem que haja lesões concretas propriamente no ouvido mcdio ou labirinto, nervo se pode atribuir tal contingência .

Quanto às labirintites purulentas, mostra a literatura que elas são reais frequentes que no individuo não diabético. Apezar das grandes trepanações que sejamos obrigados a fazer, não se observam taes complicações. Há uma observação de Scheubé semelhante àquela que apresentámos, pois que a labirintite se instalou 12 semanas depois de operada a mastoide.

Este doente, porem, contrariamente ao nosso, veio a falecer de meningite e na autopsia se demonstrou a presença de uma granulação no canal semicircular frontal, que provinha provavelmente de alguma célula pneumática do rochedo .

Manasse tambem cita um caso de labirintite purulenta em um diabetico de 62 anos, na oitava semana de uma otite media aguda que atacou o labirinto pelo caracol, como se verificou post-mortem. A terapeutica recomendada pelos classicos para as fórnas leves c serosas baseia-se naturalmente em medidas de ordem geral antidiabetica, como aliás fizemos nós.

Dieta, insulina, repouso, iodo. Quanto às formas purulentas, contra as quaes a unica solução seria a cirurgia, não encontrámos alusão alguma na literatura sobre o assunto. No nosso caso, a labirintite seria serosa, porque dissemos que havia restos de audição e positividade à prova calorica. Por isso, nem um instante abordamos a hipotese de tocar-se no labirinto. Ficou-nos porém a impressão de alue a idéa de que o novo desafogamento e recuretagem do antro foram profícuos. porque, corno se lê na observação, os fenomenos labirínticos regrediram incontinenti. Possivelmente a hemorragia provocada pela recuretagem, e a remoção de alguma granulação excessivamente exuberante, tenham modificado favoravelmente a circulação, reduzindo ou desaparecendo o edema e derrame seroso intralabirintico.

O capitulo propriamente referente às meningites no diabetico, que pela sua importancia exigiria bastante desenvolvimento, surpreende a quem compulsa a literatura pela sua pobreza. Salvo uma ou duas observações nas quais acidentalmente a meningite é citada, nada encontramos de interesse, pelo menos na literatura de nossa especialidade.

O problema da cirurgia no diabetico, agora. Para esse estudo, é fundamental uma nitida divisão de épocas, porque não se podem comparar os tempos preinsulinicos com os dias de hoje, uma vez que o hormonio pancreatico e a sua vulgarização relegaram a literatura antiga sobre o assunto para um plano de valor apenas histórico, despido de qualquer significado pratico. Todavia para não sacrificar a harmonia do nosso estudo, já que consultámos o que disseram os antigos classicos sobre outros aspectos historicos do problema, apenas relembraremos que nos tempos idos, a indicação operatoria nos diabeticos foi sempre motivo de divergencia, não só entre os clínicos, como nos ambientes cirurgicos. A narcose, responsável pelo coma , a todos apavorava. Assim pensavam Richard, Le Murchadour e outros; Labet Baston.citava 5 casos fataes; Von Olckicks 6, sendo que 4 só morreram dias depois da operação. Von Becker, revendo este assunto demonstrara que o coma podia instalar-se 1 a 2 dias depois do ato cirurgico, seguindo-se mesmo a um período de enganadora euforia.

Já naquele tempo se percebia que não era de muita importância a espécie de anestesia. Havia perigo em todas, mas se atribuia mais nocividade ao cloroformio do que ao eter. Entretanto, muitas vezes não se podia fugir aos anestésicos, porque afinal, do coma poderia o doente voltar, mas não de certas emergências cirurgicas. Nem foi outra a nossa situação quanto ao nosso caso. Era tal a excitação do doente que mesmo a punção lombar só foi possível em narcose, tornando impraticavel qualquer tentativa local.

Depois da insulina, tudo mudou, em nossa especialidade como em qualquer outro sector de medicina ou cirurgia. Scheibe e Schlitter chegam a afirmar que não percebem maiores perigos em otites medias de diabéticos de que em outros pacientes. Erro e exagero, que ninguém aceitaria, pois que a pratica prova o contrario.

Em magnifico estudo ele conjunto elaborado sobre o problema da cirurgia no diabetis, o Professor Helion Póvoa, a quem pedimos venia, depois de focalisar com admiravel nitidez, varios dos aspectos do problema, comentando as eventualidades que se apresentam, diz "tanto nas intervenções cirurgicas em diabéticos, como operações que complicam o proprio diabetis, duas eventualidades clinicas podem-se verificar: encontrarem-se ou não os doentes em estado de equilíbrio metabólico . É óbvio que se o paciente se encontrar em condição -maxima de descompensação, ecepção feita para condições de grande ecepcionalidade clinica, ha que salvar primeiro o paciente do coma, afim de facultar base firme ao ato operatorio". Mais adeante, porém, continua o Professor: "outra classe de doentes constitue um problema da maior importancia clinica pela urgencia inadiavel da indicação operatoria. São aqueles em que não tinha tempo a perder. Devem ser operados, sobretudo porque não podem deixar de ser operados, taes como apendicite superaguda, perfurações etc. Nesses casos, si ha perigo da operação, a não operação é sempre fatal."

