S. Paulo
Que os saes de calcio sejam necessarios ao processo de coagulação do sangue, isso é fato demonstrado por Arthus, e todos os tratados de fisiologia bem estudam esse ponto.
Em dose forte, o calcio impede a coagulação in vitro, ao passo que a acelera quando em dose fraca.
Já in vivo o fenomeno é mais complexo, parecendo que a concentração tem menor importancia que o grão de ionisação no plasma sanguineo.
Segundo Nolf, grande autoridade no assunto, já Wriglit, em 1894, tinha demonstrado que o calcio, por via bucal, pode aumentar a coagulabilidade do sangue, no homem normal e no hemofilico. Assim, "o calcio poderia exercer uma ação terapeutica fraca".
Depois disso, varios autores deram como assunto liquidado a ação do calcio como aumentador da coagulabilidade do sangue. Tratados classicos de farmacodinamica e de terapeutica tornaram esta noção tão corrente que os clinicos empregam sistematicamente o cloreto de calcio como hemostatico não só nas discrasias sanguineas, assim chamadas, como em todas as hemorragias.
Na oto-rino-laringología, segundo Canuyt e Wild, o calcio foi encarecido por Toubert, Blechmann, Carnot e Blamoutier, Thibaudet, Miégeville, como preventivo de hemorragias.
As hemorragias, na especialidade, podem ser cirurgicas, isto é, determinadas pelo ato operatorio, pela abertura de vasos de certo calibre; ou podem ser devidas a uma discrasía sanguinea, isto é, a uma perturbação da capacidade de coagulação do sangue do paciente.
No 1.° caso, isto é, quando se trata de hemorragia produzida pela secção de vasos de certo calibre, não será o aumento da coagulabilidade do sangue que irá jugular as hemorragias sim um processo mecanico tal como a ligadura, compressão ou sutura dos pilares (no caso de amigdalectomia). Nesses tipos de hemorragias os hemostaticos podem ser usados como coadjuvantes, apenas. Seu papel como preventivo de taes hemorragias é, evidentemente, nulo.
Nas hemorragias devidas a perturbações no mecanismo da coagulação, a questão é outra. Segundo Canuyt e Wild, que me servem de guia no presente trabalho, essas hemorragias, na oto-rino-laringologia podem ser filiadas a 3 grupos.
a) Hemofilía
b) Hemogenía
c) Hemorragias por discrasías de origem viceral.
Na hemofilía, trata-se de uma insuficiência dos leucocitos e do endotelio vascular, o que não pode ser corrigido pela administração de calcio.
Na hemogenía parece que os disturbios correm por conta de uma forte baixa das plaquetas sanguineas, o que, tambem, não é influenciavel pelos saes de calcio.
Nas hemorragias por discrasias de origem viceral, ocupam o primeiro logar as determinadas por uma incapacidade do figado em produzir fibrinogenio.
E não serão os saes de calcio que irão corrigir tal insuficiência.
Em resumo, a priori, já se poderia afirmar o papel nulo do calcio sobre essas perturbações no mecanismo de coagulação, pois a fisiologia patologica nos ensina que as hemorragias nunca são devidas a deficiencia de saes de calcio.
Mas o que se poderia prever, baseado nessas considerações, a experiência confirma plenamente.
Os autores americanos Ravdin, Riegel e Morisson negam ao calcio qualquer ação sobre o tempo de coagulação in vivo.
Moulonguet, o grande especialista francez, abandonou o cloreto de calcio, como preventivo de hemorragias, pois nada obteve com ele.
Jorge Laurens, o consumado clinico oto-rino-laringologico do Hospital S. José, de Paris, no seu compendio editado em 1931, alude à "administração tão ineficaz quanto classica de cloreto de calcio."
Rendu estudou o problema da seguinte maneira
Tomou 100 doentes, ministrou calcio a 20 e conservou 80 para testemunhas. Após operar as duas series, teve duas hemorragias na primeira e três na segunda. Conclue que o "o cloreto de calcio não põe ao abrigo das hemorragias post-operatorias na cirurgia das amigdalas e vegetações adenoides".
Evidentemente, Rendu não tem elementos para concluir tal, com a sua citada experiencia.
As 3 hemorragias poderiam muito bem ter sido do tipo das hemorragias que denominei, acima, de cirurgicas. A abertura de uma arteriola pode dar logar a hemorragia rebelde e isso é assunto já muito repizado na especialidade.
Assim, a observação de Rendu nada demonstra. Não se pode aferir do valor do calcio pela superveniencia ou não de hemorragia post-operatoria.
Muito mais valor têm as provas do tempo de coagulação e de sangramento. Foi por este lado que Canuyt e Wild atacaram o problema, acabando por abandonarem o calcio pois "nunca verificaram um encurtamento do tempo de sangramento ou de coagulação depois da administração de cloreto de calcio, isoladainente".
Pessoalmente, durante anos, tive ocasião de administrar saes de calcio aos candidatos à amigdalectomia e à adenoidectomia, isso por habito, seguindo a corrente geral. Após a leitura do citado livro de Canuyt resolvi abandonar essa pratica, ha cerca de 6 anos.
Tendo, dessa maneira, operado grande numero de pacientes após administração de calcio, e outro grande numero sem dar cousa alguma, posso asseverar que só tive hemorragias de causas especialissimas.
(Amigdalectomía em flegmão operado a quente; amigdalectomía em periodo juxta-catamenial, isso porque as pacientes esconderam o seu estado).
Essa a observação clinica, que, afinai, não convence nem deixa de convencer. Por acaso, poderia ter operado apenas, "casos bons".
Resolvi, então, empreender o estudo da ação do calcio sobre o tempo de coagulação. Determinado esse tempo, administrava cloreto de calcio per os, servindo-me, sempre, do mesmo preparado, isso durante uma semana, pelo menos. Findo esse tempo, era feita nova determinação, e o paciente operado.
O processo usado foi o das laminas.
Foram, pois, tomados, indistintamente, 67 casos. Desses, 24 foram prejudicados, ou porque o doente não voltasse para nova tomada de sangue, ou devido a qualquer outra razão. Dos 43 restantes, tiveram seu tempo de coagulação aumentado pela administração de calcio, 15; tiveram-no diminuido, 17. Não tiveram tempo alterado, 11.
Releva notar que os aumentos e diminuições foram, geralmente, pequenos, tendo sido levadas em consideração as diferenças de ½ minuto. Ora, em rigor, esses tempos deveriam ser computados como inalterados, pois as diferenças de ½ minuto até alguns minutos estão compreendidas dentro da margem do erro inerente ao proprio metodo.
Teria sido interessante praticar o mesmo estudo para o tempo de sangramento, o que não foi feito por mera falta de tempo.
Quando realisei uma palestra, em 12 de julho de 1939, na sessão de Pediatria da Associação Paulista de Medicina, tive ocasião de tomar conhecimento de um identico estudo levado a efeito pelo Dr. Figueiredo Barreto, em 115 meninos, tendo empregado o coaguleno, a trombocitina e o calcio. Esse distinto colega não tirou conclusões definitivas, mas chamou a atenção para a influencia do estado higrometrico do ar sobre o tempo de coagulação, o que acarretaria serios erros de interpretação da prova de laboratorio.
A minha opinião é a seguinte: Se os saes de calcio fossem, de fato, hemostaticos, isto é, se aumentassem a coagulabilidade do sangue, sua influencia deveria ser decisiva na diminuição do tempo de coagulação, de tal maneira que um t. c. de Y2 hora baixasse a 15 ms., por exemplo. Não foi isso o que observei, nunca tendo havido grande diminuição e acontecendo, em alguns casos, surgir aumento. Naturalmente não irei concluir que, nesses casos, foi o calcio que prolongou o tempo de coagulação, mas o que julga poder concluir é que os saes de calcio, ministrados no pre-operatorio, nada adeantam, dando apenas uma falsa segurança.