A esta ultima contingencia tão bem definida pelo Professor Helion Pôvoa, devemos amoldar o nosso caso. " Doentes que devem ser operados, sobretudo porque não podem deixar de ser operados." Como se viu, a observação concretiza bem a idéa quasi axiomatica do enunciado.

Diabetico, operado de mastoidectomia, que já nos alertara em sintomas labirínticos, 39.6, cefaléa, vomitando, excitação violenta, Kernig, Trousseau e coma. Mais ainda, liquor purulento cota muitos pneumococus. Como agir?

Despertar primeiro, sómente, o doente do coma, amparando-o com novas doses de insulina, na idéia de prepará-lo, com vagar ao ato operatorio ? Erro grave, porque se perdia a única oportunidade de salvá-lo. No momento, não se poderia afirmar, que o coma fosse de fato de carência , pois que este doente até então se mantivera em equilibrio metabólico com a dieta e as doses preestabelecidas. Mais natural era que se atribuísse o coma à meningite, tão em evidencia no momento, e que talvez em etapa final se manifestasse depois dos sintomas labirínticos a que aludimos, muitas vezes prodromicos de invasão da dura-mater.

Eis. porque, se impunha que além do diabetis, se afrontasse incontinenti e com decisão a meningite.
Insulina, operação e sulfanilamida.
E foi assim que o doente se salvou.

RESUMO

Esta observação diz respeito a um caso muito grave de um diabético que foi acometido de violenta otite media seguida de quasi todas as complicações otogenicas. Apezar da paracentese precoce e do intenso tratamento antidiabetico e quimioterapico, sobreveiu uma mastoidite. Operada esta, parecia tudo bem, quando um mês depois, também o labirinto se comprometeu. Estes fenomenos desapareceram com tratamento, havendo impressão de convalescença, quando deflagrou uma meningite gravissima a pneumococus em toda a sua clássica sintomatologia. Cefaléa, febre muito alta, rigidez de nuca, excitação violenta, KERNICK, TROUSSEAU e coma. Liquor purulento, com pneumococus. Apezar do estado de coma foi o doente operado incontinenti removendo-se as paredes da fossa media e posterior. Exposição do seio. Além deste tratamento cirúrgico foram administradas imediatamente as mais altas doses de insulina e sulfanilamida. Não obstante o sombrio do prognostico tanto em relação à meningite como ao diabetis, o doente se restabeleceu.

RÉSUMÊ

I1 s'agit d'une observation par rapport à un cas très grave d'un malade diabétique qui a souffert une otite moyenne si violente qui a été suivie pour presque toutes les complications otogéniques. Malgré une précoce paracentèse, le traitement andidiabétique, la diète et la chimiothé rapie le malade a eu une mastoidite. On a fait la trépanation, mais un mois à peu près 1'opération le labirinthe a été áussi compromis. Quand on avait 1'impression que le malade était déjà en convalescence parce que tous les symptômes labirinthiques étaient disparus, une très grave meningite à pneumococus est apparue avec toute la symptômatologie classique, c'est à dire, céfalée, température três haute, excitation violente, rigidité de muque, KERNIG, TROUSSEAU et coma. Malgré 1'état de coma on a opéré sur-le-champs le malade et rénrtiées les parois des fosses crâneanes. D'ailleurs on a administré les doses les plus hautes de l'insuline et sulfanilamide. Malgré toute a sévérité du prognostique le malade guérit.


SUMMARY

lt is presented hy this paper a very serious case of a diabetic patient that liad a violent middle ear suppuration accompanied aftenvards by almost all the otogenic complications. Although the drum has been opened as soon as possible and taken the antidiabetic and chemotherapic measures the patient had a mastoiditis. The mastoid operation was performed, but a month later the labirinth was also compromised with a serous inflamation. After the disapearing of the last labirinth symptoms and the patient giving a wrong impression of convalescence, suddenly he was attacked by a peumococical meningitis with the classical symptomatology. Headache, high fever, vomiting, violent escitation, stiff neck, KERNIG, TROUSSEAU and coma. The liquor was purulent and containnig pneumococus. Although his very poor conditions the patient was immediately operated again to remove the middle and posterior fossae walls. In addition to this surgical treatment, highest doses of insulin and sulfanilamide were administred and although the prognosis of meningitis in diabetic the worst possible, the patient recovered.




(*) Apresentado à Sociedade de Oto-Rino-Laringologia do Rio de janeiro, em missão de intercambio com a Associação Paulista de Medicina, em sessão de. 4-12-42 Recebido pela Redação em 8-12-1942.
Indexações: MEDLINE, Exerpta Medica, Lilacs (Index Medicus Latinoamericano), SciELO (Scientific Electronic Library Online)
Classificação CAPES: Qualis Nacional A, Qualis Internacional C


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